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Mais Junho

Pequenos arranjos para depois da queda, Laura Andreato

Paulo Arantes ano passado escreveu um artigo para a Margem esquerda no qual jocosamente lembrava-nos que o nono ano de aniversário das jornadas tinha passado em branco.1 O silêncio ensurdecedor trazia o presságio de que mais uma vez a despirocada memória nacional cedia fácil ao enredo do hic et nunc. Meses depois desse artigo, porém, temos uma disputa inédita sobre a memória de um Acontecimento no Brasil que deu a cara da política nos últimos dez anos: Junho de 2013. O ineditismo é de chocar o desavisado: Folha de S.Paulo, Estadão e até O Globo arregimentaram fileiras de articulistas ao passo que Dilma Rousseff, contrariando a visão majoritária do seu próprio partido, assinou um sóbrio artigo disposto a avaliar o que Junho de 2013 significava.

Duas disputas se tornaram hegemônicas e concorrentes: a) a ideia de tornar Junho uma data cívica em que a pluralidade democrática tinha se expressado, e; b) a conclusão de que o mesmo Junho foi a semente do fascismo que abriu às portas para o bolsonarismo — tese ardorosamente defendida por parte considerável do PT. O curioso dessa disputa é que ambas detestam qualquer movimentação popular, e chega a ser difícil nomear o espectro político de cada uma. No subsolo da gramática dominante, entretanto, a reflexão qualitativa sobre Junho trouxe dezena de livros com diversos debates e lançamentos. Estive no último dia 25 (de junho) na Casa do Povo para debater, entre outros livros, aquele que, ao lado de Felipe Demier e Carolina Freitas, ajudei a organizar.2 Lá, pude conhecer outras obras que se esmeravam no mesmo tema — incluindo a supracitada, na qual li o artigo da ex-presidenta Dilma.3 A Casa do Povo estava lotada e o evento, com diversas editoras independentes, rendeu boas discussões e encontros.

Seja como for, a curiosidade reside na noção de que Junho, dez anos depois, permanece sendo uma esfinge à maioria da esquerda. O tema arantiano do ano anterior voltou, só que agora sendo expresso por diferentes vertentes da ecologia anticapitalista. A meu ver, entretanto, quem melhor conseguiu apreender os acontecimentos, posteriores a Junho, foi o grupo de militantes na neblina num sintético livro, não à toa, chamado Incêndio.4 Nesse pequeno opúsculo-se chega à conclusão de que as fissuras do consenso — costurado às duras penas no pós-ditadura — causadas pelos levantes de Junho se esgotaram em si enquanto aposta daquela esquerda do subsolo5 que nadava contra a corrente da esquerda hegemônica, que tentou domesticar e coisificar “as bases”. Se se vai para além do discurso oficial à época era capaz de se ver que na concretude da vida social os abalos sísmicos no terreno indicavam terremotos.

Eu vivo dizendo por aí que Junho foi um Acontecimento — é claro que ele irrompe fora do horizonte de visibilidade daquilo que existe. Quer dizer, o Acontecimento emerge rompendo o constituído. As forças e dinâmicas organizadas numa álgebra que delimitam os poderes como jogos de força e equilíbrio são por ele desfeitas e suspensas. Isso significa que emerge do nada que está posto. Sim, Junho foi um Acontecimento, mas isso não quer dizer que ele possa ficar sem significação. Quando ele se iniciou, assim como hoje, a economia seguia autonomizada da política no sentido de que é ela é que dava as diretrizes de como as formas de gestão social deviam ser condicionadas. Quando ele se processou, assim como hoje, o neoliberalismo continuava hegemônico, sustentado ideologicamente como a única possibilidade de gestão eficaz da vida social, amparada, sobretudo, no direito privado.

Não podemos jamais esquecer que, entre 2007 e 2014, a ascensão da terceirização implicava não só maior rotatividade no trabalho como desvalorização da mão de obra. A precariedade do trabalho e a expansão da exploração resultaram num modelo de subcontratações com escalada do horário de trabalho que corroeu relações formais, tornando o trabalhador um empresário de si. Por que relembrar isso? Para concluir que se à época vivíamos encantados pelas sombras da propaganda oficial, dez anos depois já é tempo o bastante para que o encanto se desfaça.

Quem se lembra ainda que nos dez anos de governo de esquerda, 2003–2013, as altas taxas de homicídios pelo braço armado do Estado — e, mais, os homicídios contra mulheres negras — aumentaram numa escala absurda?6 Será que nos esquecemos que mesmo inseridos no circuito do consumo, os trabalhadores passavam por uma piora nas condições de trabalho e viam dilapidadas algumas garantias sociais? Se não podemos minimizar algumas conquistas sociais como a mudança estrutural na educação, também não podemos deixar de perceber que, no pré-Junho, havia algo de insustentável nas promessas organizadas a partir de um horizonte neoliberal. Sob à luz dos discursos oficiais estávamos cegos até que Junho foi um cair das escamas, ou não…

Mesmo quando a política efetiva ganhou curso nas ruas no pós-Junho, para um amplo espectro da esquerda, a única alternativa possível ainda era a tentativa de dissuadir os conflitos sociais através da cobertura do direito e da identificação das pautas de grupos de pertencimento. Isso forjou a identificação absoluta entre a política e a administração do capital. Em nome da eficácia, a conciliação como horizonte pressupunha a inclusão de todas as partes sociais para coibir a política como conflito. Com a recusa da política por parte da esquerda, a extrema-direita encarnou para si a ultrapolítica. No pós-Junho, se para a esquerda se tornou mandamento conseguir estabelecer as formas de aparição das identidades através das pautas no campo de visibilidade tradicional por meio dos arranjos jurídicos e fortalecimentos institucionais, para a extrema-direita a institucionalidade se tornou a fonte das misérias cotidianas no país. Assim, ela se colocou como anti-mainstream mesmo de mãos dadas com dinossauros da política tradicional.

Tudo bem! Como ouvi na Casa do Povo: não podemos ser engenheiros de obras prontas. No entanto, se há algo interessante que a engenharia faz são os cálculos necessários para que a obra se mantenha de pé e, melhor, traduz reflexivamente como ela foi possível. Dez anos depois, Junho desnudou sua contradição interna em todas as nuanças revelando um espelho cujo reflexo a esquerda não gosta de contemplar. Mas já podemos sim contemporizar seu alcance e seu ocaso. Ser contrário à memória de Junho é fazer como Dorian Gray, que ocultava seu quadro numa alcova secreta para não ver o quão acabrunhadas eram suas escolhas. Só um outro Junho, um Junho novo e qualitativamente diferente, ruminado excessivamente, poderá romper com essa maldição.