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Uma vela à ciência: Pasternak e a Cia. do Cientificismo LTDA

Pequenos arranjos para depois da queda, Laura Andreato

Dois pontos entrecruzados: 1) O Brasil, segundo dados da OMS (Organização Mundial de Saúde), é o país mais ansioso do mundo. Em 2022, farmácias e drogarias venderam 123,5 mil caixas por dia de remédios tarja preta destinados ao controle da ansiedade;1 2) a eficácia da psicoterapia psicodinâmica (psicanalítica), a partir da mensuração de dados e objetificação dos sintomas, evidenciou que tratamentos psicodinâmicos de longa duração auxiliam na melhora das disfunções psíquicas em quadros depressivos e de ansiedade. A esse respeito, milhares de estudos estão disponíveis em revistas científicas especializadas em saúde mental.2 Em um dos estudos mais importantes, publicado em 2019, os resultados mostraram que há evidências substanciais na eficácia da terapia psicodinâmica, sobretudo em transtornos depressivos, ansiosos, somatoformes, alimentares, relacionados a substâncias e de personalidade.3

De saída, não quero que o hipotético leitor dessa coluna conclua que meu intuito é a busca pela sanção da psicanálise como uma ciência — toda poderosa e de acordo com a autoridade dos iniciados —, mas quero demonstrar que o gesto cientificista de Pasternak, ao chamar a psicanálise de “Disneylândia discursiva”, sequer se deu ao trabalho de compreender os pressupostos metodológicos e a mensuração de dados daquilo que trata. É claro que a utilização do advérbio “possivelmente”, entendido como “há uma possível falta de embasamento científico aos conceitos da prática”, pode ser vista como uma “possível” abertura, mas deixa mais cinza a noite em que todos os gatos se tornam pardos, e, ao lado de constelação familiar et caterva, a psicanálise se torna só mais uma doxa (opinião) com lógica própria. O que evidentemente é um absurdo.

Se aquilo que hoje se chama ciência baseia-se na mensuração de dados, na organização de pressuposições metodológicas e comprovação de na eficácia em estudos randomizados a partir da experiência clínica, no caso da psicanálise não há motivo de expulsá-la do panteão dessa razão instrumental. Se a aceitação de um resultado exige mais do que o cálculo formal, buscando a publicação do registro da realização de um procedimento prático reprodutível e observável para o estabelecimento do consenso concernente aos elementos necessários para a afirmação da experiência,4 então qual o objetivo de negar o lugarzinho da psicanálise ao sol incandescente da ciência? Resposta: ideologia!

Se não é possível acreditar numa mera ingenuidade iluminista, a brandir sua espada contra os moinhos de vento do inconsciente — refiro-me à postura de Pasternak ao afirmar que a psicanálise trata de “maluquices sobre o poder avassalador dos desejos inconscientes”5 —, também não se pode dizer que tal postura seja plenamente consciente da ideologia que lhe dá sentido. Sabemos que a marca da ideologia é a inconsciência de que ela age como uma ideologia. Como Pasternak luta contra a ideia de inconsciente jamais conseguirá chegar a ter consciência do que está no seu próprio. Aliás, um artigo muito importante, publicado aqui na Revista Rosa, já previa os movimentos de Pasternak rumo ao reducionismo que finalmente tomou forma em seu novo livro.6

Felizmente, esse sol da ciência é criticado hoje por uma miríade de cientistas ao redor do globo. A ciência, tornada um mito da autoridade inconteste, foi assunto amplo durante o século XX, sobretudo após a bomba de Hiroshima — cujo poder destrutivo colocou fim a qualquer otimismo da razão. Aquele fatídico 6 de agosto de 1945 ficaria marcado como signo da total falência da ingenuidade presente num manifesto lançado anos antes, em 1929, chamado A concepção científica de mundo, do famoso Círculo de Viena. Com a morte instantânea de ao menos 140 mil pessoas e a destruição, em segundos, de uma cidade de porte médio, ficaria evidente que a ciência não é algo subtraído à prática social e ao seu modelo de reprodução. Como não nos deixa de alertar Luiz Ben Hassanal, doutor em filosofia da ciência: “o que justifica o consenso é a discussão das teorias e dos procedimentos técnicos e científicos, mas o que condiciona a aceitação se projeta para fora da comunidade científica”,7 ou seja, na vida social.

Sem as idealizações, que sempre convergem em mitificações da ciência, observa-se que o conhecimento, inclusive o científico, estabelece-se em variados sistemas cognitivos em função do tipo de verdade e da lógica aceitos. Com toda hecatombe do século XX e seus crimes hediondos, dos quais a bomba atômica com seu poder genocida é só um exemplo, não restou outra postura senão a da crítica. Mesmo cientistas, cuja fé na ciência dava sentido ao seu ofício, passaram a pensar à sombra da guerra e concluíram que era hora de levar a sério os resultados catastróficos da correlação entre ciência e dominação.

Um exemplo, fora da curva, que ilustra a mudança de posição dos cientistas à época, talvez seja o do físico Heisenberg. Esse insuspeito conservador e nacionalista, que fazia pouco caso da filosofia política, foi um dos primeiros a se dar conta da idealização da ciência e como ela impedia um questionamento sobre o atrelamento da ciência à guerra. Heisenberg, que se encontrava preso desde 4 de maio de 1945, era um dos nomes de maior prestígio da física quântica. Ao lado de Niels Bohr, sua Interpretação de Copenhague se tornou hegemônica na acepção geral da produção científica. Quando as notícias da bomba chegaram tardiamente na prisão, ele chegou a duvidar que conseguissem manipular a fissão atômica. Era-lhe totalmente incompreensível que cientistas tivessem se engajado na construção de algo dedicado ao extermínio.

Para espanto do físico, entretanto, sob o manto da ciência somava-se agora, além do Zyklon B — gás letal desenvolvido por engenheiros nazistas — uma bomba de destruição sem precedentes. As notícias se mostraram verdadeiras e uma pergunta passou a lhe atormentar: “quais são as responsabilidades do pesquisador?”,8 “como era possível que Oppenheimer, Fermi, van Neumann, Einstein e Feynman oferecessem a autoridade que lhes era cabível para que, sob à luz sombria de 12 megatons, fosse ocultada o genocídio mais rápido da história humana?”. Desde então, felizmente, a fé na ciência foi posta em suspensão. E, felizmente, essa posição abriu caminho para estabelecer que a ciência, sendo apenas um dos conhecimentos disponíveis, deveria se abrir ao escrutínio da ética e do pensamento crítico ante seu ofício. A mitificação da ciência e sua idealização tinham sucumbidos sob o peso de milhões de cadáveres.

Com a mudança do paradigma cientifico, após a teoria da relatividade, sabemos que o conhecimento se baseia também em crenças, no entanto, nem todas as crenças são verdadeiras porque nem todas são justificáveis. A defesa legítima da ciência como um conhecimento fundamental, diante do quadro histórico do século XX, não pode ceder espaço a uma crença injustificada no progresso de seu desenvolvimento, principalmente enquanto vivermos numa sociedade cuja base é o lucro. O irracionalismo deve ser duramente combatido justamente porque, ao contrário da reflexão crítica, não duvida de si. Colocar a razão científica no pedestal é, portanto, padecer daquilo que visa combater.

O tempo histórico de otimismo com a ciência passou quando se descobriu que seu uso pode servir à extinção da própria espécie. Se lembrarmos os horrores que os alienistas cometeram no trato da saúde mental no final do século XIX, com a chancela da toda poderosa ciência, ficaríamos envergonhados de acreditar que ela deixada ao léu resolveria todos os problemas por si. Com a razão instrumentalizada para dominação, um discurso cientificista tem endereço certo: servir aos interesses de uma indústria que precisa estar em permanente expansão. Neste caso, a ciência, que deveria ser o lugar privilegiado da dúvida, torna-se o lugar da autoridade inconteste; verte-se em uma deusa que precisa sempre prestar libações sacrificiais ao verdadeiro deus: o capital. Em pleno século XXI, depois das lições tenebrosas do século XX, acender uma vela à ciência… que bobagem!