7

Sérgio Vaz

Pequenos arranjos para depois da queda, Laura Andreato

Encontrei Sérgio Vaz pela primeira vez em 2016, em Poá no Alto Tietê de São Paulo. Ele já era, na época, o poeta de todos os sujeitos periféricos, para pensar com Tiaraju1 — poeta que ficávamos orgulhosos de invocar. Desprezávamos a poesia comedida, guardada a sete chaves, hermética. Nosso poeta agia com as letras. Seu arsenal era a palavra. Suas cutiladas sempre eram justas e lembrava-nos: “sorrir enquanto luta é uma ótima estratégia para confundir os inimigos”.2

A poesia e os saraus nos pareciam a chave para uma formação verdadeira. Usar a poesia, para nós, era automaticamente se educar. Essa percepção, dirão, é excessivamente romântica. Sem dúvida. Mas acredito que no Brasil nunca foi levada tão longe como pelos coletivos de poesias que se multiplicaram a partir dos anos 2000 em toda periferia. A possibilidade de romper com o cotidiano violento e sem perspectivas se exprimiam neles. O desejo de fazer história, de suscitar a transformação, se apresentava no sarau. E quem era nosso professor? Alguém de uma longa estrada, mais um mineiro dado à poesia, morador de Taboão da Serra. Sergio Vaz.

Crescendo entre paradoxos, Flores de alvenaria (2016) é sua expressão. Uma poesia cujo significado só é capturado para além das folhas, ela igualmente apresenta o acidente e a essência, o cotidiano e o intemporal, a literatura e a crença. Essa dualidade não lhe acarreta nenhuma incompatibilidade porque é na apresentação que se fecha o ciclo de uma poesia que é feita para ser gritada, cantada, falada, narrada. Na época em que o conheci, já o admirava por textos consagrados nas rodas. Com as batalhas de poesias sua estatura era a do gênio periférico. Gênio desnudo nos versos:

Calar a boca branca da escuridão
com o grito retinto da voz lunar
usar uma letra faminta, como isca,
que belisca quem não sabe pescar

À época eu estava lendo o Flores de alvenaria e, como um estudante de filosofia, tentava entender a falta de forma, os textos esparsos entre narrativas, aforismas e poemas. Me incomodava o deslizamento para frases catárticas. Só de noite, quando vi, porém, sua primeira apresentação, entendi que sua poesia era feita para ser representada, não apenas recitada… tinha algo do efeito esperado em mais de 23 anos de sarau na Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa). Tamanha responsabilidade requer uma grande dose de generosidade que eu descobriria assim que a noite avançasse.

Naquela noite, fui chamado para um campeonato de poesia e um debate sobre o genocídio da juventude negra. Todo mundo debaixo do viaduto, ameaçava chover. Sem mais, nem pra quê, vem na minha direção Sérgio Vaz e eu… já tinha abandonado a poesia. Optava pela prosa, longa, caudalosa, desenrolada em vários planos. A filosofia tinha matado o poeta que habitava em mim. Em nosso encontro, porém, queria lhe falar do quanto suas poesias venciam os jogos anêmicos e refinados que os estetas de condomínio adoram, como elas eram superiores ao lado corrompido, nitidamente sem sabor, de certas produções consumidas da ponte pra lá, ainda que não o tivesse visto em plena ação poética.

— Salve, negada! — diz e me estende a mão. Meu batimento cardíaco acelera e sou apresentado como um filósofo de quebrada. Finjo forçado desinteresse aristocrático. Ao passo que o poeta solta:

— Manos, será que dá tempo prum café?

Vamos pelas ruas. Eu nem acredito que do meu lado está Sérgio Vaz. Lembro de quando ele entrou no meu cenáculo de poetas. Me calo, porém. Bebemos um café, o cigarro está na ponta do dedo. Conversa vai, conversa vem. Quando voltamos para sua apresentação, Vaz que não passa de 1,70 de altura, vira um gigante fazendo uso do reino surdo das palavras, sem tropeçar. Os olhares vibravam. Coisa linda de se ver. Visceral. Genuíno. Depois, a chuva finalmente veio nos brindar antes que brindássemos à cerveja. Eu bebia ao lado de Vaz. Tocado pela sua humilde grandeza.

— Então, o mano faz filosofia? — pergunta me confessando sua grande admiração. Passamos em revista Platão, Aristóteles, chegamos na filosofia africana, falamos sobre os saberes da quebrada. “Filosofia de fumaça nariz, cada favelado é um universo em crise”. Noite de lavar alma. Minhas mãos suavam, é claro. Seu interesse pelo outro me cativou, sua humildade me fez lembrar de seus versos:

Humilde é uma pessoa
grande que trata todas as
outras como se fossem
maiores

Por mais nítido que seja, em Vaz, o gosto pelas sínteses poéticas, é verdade, porém, que se poderia destacar em sua apresentação o gesto que dá acabamento à sua escrita. De fato, destaca-se, como provam, desde os anos 2000, suas atividades na Cooperifa, a necessidade de declamar o poema não pela leitura, mas pela representação. O efeito esperado se mostra na ação poética mais do que no texto poético. Por isso, também, só ler Vaz não basta, é preciso declamá-lo e de maneira coletiva. Sem anotações, sem nada nas mãos, conduzido por uma vertigem lírica, lançam-se frases convulsas e coerentes, sublinhadas pela exaltação do corpo que encarna sentido à palavra. A poesia de Vaz nas quebradas se refere à ação poética. É só assim que o crítico poderá restituir seu significado, oculto aos que não participam de sua experiência. Vaz restitui à palavra o ritmo. É o ritmo e a poesia.