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Natália Pasternak e a homeopatia

Recentemente, um artigo da bióloga Natália Pasternak, publicado n’O Globo, repercutiu de maneira significativa nas redes sociais — ao menos nas “bolhas” de que faço parte. Nele, a cientista faz uma dura crítica aos tratamentos homeopáticos, afirmando, ao final do texto, que “a homeopatia não funciona, porque ela é feita de nada”. A repercussão nas redes sociais, a que me refiro, deve ser aqui entendida como sinônimo de “treta”, isto é, pouca reflexão, argumentação rasa e quase nenhum embasamento científico (por parte dos comentaristas); acompanhados, paradoxalmente, de uma convicção férrea e de uma defesa apaixonada dos pontos de vista em disputa — um “ajuste fino” que só as discussões virtuais são capazes de produzir.

Apesar de uma razoável formação científica e de uma formação filosófica que me proporcionou algum traquejo com questões de natureza epistemológica, hesitei em me juntar aos “tudólogos” da internet na defesa ou condenação do artigo de Pasternak. A polêmica, no entanto, não me parece flutuar no vazio. Quero dizer, descontado o ruído das redes sociais, parece haver nela importantes questões de fundo a serem exploradas e desenvolvidas. Questões que dizem respeito, sobretudo, ao papel da ciência numa sociedade moderna e democrática.

Com efeito, minha intenção neste artigo não é tomar lado no campo de batalha, mas tentar explicitar a natureza da controvérsia na qual, acredito, a “treta” de internet está montada, fornecendo, ao longo do caminho, algumas balizas conceituais a partir das quais ela possa ser conduzida de maneira mais adequada.

Em primeiro lugar, cumpre manifestar meu grande respeito e admiração por Pasternak, não apenas enquanto cientista, mas também como figura pública, com notável atuação no enfrentamento à gestão catastrófica da pandemia do novo coronavírus por parte do Governo Federal. Em tempos normais, um disclaimer como esse talvez fosse dispensável. Dado, no entanto, o cenário em que nos encontramos, de degradação do debate público, penso ser importante um aceno nessa direção.

Do ponto de vista científico, não me compete emitir nenhuma opinião a respeito das afirmações de Pasternak. Não tenho formação na área, não sou especialista no assunto e tenho profundo respeito pela pesquisa científica produzida nas universidades públicas do país. Enquanto, digamos, acadêmico e cidadão engajado, fiz minha lição de casa: busquei me informar a respeito do tema, para além dos lugares-comuns mobilizados pelo fla-flu das redes sociais. Li e recomendo a leitura, atenta e cuidadosa, do Contradossiê das evidências sobre a homeopatia,1 documento produzido pelo Instituto Questão de Ciência, presidido por Pasternak. Trata-se de um trabalho muito bem feito, amplamente documentado e extremamente convincente aos olhos de qualquer um com familiaridade com o método científico.

Há, no entanto, outros aspectos do problema que não são de natureza estritamente científica e são deles que gostaria de tratar aqui brevemente. Parece haver no Brasil, essa é minha percepção, um déficit de discussão epistemológica tanto na academia como no debate público, com claro prejuízo para ambos (isto é, para a formação e pesquisa em ciência, mas também para a vida em sociedade). Digo isso baseado em minha experiência pessoal, minha formação científica na USP (em parte, também, no Instituto de Física Teórica da Unesp) comparada ao ambiente acadêmico francês, com o qual vim a ter posteriormente contato e familiaridade, e no qual debates dessa natureza sempre me pareceram mais frequentes e bem assentados.

Trago a discussão para esse terreno, o da epistemologia, por uma simples razão: embora reconheça ser de competência exclusiva da ciência afirmar, perante a sociedade, se determinado medicamento tem eficácia comprovada (como faz Pasternak no caso da homeopatia), parece-me evidente que definir os contornos conceituais do que vem a ser “saúde” e “doença” não são simples “questões de ciência”. As fronteiras entre o normal e o patológico são, em muitos casos, de difícil definição, e embora o discurso científico deva, naturalmente, tomar parte nessa tarefa, não me parece que, sozinha, a ciência seja capaz de dar uma resposta satisfatória ao problema (e nem que essa seja a sua principal atribuição).

Apesar de afirmar que “a homeopatia é feita de nada” (é preciso levar em consideração a retórica e o contexto da afirmação), Pasternak não a considera anódina, isto é, desprovida de efeitos visíveis — e não a considera, simplesmente porque ela não é (de um ponto de vista fisiológico ou mesmo bioquímico). Se ouvimos com atenção o que a cientista tem a dizer (é esse, a meu ver, o ponto que dá margem para confusão) compreenderemos que a homeopatia, de um ponto de vista científico, “não é mais eficaz do que um placebo”.

Placebos, no entanto, não são remédios (se fossem, a medicina tradicional e a indústria os incorporariam aos tratamentos convencionais), mas tampouco podem ser reduzidos a nada. Há relatos fascinantes, nos conta Pasternak,2 da utilização de placebos (injeção com solução salina, ao invés de morfina) como medida desesperada para reduzir a dor e permitir pequenas intervenções cirúrgicas em combatentes feridos de guerra.

Se não se trata de remédio, tampouco se pode afirmar que o placebo é uma espécie de “poção mágica”. Seu funcionamento é passível de explicação científica, sem recurso a causas sobrenaturais. Em linhas gerais, explica-se o efeito placebo a partir da noção de condicionamento, que associa uma resposta fisiológica do organismo a determinados estímulos externos (da mesma forma que a percepção sensorial do alimento ativa em nós a salivação e a produção de suco gástrico).

É curioso notar que o efeito placebo se verifica mesmo em pacientes que sabem que não estão ingerindo um remédio de verdade. Além disso, parece haver diferentes graus de efeito placebo: “Em geral, injeções funcionam melhor do que pílulas, duas pílulas funcionam melhor do que uma, pílulas coloridas funcionam melhor do que brancas, e qualquer tratamento teatral [sic], que envolva manipulações do corpo, funciona melhor do que todos os demais”, nos diz Pasternak.

Para além das questões éticas que o emprego de placebos no tratamento de pacientes suscita, a compreensão científica de seu funcionamento parece ressaltar a importância de um elemento cultural na medicina: a produção da sensação de cuidado, no organismo de quem sofre, contribui para o seu tratamento. A própria Pasternak se mostra disposta a aceitar essa afirmação: “sempre podemos nos beneficiar do efeito placebo em qualquer consulta médica ou tratamento, se o médico ou profissional de saúde for atencioso e carinhoso. Talvez esta seja a única grande lição que a medicina alternativa tem mesmo a ensinar”.

Ao invés de supor uma incorrigível tendência ao obscurantismo, por parte de médicos e pacientes, como o fator preponderante para explicar o sucesso da homeopatia e demais tratamentos “alternativos”, talvez fosse prudente considerar a possibilidade de a medicina tradicional estar simplesmente falhando num aspecto elementar de sua prática cotidiana. Ao subestimar a dimensão ritualística da medicina (Pasternak fala em “teatralidade”), não estaria a ciência estreitando, em demasia, sua própria definição de saúde? E, desse modo, privando médicos e pacientes da experiência integral do cuidado, à qual, aparentemente, nossos organismos foram condicionados, por evolução, a responder positivamente (isto é, na direção da saúde)?

Embora irretocável do ponto de vista científico, a fala de Pasternak me parece conter alguns problemas: em primeiro lugar, pelo modo um pouco deslocado com que aparece na cena pública; em segundo lugar, por conta de seus pressupostos epistemológicos (ou, talvez, por não os explicitar de modo suficientemente crítico).

Sei por experiência (acreditem-me, já estive nesta posição) que a fala de Pasternak atinge as Humanidades e alguns setores da esquerda em lugares sensíveis (nervos expostos), ativando as suas red flags contra o discurso positivista. Normal, faz parte do jogo; mas é preciso cuidado e estratégia (saliva e paciência) para fazer avançar pautas importantes na esfera pública, evitando implodir prematuramente o debate e evitando atrair de forma desnecessária a antipatia de setores sociais que, de outro modo, poderiam se tornar importantes aliados.

Quanto aos pressupostos epistemológicos, há, em meu ver, algo de positivista na atitude de Pasternak, quando sugere a nulidade (redução a nada) do discurso homeopático pelo simples fato de não possuir um fundamento científico. É desse modo, aliás, que o filósofo alemão Jürgen Habermas caracteriza o positivismo, como a tendência a reduzir todo o conhecimento humano ao conhecimento científico, invalidando, de saída, modalidades discursivas não científicas. Se há, como diz Pasternak, algo que a medicina alternativa poderia ensinar à medicina tradicional (a saber, a importância da escuta e do acolhimento no tratamento de pacientes), não haveria aí também uma forma de conhecimento?

A homeopatia não é um remédio, ela não cura doenças, mas isso é equivalente a dizer que ela não produz saúde? Não busco aqui, é preciso enfatizar, jogar com as palavras (confundindo o interlocutor), mas realçar o seu campo de significações. Afinal, pesa em silêncio sobre aquilo que é dito o significado daquilo que (intencionalmente ou não) é elidido.

A psicanálise, por exemplo, não é um discurso científico, mas, em meu ver, produz saúde. Se a homeopatia é condenada, sob o critério da falta de fundamento científico, não abriríamos um precedente para condenar, de enfiada, também a psicanálise? No fundo, o que pretendo mostrar é que o critério do fundamento científico tão somente é insuficiente para uma adequada hierarquização e deslegitimação social dos discursos. Não basta ser não científico para justificar sua invalidação; é preciso, ao contrário, que o discurso seja anticientífico (ponha a ciência em risco, de modo a antagonizá-la). No caso específico da homeopatia, em meu ver, o problema consistiria em decidir se discursos pseudocientíficos (como é o caso) são necessariamente anticientíficos, ou se seria possível acomodá-los numa espécie de “zona cinza” dos discursos não científicos, reservada àqueles que pretendem ser ciência, mas não passam no teste (sem, no entanto, antagonizá-la). Para além disso, obviamente, seria preciso verificar, de modo rigoroso, se a homeopatia representa de fato um risco à saúde dos pacientes, ou se, ao contrário, se trata de uma prática absolutamente inofensiva, apesar de ineficaz contra doenças.

Não há dúvida de que um dos papeis da ciência numa democracia moderna é o de invalidar e deslegitimar socialmente determinados discursos (antivacinas, terraplanistas, negacionistas climáticos etc.). A questão, no entanto, é complexa e há boas razões, em meu ver, para que setores da sociedade olhem com desconfiança o discurso científico e, em particular, o discurso médico, negando-lhes o reconhecimento da autoridade na esfera pública. Basta analisarmos, por exemplo, a rica literatura a respeito dos alienistas do final do século XIX (e todas as barbaridades cometidas em nome da “ciência”), ou mesmo lembrarmos que até a década de 1990 a Organização Mundial da Saúde ainda considerava a homossexualidade uma doença.

Voltar os olhos para a história do desenvolvimento científico e de seu enraizamento cultural, que, a um só tempo, nos revela o caráter não dogmático da ciência (e sua consequente capacidade de atualizar-se criticamente), mas nos lembra também seu aspecto sombrio, enquanto instrumento de dominação e controle de populações “anormais”.

Por fim, minha opinião a respeito do assunto, decerto polêmica, poderia ser resumida da seguinte forma: é papel da ciência, numa democracia moderna, invalidar socialmente determinados discursos, mas a condição para que ela o faça deve ser engajar-se finamente em discussões que não são de ordem científica (terreno em que sua autoridade se desfaz). A solução é paradoxal porque o problema é paradoxal: a ciência, a um só tempo, precisa se submeter e não pode se submeter ao controle social.

Em suma, o embate da ciência não deve ser com os discursos não científicos tout court, mas apenas com os discursos anticientíficos; de modo análogo, o embate dos discursos não científicos com a atitude positivista não pode fazê-los assumir, em contrapartida, um caráter anticientífico, como muitas vezes ocorre. Penso que entre a atitude positivista e a licença ao obscurantismo há uma trilha estreita e sinuosa, que nos aponta uma saída; é por ela que devemos avançar.