A ilusão contextualista
24 out 2023
Os ataques do Hamas foram de uma chocante e inaceitável violência, mas também é preciso lembrar que Israel oprime o povo palestino brutalmente há várias décadas.
Invadir a Ucrânia, como fez Putin, é uma violência e um abuso, mas também é preciso lembrar que os Estados Unidos e a Comunidade Europeia estavam impondo sobre a Rússia um cerco geopolítico inaceitável.
Espancar mulheres até a morte por não usarem o véu, como ocorre no Irã, é um ato inaceitável, mas também é preciso lembrar que o bloqueio econômico sobre aquele país, levado adiante pelos países ocidentais, só conduz à fome e à radicalização islâmica.
O regime nazista estava matando 6 milhões de judeus, mas também é preciso lembrar que o bombardeio aliado sobre cidades alemãs matou centenas de milhares de civis.
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O bombardeio aliado sobre cidades alemãs matou centenas de milhares de civis, mas também é preciso lembrar que o regime nazista estava matando 6 milhões de judeus.
O bloqueio econômico sobre o Irã, levado adiante pelos países ocidentais, só conduz à fome e à radicalização islâmica, mas também é preciso lembrar que espancar mulheres até a morte por não usarem o véu, como ocorre naquele país, é um ato injustificável.
Os Estados Unidos e a Comunidade Europeia estavam impondo sobre a Rússia um cerco geopolítico inaceitável, mas também é preciso lembrar que invadir a Ucrânia, como fez Putin, é uma violência e um abuso.
Israel oprime o povo palestino brutalmente há décadas, mas também é preciso lembrar que os ataques do Hamas foram de uma chocante e inaceitável violência.
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Os parágrafos acima, espero, servem para ilustrar minha impaciência com o tipo de raciocínio “contextualista” que se repete a cada ato de violência no cenário internacional. O “mas também é preciso lembrar que” não vem sozinho. Com frequência, uma frase o antecede: “não quero justificar o que fez o Hamas / Putin / os Estados Unidos / a Otan / Hitler / Churchill, mas…”
Acontece, caro amigo, que mesmo dizendo que você “não quer justificar”, você está justificando. Talvez o mais certo, para quem “não quer justificar”, seja ficar em silêncio. Pois, em resumo, a construção mental do “não quero justificar, mas também é preciso lembrar que…” é praticamente vazia de conteúdo. Serve apenas para caracterizar quem a emite como uma pessoa razoável, que vê os dois lados do problema, que é a favor da paz e contra a guerra, mas cuja opinião é totalmente irrelevante no tal famoso “contexto” que ela tanto quer contextualizar.
“Não, não”, diz o “contextualista”, defensor da paz. “Tenho coisas concretas a propor: um cessar fogo — um esforço de intermediação internacional — em que os dois lados se sentem numa mesa e cheguem a uma solução.”
Sim, claro, há momentos para isso. Mas há também momentos em que isso é impossível. Quando Hitler invadiu a França, em 1940, os adeptos da paz e do bom senso se apressaram em assinar um armistício com o ditador, colaborando com ele na atividade de mandar judeus para campos de extermínio.
Entrar em guerra contra a Alemanha foi uma decisão que implicou na morte de milhares, de milhões de inocentes. Não há “guerra justa”, nesse sentido. Contudo, a “paz” pode ser igualmente injusta. Como acertar um acordo com Vladimir Putin, se ele quer tomar conta do território ucraniano, aos poucos ou de uma vez só?
Passo ao caso de Israel e do Hamas. Observo que nunca tive a menor simpatia pelo Estado de Israel. Não faltam provas de que criá-lo, embora desejável nas circunstâncias do pós-guerra, nunca foi boa ideia.
Mas, para falar do presente: acho que não há negociação possível com o Hamas. Nenhum israelense pode negociar com uma milícia que pretende acabar com o Estado de Israel. Pede-se diálogo — e, com urgência, a criação de um corredor humanitário para amenizar os efeitos de um cerco que tira de 2 milhões de pessoas acesso a água, a alimentos e a energia. Sim. Um primeiro passo para a trégua não é suficientemente lembrado, a meu ver: o Hamas teria que liberar os reféns que capturou.
É improvável que faça isso. Pois não está interessado nem na sorte dos reféns, nem da do próprio povo que diz representar. Se eu fosse palestino, teria tanto horror ao Hamas quanto eu teria se eu fosse israelense.
A única lógica para a ação desse grupo é a de provocar represálias extremas, e com isso jogar a opinião pública, não só a do mundo islâmico, contra Israel. Esses terroristas apostam — e para isso não mediram quantos jovens e crianças judias iam degolar, nem quantos palestinos morrem nos bombardeios em Gaza —, na ajuda do Hezbollah e do Irã; querem uma guerra santa, uma solução final.
Israel — Netanyahu mais do que ninguém — aceitou a provocação. Nomeia a destruição de Gaza como um ato “contra o Hamas”, prometendo caçar seus militantes, um a um, na rede de túneis em que se escondem, bombardeando tudo o que puder na superfície.
Talvez o Hamas se renda, no final; talvez lhe aconteça o que aconteceu com o Isis e a Al-Qaeda. Talvez não. Talvez o Irã seja uma ameaça para valer, e estejamos às vésperas de um morticínio sem precedentes.
Seja o que acontecer, e tudo o que acontecer será horrível, o jogo de forças na região será alterado, e é só quando uma situação se apresenta em novos termos que a hora das negociações e dos acordos chega finalmente.
A extrema-direita israelense poderá ser reduzida ao silêncio; o Hamas também; os judeus ortodoxos que ocupam a Cisjordânia poderão ser expulsos de lá; os bilionários do petróleo poderão criar uma nação palestina rica, bem-defendida e fértil; os israelenses poderão viver em paz. Mas, com uma milícia que degola bebês, é de guerra que se trata. Este, e nenhum outro, é o contexto real.