O Hamas tem tudo a comemorar
1º nov 2023
Enquanto escrevo este texto, no dia 30 de outubro, as cenas de horror e morticínio na Faixa de Gaza prosseguem, sem perspectiva de trégua.
É uma tragédia — e se algum grupo tem motivos para comemorar o que vê é certamente o Hamas.
Como nunca, a causa palestina reúne simpatizantes e conhece manifestações de apoio em todas as partes do mundo. Diante da dimensão sanguinária dos ataques israelenses, e de sua continuidade ao longo de todo este tempo, as cenas de famílias assassinadas em kibutzim e do terror desenfreado sobre um festival de música no dia 7 de outubro vão sendo esquecidas ou minimizadas.
No presente clima, ganham simpatia atitudes como as da ativista israelense Nurid Peled-Elhanan. Na Folha de S.Paulo de 28 de outubro, a professora da Universidade Hebraica de Jerusalém separou as ações da “elite armada” do Hamas, cuja ideia era “sequestrar, não matar”, e a de uma “multidão de pessoas que estavam enjauladas por anos”. Foi essa multidão, que “veio depois” dos combatentes especializados, a responsável por “toda essa terrível crueldade”.
Vê-se a que extremos pode chegar a simpatia pela causa. O raciocínio de Peled-Elhanan inocenta o Hamas dos atos de barbárie… e responsabiliza parte da própria população palestina pelo que ocorreu!
É o que já disse, com toda tranquilidade, um dos líderes políticos do Hamas, Abu Marzouk, de seu refúgio no Qatar. Os membros de sua organização, afirmou, não executaram civis nem cometeram atrocidades: já os militantes e civis que os acompanharam, aí… não é responsabilidade nossa.
É o que ele diz numa entrevista à New Yorker, do dia 13 de outubro. Tese repetida por Osama Hamdan, um porta-voz do Hamas — tendo sido desmentido pela rede noticiosa Al-Jazeera.
Escrevi com certa maldade que Abu Marzouk está “em seu refúgio no Qatar”. Isso não quer dizer que ele está confortável, assistindo de camarote à destruição de tantos compatriotas seus. O irmão dele tinha sido morto por Israel na semana da entrevista.
Abu Marzouk não dramatiza o fato. “Os palestinos estão prontos a pagar um preço ainda mais alto por sua liberdade.”
É a lógica do martírio, e, o que é pior, do martírio alheio. Será que Marzouk, ou seus correligionários do Hamas, podem falar com tanta certeza em nome de todas aquelas pessoas que vemos na televisão, chorando a morte de seus familiares?
São esses milhares de tragédias individuais que, naturalmente, alimentam a simpatia do mundo inteiro pelos palestinos. Para o Hamas, está valendo a pena.
Israel se encontra isolado internacionalmente. A ONU repreende Israel. Netanyahu se indispõe com o secretário-geral da organização.
Atos de antissemitismo (e não apenas de condenação a Israel) se verificam em toda parte. No domingo, dia 29, um aeroporto na república do Daguestão foi invadido por uma turba sedenta de vingança contra os passageiros de um avião que vinha de Israel. A polícia russa evitou que os gritos de “morte aos judeus” fossem levados à prática. Fico pensando se, como durante a Noite dos Cristais na Alemanha de 1930, as autoridades resolvessem fazer vista grossa.
O plano do Hamas vai dando certo. Falta engajar o Hezbollah numa ação mais coordenada e efetiva. Mas, claro, tudo tem o seu momento. Quando o exército israelense estiver enfiado até mais não poder entre os escombros e os cadáveres de Gaza, um ataque partindo do Líbano será mais eficiente.
Falta, ainda, a atuação do Irã. Talvez as autoridades iranianas estejam cautelosas, diante de um contra-ataque americano; Joe Biden pode pensar que uma intervenção aumente sua popularidade, reduzindo a truculência e o machismo de Trump à pantomima infantil que de fato é.
Talvez — outra hipótese — o governo iraniano tenha mais o que fazer. Por exemplo, prender, espancar e matar mulheres e adolescentes que se recusem a usar o véu islâmico. Foi o que aconteceu com Mahsa Amini, há pouco mais de um ano, e provavelmente com Armita Geravand, de 17 anos, que caiu desmaiada de um vagão de metrô em Teerã, ficou em estado de coma desde 1º de outubro, e morreu dia 28.
Como se vê, apesar de seu apoio ao movimento, o Irã anda bem ocupado. O Hamas talvez tenha de esperar um pouco mais, enquanto cresce o número de palestinos sacrificados pela causa.