Antivacina, anti-imigrantes, autoritária e… “de esquerda”
Pedra e pedra, Renata Pedrosa
Uma coisa a gente vai aprendendo. Ser de esquerda, hoje em dia, não dá voto. Quanto mais de direita a pessoa for, mais fácil é o seu discurso, mais rápida a adesão que obtém, e menos necessário o seu comprometimento com a realidade factual.
Qual o discurso de esquerda capaz de emplacar uma eleição, hoje em dia? Lula ganhou defendendo a democracia — para nós, esse foi o ponto de convergência, num momento de emergência. Mas não era, nem podia ser, um programa de esquerda.
Na Alemanha, surge a novidade. A fórmula mágica para tentar “derrotar a direita”, “superar o capitalismo” e revitalizar as políticas públicas exauridas pela ortodoxia econômica.
A novidade tem nome: Sahra Wagenknecht. Ela tem 54 anos, nasceu na antiga Alemanha Oriental, seu pai é de origem iraniana, foi eleita deputada pelo partido Die Linke (A esquerda), depois de ter pertencido ao Partido Social-Democrata (SPD), de centro-esquerda. É casada com o respeitado e veterano político Oskar Lafontaine, que era líder desse partido. Sua tese de doutorado talvez não tenha se destacado pela originalidade, mas sem dúvida constitui uma credencial de esquerda: versa sobre a crítica do jovem Marx à filosofia de Hegel.
Até aqui, muito bem.
Só que ela já se manifestou contra a vacina de Covid. Propõe o fim da ajuda alemã à Ucrânia. Em fevereiro de 2022, dizia na TV que Putin “não tinha interesse em invadir” aquele país. O estilo combativo de Wagenknecht lhe garante o status de celebridade televisiva.
Não é tudo. Ela já afirmou que o regime da Alemanha Oriental “foi o mais pacífico e humano modelo de comunidade que os alemães inventaram até hoje na história”. É contra o euro e quer que o país saia da Otan.
O pior vem agora. Apesar da ascendência iraniana, ela é contra a facilidade (?) com que a Europa recebe imigrantes e refugiados. Nessa atitude, foi aplaudida pela extrema-direita alemã.
Não é a primeira política de origem não-europeia a manifestar ideias anti-imigração e ganhar apoio do eleitorado racista branco. Na Inglaterra, Priti Patel, neta de indianos, com pais nascidos em Uganda, defendeu como ministra do Interior o transporte de refugiados para Ruanda.
Sua sucessora no cargo, Suella Braverman, é filha de indianos nascidos no Quênia e nas Ilhas Maurício. Já disse que o ideário multiculturalista é um “fracasso”, insiste na “solução Ruanda”, e fez violentas declarações contra os atos pró-Palestina, incentivando com isso os extremistas de direita que atacaram manifestantes e policiais em Londres no último fim de semana. Suella foi demitida do governo conservador de Rishi Sunak há poucos dias, mas não perde apoiadores entre os racistas brancos.
Voltando a Sahra Wagenknecht. Sua campanha contra os imigrantes coloca-a como força eleitoral significativa, pronta para tirar votos da extrema-direita da AfD (Alternative für Deutschland). Visando à criação de um novo partido, ela criou o SWB (Sahra Wagenknecht Bewegung, ou Movimento Sahra Wagenknecht).
O que sobra do pensamento de esquerda nesse ideário antivacina, anti-imigração e antidemocracia? Ela quer mais investimento público em saúde e educação.
É populismo puro; o fato de usar o próprio nome em sua agremiação já é sinal suficiente.
Um de seus apoiadores, na Alemanha, é um intelectual que tem conquistado bastante admiração na esquerda brasileira: Wolfgang Streeck.
Ele defende Wagenknecht criticando as tendências predominantes na esquerda democrática. São contra Viktor Orbán, quando o importante é ser contra a Microsoft, diz ele.
O antiautoritarismo dos anos 1970 se tornou um way of life instrumentalizado pelo capitalismo, diz ele. OK. Vamos virar autoritários então, é?
A esquerda “sempre foi conservadora”, adianta Streeck. Trata-se de recusar o sistema de “trabalho flexível” e tudo que a globalização representou de dissolução dos vínculos sociais, culturais (e, pergunto eu, raciais?) entre os trabalhadores.
“Desejo a Sahra Wagenknecht todo o sucesso possível”, diz o teórico anticapitalista. Apostando no racismo e nos bons tempos da ordem autoritária, sem dúvida ela tem muito futuro pela frente.