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Lula, nossa rainha da Inglaterra?

Rafael Carneiro

Não é segredo para ninguém. Lula tem menor capacidade de governar hoje que nos seus dois primeiros mandatos. Dizem que anda de mãos tão atadas que estaria mais na pele de um chefe de Estado, uma rainha da Inglaterra, do que de um presidente da República. A analogia é exagerada, mas tem um grão de verdade, e vale a pena entender por quê.

Embora o perfil reacionário do Congresso seja um dos atilhos que amarram Lula, sua verdadeira corda é de fundo institucional. Hoje, o Congresso controla muito mais o orçamento do que em 2003 ou 2007. Esse domínio, que os desavisados imaginaram extinto quando o STF declarou inconstitucional o orçamento secreto, emergiu na esteira de Junho de 2013 e não tem hora para acabar.

Entre 1988 e 2014, o pacto político do Brasil se equilibrou no que os estudiosos apelidaram de “presidencialismo de coalizão”. O chefe do Executivo construía sua base de apoio oferecendo ministérios e emendas a parlamentares, que assim redirecionavam verba para suas clientelas e redutos eleitorais. Nos últimos dez anos, a letra e o espírito desse arranjo mudaram, e o exercício da soberania não é mais o mesmo.

A transformação não aconteceu no palco da grande história onde se dão os feitos que capturam nossa atenção apaixonada, como o impeachment da Dilma e as eleições de Bolsonaro e Lula. Sua arena são as coxias do Parlamento, onde deputados mal conhecidos manipulam um assunto essencial que a maior parte de nós ignora por áspero, técnico e monótono: o orçamento federal.

Voltemos a 2013.

Enquanto as ruas ardiam, com tiro, porrada e bomba, sobre os vinte centavos das passagens de ônibus (expressão de pautas mais profundas), e a popularidade do Executivo federal derretia que nem cera quente, o Congresso viu uma chance de ouro. Fazia anos que ele tentava meter o gadanho no orçamento, e a hora parecia ter chegado.

Entre 2003 e 2012, os parlamentares tinham disparado ao menos treze propostas de emenda constitucional (PECs) para aumentar seu poder de barganha perante o Executivo diminuindo o poder do Executivo sobre as emendas parlamentares. Do total, sete partiram da oposição e seis de partidos independentes. Entre seus autores figurava gente como ACM e Bolsonaro. As PECs não provinham da base do governo. O PT e sua coalizão conseguiam abafar as demandas.

Com junho de 2013, o Executivo baqueou, a relação de forças no Congresso virou do avesso e o MDB, principal partido da base governista, apadrinhou a impositividade. Com o MDB virando casaca, o Congresso deu uma chave de braço no Planalto, e no fim de 2013 passou uma regra anual (Lei de Diretrizes Orçamentárias, LDO) obrigando o Executivo a acatar um tipo de emenda parlamentar, a individual.

Abre parêntese. Há quatro tipos de emendas, classificadas conforme sua autoria. Se proposta pelo parlamentar, chama-se “individual”. Se pela bancada estadual, “de bancada”. Se por comissões técnicas, “de comissão”. Se pelo parecerista final sobre o orçamento do ano, “do relator”. Fecha parêntese.

A LDO abriu a porteira.

Em 2015, o Legislativo constitucionalizou as emendas individuais. Em 2016, quando Dilma era um espectro flutuante, o Congresso estendeu a obrigatoriedade às emendas de bancada. Três anos depois, constitucionalizou-as no caldeirão do antagonismo entre os Poderes debaixo do furor antidemocrático de Bolsonaro. Em 2020, sobreveio o “orçamento secreto”. Agora, as emendas do relator podiam ser distribuídas entre parlamentares sem transparência nos critérios nem na destinação final dos recursos. Esses anos marcaram o auge das bacanais psicossertanejas país afora.

De 2014 a 2022, o valor médio do recurso garantido a cada parlamentar via emenda individual (impositiva), emenda de bancada (impositiva) e emenda do relator (secreta) saltou de R$ 14 milhões (2014–2016) para R$ 60 milhões (2020–2022).

Com a decisão do STF, a relatoria secreta acabou, mas o uso do cachimbo entorta a boca. Os parlamentares que viciaram nesse tabaco aceitarão outra piteira? Além disso, a impositividade está constitucionalizada, e não é fácil barganhar com quem tem dinheiro. O exercício da soberania mudou de 2013 para cá, e a agenda progressista do PT e dos movimentos sociais esbarrará nesse entrave nos próximos anos, como se viu na desidratação dos ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Originários. Sem voz no orçamento, Lula terá de ser maior que ele mesmo para não cair refém de uma prisão invisível, o Buckingham Palace de Brasília.


Não culpo Junho de 2013 pelos nossos males. As jornadas não são o “ovo da serpente” que era preciso esmagar dentro da casca porque, chocado, daria à luz pequenos monstros como Bolsonaro e seu séquito de criaturas trimembres (Moro, Damares, Weintraub, Salles). Mas tampouco diria que nada têm a ver com os desencontros do país. Conflagração social difusa e inconsistente no tempo é um presente para a classe política, pois vira o pretexto para oportunismos. No fundo, o poder é como uma bola de mercúrio que escapa aos seus dedos se você tenta pegar. Quando, em vez de ser entubado, apenas leva uma prensa, esse metal insubmisso se reparte em pequenas esferas para se reaglutinar logo adiante, intacto, denso e mais autoconsciente.