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A minoria esquecida

Casa Caixa I, Renata Pedrosa

Quase todo museu ou exposição de arte procura dar conta, hoje em dia, da diversidade — cultural, étnica, religiosa e de gênero. O movimento, nem tão recente assim, continua a ser bem-vindo.

Grandes pintoras, esquecidas há séculos, ganham destaque ao lado dos nomes “canônicos”. Um museu de história militar organiza, por exemplo, uma mostra dos batalhões negros que lutaram na Primeira Guerra Mundial. O cross-dressing no século XVIII europeu, ou na época de Shakespeare, se revela em tesouros de documentação.

A exposição nem precisa ser voltada para um tema identificado com a diversidade. Uma biblioteca em Oxford promove, por exemplo, uma interessante (e relativamente pequena) mostra sobre livros que são dados de presente, ou, de modo mais amplo, sobre a relação entre livros e o hábito de presentear.

Há preciosidades, como não podia deixar de ser. Uma Bíblia de 1583 tem a capa bordada de rosas brancas e arabescos de ouro: foi dada de presente à rainha Elizabeth I. A rainha não fazia por menos, e deu para Catherine Parr, a última esposa de Henrique VIII, a tradução, feita por ela mesma, de um livro religioso francês. A peça, também com a capa bordada, tem destaque na exibição.

Um violão lindo, com o tampo decorado, pertenceu ao poeta Shelley: foi um presente dele, pouco antes de morrer, para sua amiga Jane Williams; junto, ele mandou um poema sobre a ocasião.

Mas como fica a diversidade nessa exibição para bibliófilos?

Casa Caixa II, Renata Pedrosa

As diferentes tradições monoteístas são apresentadas em pé de igualdade; presentes para califas rivalizam com livros de oração renascentistas e escritos hebraicos.

Quando acontece de o livro em si não ter sido dado de presente, é possível seguir o critério da diversidade, e incluí-lo na exposição, graças a outros “links” com a ideia geral. Um texto budista aparece aberto na página em que se cuida do auto-sacrifício como forma de atingir a perfeição. O “dom de si”: por que não?

O tema da escravidão pode assim ser tratado indiretamente: apresenta-se uma edição da autobiografia de William e Ellen Craft, publicada em 1860. O casal conta como iludiu os escravocratas da Geórgia na luta pela liberdade. Ellen se disfarçou de homem branco, fingiu-se de doente, apresentando o marido William como um acompanhante escravizado. Ambos chegaram a Filadelfia, no norte do país, em 1848; viram-se sob suspeita, e havia “caçadores de escravos” atrás de recompensa para levar fugitivos de volta ao cativeiro. William e Ellen fugiram para a Inglaterra, tiveram cinco filhos, e escreveram o livro.

Que minissérie isso não daria! A exposição já vale por contar essa história. Mas qual a relação com o tema dos livros e dos presentes? É que, explicam os curadores, Ellen Craft foi ela própria “dada de presente”, quando criança, a um senhor de escravos.

De algum modo, consegue-se abrir a exposição — e os olhos de seus visitantes — para além do mundo masculino, heterossexual, branco, rico e cristão do “cânone ocidental”. Mulheres, islâmicos, afrodescendentes, crianças, asiáticos, estão ali, se não em pé de igualdade, com notável presença.

Ótimo — e é isso o que ocorre, como eu ia dizendo acima, com a maioria dos museus e exposições pelo mundo.

Mas aí me lembrei de uma “minoria” importante, e que tende a ser esquecida hoje em dia. Importante? Importantíssima. Tão importante que, não faz muito tempo assim, era vista como o futuro de toda a humanidade.

Pausa para o leitor tentar se lembrar.

Casa Caixa III, Renata Pedrosa

Penso na velha classe operária. Ou trabalhadora — assalariada, como preferirmos. Quais os livros (para ficar no tema da tal exposição) eram publicados, escritos e dados de presente pelo proletariado dos países industrializados? Ou os folhetos com casos criminais, rimas e canções que, desde a Inglaterra elizabetana, eram vendidos por mascates de aldeia em aldeia?

Onde estão os pintores operários? Os instrumentos de música dos camponeses? Os móveis e o vestuário dos artesãos urbanos? Os ornamentos — fitas, fivelas, brincos, maquiagem — das trabalhadoras de cem ou duzentos anos atrás? A arquitetura das vilas, a dança das festas sindicais, o design dos cartazes grevistas?

Claro que não faltam pesquisas sobre isso. Mas no mundo das exposições, da cultura, dos museus, é como se o pensamento progressista se esquecesse de uma de suas fontes principais. Afinal, se o tema do capitalismo ainda nos interessa — sua reforma ou sua superação —, a condição comum dos que não pertencem à classe proprietária teria de ganhar algum destaque. A diversidade, com suas lutas e vitórias, não perderia nada com isso.