O estilo de Marx, e o fetichismo de Dickens

Cortina, Renata Pedrosa
Ludovico Silva (1937–1988) foi um ensaísta, poeta e professor universitário que estudou literatura com Hugo Friedrich em Paris, e, alinhado com a crítica ao marxismo ortodoxo, foi amigo de Hans-Magnus Enzensberger, e contou com a admiração de Umberto Eco e Umberto Cerroni.
Só que, apesar dessa bonita circulação internacional, ele era venezuelano, e tenho impressão que seus escritos teriam ficado mais conhecidos não fosse essa circunstância. Seu pequeno livro O estilo literário de Marx, por exemplo, foi escrito em 1971 e só agora ganhou tradução em inglês; foi assim que caiu em minhas mãos.
Trata-se de um texto curto (102 páginas), que mereceria ter vindo a público mais cedo. Sua parte mais substancial é, na verdade, uma crítica ao uso que se fazia dos termos “reflexo” e “superestrutura” nos círculos marxistas de antigamente. Costumava-se negar a autonomia relativa das produções artísticas e intelectuais “burguesas”, e a tal “teoria do reflexo” nunca foi explicada suficientemente.
Esse tipo de marxismo saiu de moda, acho eu. Para combatê-lo, Ludovico Silva adota um meio indireto e, a seu modo, eficiente: toda essa ideia de “reflexo”, afinal, não consiste em nada mais do que uma metáfora, que Marx aliás usou raramente… poderia ter falado em “ecos”, e “fantasmas” (como aliás fez, nota Silva, no mesmo trecho de A ideologia alemã). E poderia ter falado em “fachada” em vez de “superestrutura”, do mesmo modo com que falou em “edifício”, para contrastar com a famosa “base” ou “fundação” material da sociedade.

Cama, Renata Pedrosa
Excluindo-se esse cerne polêmico, entretanto, o livro de Ludovico Silva termina se constituindo de observações mais ou menos rápidas, e invariavelmente elogiosas, sobre o inegável talento de Marx para a ironia, para o jogo das inversões sintáticas (filosofia da miséria/miséria da filosofia) e para apontar o absurdo nas ideias de seus adversários. Curiosamente, Ludovico Silva não dá maior atenção aos textos políticos de Marx, como por exemplo o Dezoito Brumário, onde isso ressalta especialmente.
É sinal, sem dúvida, de que muita coisa ainda haveria a dizer numa área que Ludovico Silva mostrou ser merecedora de mais atenção.
Ele fala pouquíssimo, por exemplo, das influências que Marx teve como escritor. Shakespeare, Goethe e os gregos são casos conhecidos, mas não sei se já escreveram sobre Charles Dickens dessa perspectiva. Dou aqui uma ilustração.
É conhecida a passagem do primeiro capítulo de O capital, que Ludovico Silva também cita, sobre as propriedades fantásticas que uma coisa assume ao ser vista como mercadoria:
A forma da madeira é alterada, ao fazer-se dela uma mesa. Contudo, a mesa continua a ser madeira, uma coisa vulgar, material. Mas a partir do momento em que surge como mercadoria, as coisas mudam completamente de figura: transforma-se numa coisa a um tempo palpável e impalpável. Não se limita a ter os pés no chão; face a todas as outras mercadorias, apresenta-se, por assim dizer, de cabeça para baixo, e da sua cabeça de madeira saem caprichos mais fantásticos do que se ela começasse a dançar.
Por acaso, topei com um trecho de Dickens, descrevendo uma loja de roupas usadas:
Encontramos prazer em andar ao longo dessas extensas alamedas de mortos ilustres, e nos deixamos levar pelas especulações a que dão motivo: ora provando um falecido capote, depois um par de calças mortas, e então os restos mortais de colete de cores vivas, para que pudessem servir a uma pessoa que nós mesmos inventamos, e esforçando-nos, pelo feitio e pelo estilo da própria roupa, por trazer seu antigo dono à nossa mente. Íamos especulando desse modo, até que filas inteiras de capotes se alçaram de seus cabides, e abotoaram-se, por conta própria, em torno de seus possuidores imaginários; renques de calças pularam ao seu encontro; coletes quase se rasgaram na ânsia de se vestirem; e meio quarteirão de sapatos de súbito encontraram pés para calçá-los, e saíram pela rua trotando com um rumor que nos despertou agradavelmente desse devaneio.

Mesa, Renata Pedrosa
O trecho vem de uma das crônicas jornalísticas de Dickens, Sketches by Boz, escritas por volta de 1835. Se já não é o “fetichismo da mercadoria”, é pelo menos uma forte e divertida crítica a uma sociedade em que, com tanta roupa produzida, havia tanta gente sem ter o que vestir.