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Encontrar uma linguagem? Claude Lévi-Strauss e a literatura1

Denilson Baniwa

Questionar-se sobre as relações de Claude Lévi-Strauss com a literatura convida de imediato a considerar o lugar importante que as referências literárias ocupam no trabalho do fundador da antropologia estrutural e também a tentar compreender o papel desempenhado pelas diversas citações, remissões e alusões a Léry, Montaigne, Diderot, Rousseau, Balzac, Proust, Shakespeare, Rimbaud, Baudelaire ou ao surrealismo — resumidamente, a todos os autores convocados em O pensamento selvagem (1962), as “grandes” e depois as “pequenas” Mitológicas,2 antes de Olhar escutar ler (1993), cuja última parte toma diretamente como objetos certas obras da tradição literária europeia. Todavia, proceder dessa forma comporta uma dificuldade, pressupõe uma heterogeneidade entre dois domínios ou dois gêneros de discurso de constituição sólida: a literatura e a antropologia. Nessa óptica, as referências literárias são pensadas como incursões estrangeiras no seio de um espaço que obedece a outras leis e a outro espírito e, a partir daí, fica difícil escapar de uma interpretação semiótica e sociologizante dessas referências: quer sejam lidas como signos de conivência com o leitor ou indícios de pertencimento a um círculo exclusivo de letrados, quer sejam lidas como uma estratégia de Lévi-Strauss para se inserir em uma tradição intelectual prestigiosa (perspectiva suspeita), quer ainda acabem vistas como um sinal da inscrição da antropologia disciplinar e profissional em preocupações antigas outrora portadas por “grandes autores” (perspectiva “humanista”); seja qual for o caso, o recurso à literatura aparece como um sintoma, quiçá como um sinal. Ainda por cima, essa primeira versão do problema deixa de lado a relação, se não com a literatura em si, pelo menos com escrita literária como uma prática no trabalho e na carreira de Lévi-Strauss. Certamente podemos considerar seus textos mais “literários”3 como simples desvios, sem um verdadeiro vínculo com o trabalho antropológico conduzido para além disso, até mesmo (eterna suspeita) como um tipo de refúgio em uma “postura esteta” que revela uma recusa de “confrontar-se ao que há de mais ardente no presente” (Bourdieu, 2004, p. 69, tradução nossa). Mas trata-se de imaginar que a escrita em si não é o lugar de uma experiência própria e que, se o é, a reflexão que nela vem à tona não tem relação com a obra antropológica — o que pressupõe um curioso desdobramento do pensamento. Contudo, parece possível escapar desse duplo obstáculo tentando precisamente articular as duas dimensões — a literatura como referência e a literatura como prática. Para isso, é importante começar (como um bom método etnográfico) pela segunda opção antes de tentar compreender que coerência pode conectar um projeto antropológico a certas experimentações formais.


Tomarei como ponto de partida uma passagem do capítulo 7 de Tristes trópicos, “O pôr do sol”:

Se encontrasse uma linguagem para fixar essas aparências a um só tempo instáveis e rebeldes a qualquer esforço de descrição, […] então, parecia-me, eu teria de uma só vez atingido os arcanos de minha profissão: não haveria experiência estranha ou peculiar a que a pesquisa etnográfica me expusesse e cujo sentido e alcance eu não pudesse um dia fazer com que todos captassem.

(Lévi-Strauss, 2008a, p. 50–51)

Essas linhas precedem a inserção no texto de uma longa descrição de pôr(es) do sol, aposta com o título “Escrito no navio” e retirada literalmente do caderno na qual fora anotada.4 É um episódio interessante e complexo em si: em um livro de 1955, Lévi-Strauss não se contenta em citar em itálico um trecho de seus cadernos etnográficos como arquivo ou como prova de sua experiência passada (o que faz em outras partes, particularmente no capítulo 27, na famosa passagem sobre a “ternura humana” (Lévi-Strauss, 2008a, p. 293). Aqui ele explicita suas intenções da época: tratava-se, explica ele, de um exercício de estilo, no sentido mais escolar do termo, conforme ao espírito dos trabalhos que ainda eram praticados no início do século XX nas “aulas de retórica” dos liceus franceses e que ele próprio talvez tenha praticado. Se levarmos isso em conta, a tentativa ilustra uma convicção: se ele trabalhar seu estilo, se cuidar da própria escrita, então será capaz de uma performance retórica que poderá tornar tanto presente quanto compreensível qualquer “experiência estranha ou peculiar” à qual o trabalho de campo etnográfico poderia submetê-lo. Talvez isso confirme o aspecto “século XIX” e “pré-moderno” de Lévi-Strauss, reivindicado por ele com tanta frequência: o estilo é algo que se trabalha; tocar o público (“fazer com que todos captassem”) supõe um treinamento, uma prática repetida; aprendemos a escrever bem, a adaptar a forma ao conteúdo. No entanto, é preciso notar que a iniciação esperada provém menos de um aprendizado progressivo do que de uma espécie de fulguração: o que se espera é uma consagração repentina, uma mudança que fará dele não um escritor, mas um etnógrafo, iniciado “de uma só vez” aos “arcanos” do ofício. Como não pensar na famosa fórmula de Malinowski sobre o “poder mágico” do etnógrafo:

foi somente quando me vi só no distrito que pude começar a realizar algum progresso em meus estudos e, de alguma forma, descobri onde estava o segredo da pesquisa de campo eficaz. Qual é, então, a magia do etnógrafo, com a qual ele consegue evocar o verdadeiro espírito dos nativos, numa visão autêntica da vida tribal?”

(Malinowski, 2014, p. 5).

Antes mesmo de exigir uma interpretação, essa passagem ou, mais precisamente, essa montagem de textos me parece convocar diversos apontamentos. O primeiro é que, longe de ser um questionamento pós-moderno, a questão da escrita da etnografia opera na disciplina há tempos. Se existe um falso lugar-comum na história da antropologia é este: a ideia que, depois de cinquenta ou sessenta anos de objetivismo, de boa consciência e prática irrefletida, os etnólogos teriam repentinamente se dado conta de que escrevem e de que a escrita etnográfica é problemática. Por si só, o capítulo “O pôr do sol” indica que é insuficiente definir o pós-modernismo como uma “mudança de paradigma” fundada em uma acessão repentina à lucidez, como se nos anos 1970 e 1980 os etnógrafos tivessem percebido de uma só vez que escreviam (um símbolo dessa suposta “tomada de consciência” é a frase frequentemente citada de Clifford Geertz, em A interpretação das culturas: “‘O que faz o etnógrafo?’ — ele escreve” (Geertz, 1973, p. 19). O segundo apontamento é que o sentido do procedimento de Lévi-Strauss é ambíguo. Ambíguo primeiro em sua própria forma: por que citar uma tentativa antiga enquanto tal? Talvez se trate de um texto sem interesse, indício de um estado que foi ultrapassado desde então e, nesse caso, não haveria razão para conservar rastros disso na narrativa de 1955 — é uma obviedade: diversas passagens dos cadernos de campo não são retomadas em Tristes trópicos. Ou então se trata de um trecho que conservou sua pertinência e, nesse caso, ele poderia — assim como diversas passagens do livro — ser integrado “silenciosamente” à narrativa retrospectiva. A citação constitui, assim, uma via média entre a integração e a eliminação. O procedimento é ambíguo igualmente em seu propósito, pois os comentários introdutórios de Lévi-Strauss apresentam a tentativa de descrição como um índice da “ingenuidade do novato”, até mesmo como um sinal de erro: é devido ao fato de “o espírito etnográfico ainda [lhe] era tão alheio” que ele fora atraído pelo espetáculo dos pores do sol, sem sequer considerar a aproveitar as escalas do barco e os “breves relances de uma cidade, de uma região ou de uma cultura” que elas proporcionam (Lévi-Strauss, 2008a, p. 50). No entanto, ao fim da apresentação do trecho, essa experiência de escrita “de caderno na mão” é associada a um “estado de graça”, marcada por uma “febre” da qual Lévi-Strauss se diz nostálgico. De resto, no “Finale” de O homem nu, essa passagem será relida como uma premonição de seu pensamento porvir (Lévi-Strauss, 1971, p. 620). Enfim, o terceiro apontamento: várias entrevistas dadas por Lévi-Strauss nos anos 1980, assim como o estudo dos textos preliminares de Tristes trópicos mostram que esse texto “escrito no navio” era inicialmente (em 1939) destinado a participar de um conjunto mais vasto; ele devia constituir o primeiro capítulo de um romance “vagamente conradiano” já intitulado Tristes trópicos (ver Debaene, 2008, p. 1693–1694 e Lévi-Strauss, 2008a, p. 1628–1631). É o caso de notar que, à maneira de seus contemporâneos que pretendem abraçar a etnologia contra a literatura ou a poesia, em 1938–39, Lévi-Strauss ainda não renunciou a toda e qualquer ambição literária: uma leitura atenta dos escritos de Edward Sapir ou de Michel Leiris mostra de fato que a etnologia é menos uma via escolhida contra a literatura do que uma empreitada que visa restaurá-la sobre outras bases — colocado de outra maneira, a desconfiança em relação à escrita literária, a rejeição do relato de viagem ou da poesia do momento são menos uma despedida da literatura do que um sinal do desejo de reinvenção. Antes mesmo de sua partida e como quase todos os homens etnógrafos dos anos 1930,5 Lévi-Strauss antecipa ou pressente que a experiência de campo não será esgotada pela tese ou pelo trabalho monográfico, que este deixará um resto disponível para outro investimento. Mas Lévi-Strauss não considera uma criação literária diretamente inspirada de sua experiência de campo, a exemplo do que proporiam mais tarde Pierre Clastres com sua Crônica dos índios Guayaki (1972) ou Philippe Descola com As lanças do crepúsculo (1993), nem tampouco uma espécie de livro total como aquele com o qual Michel Leiris podia sonhar antes de partir para a África e cujo fracasso é relatado em A África fantasma (ver Debaene, 2010, p. 271–307); ele prevê um desvio alegórico pela ficção: uma peça de teatro — A apoteose de Augusto, que evocarei mais adiante — e um romance.

Se, por nossa vez, desejamos captar “o sentido e alcance” de uma montagem citacional dessas, me parece importante ampliar a perspectiva e integrá-la à lógica de composição que preside ao conjunto do livro. Para isso, é preciso antes lembrar que Tristes trópicos não é uma narrativa de campo e que também não é uma narrativa linear. Não é uma narrativa de campo no sentido em que o propósito é muito mais amplo e que se trata antes, para Lévi-Strauss, de reinscrever suas experiências etnográficas em um percurso pessoal (aliás, na contracapa, ele qualifica o livro como uma “autobiografia intelectual”) e uma dupla reflexão: acerca das relações entre as civilizações e da sua própria disciplina. Sobretudo, trata-se de uma narrativa escrita entre quinze e vinte anos depois das expedições relatadas por ele. A obra conta com nove partes, mas é preciso isolar a primeira e a última — que se inscrevem no presente da escrita (a rememoração trata de acontecimentos recentes e faz referência ao estado atual do mundo) — do conjunto constituído pelas partes de 2 a 8 — que é propriamente autobiográfico e especificamente dedicado às experiências de campo do fim dos anos 1930. Esse conjunto constitui o coração da narrativa e obedece a uma linearidade ao mesmo tempo cronológica e geográfica. A segunda parte, “Anotações de viagem”, que se encerra com o trecho “escrito no navio”, é dedicada aos princípios de sua vocação de etnógrafo. A parte 3 relata as travessias a partir da Calmaria concebida como ponto de transição rumo ao Novo Mundo — o “pôr do sol” que precede é então também um adeus ao Velho Mundo — até a chegada nas costas brasileiras e depois a São Paulo. A parte 4 continua o movimento se avançando pelo interior das terras em direção ao planalto. As partes 5 e 6 evocam a expedição de fim de 1935 a começo de 1936 junto dos Cadiueu e Bororo; as partes 7 e 8 evocam a expedição de maio de 1938 a janeiro de 1939 junto dos Nambiquara, Mondé e Tupi-Cavaíba. A única quebra nessa continuidade é a digressão massiva ocupada pelos três últimos capítulos da quarta parte, dedicados ao Sul Asiático — é particularmente nesse momento que Lévi-Strauss evoca sua viagem recente (seria excessivo falar em trabalho de campo) à Índia e ao Paquistão. Fora esses três capítulos, observa-se então uma continuidade ao mesmo tempo cronológica e espacial desde o capítulo 5, “Olhando para trás”, que se inicia com sua nominação como professor de sociologia na Universidade de São Paulo, e o capítulo 36, “Seringal”, que termina às margens do rio Amazonas em janeiro de 1939, quando da liquidação da segunda expedição.

Ora, essa continuidade é uma reconstrução. Primeiro porque as partes de 2 a 7 obviamente não propõem uma narrativa exaustiva desses quatro anos. Passaram sob silêncio nomeadamente os períodos de ensino em São Paulo e, sobretudo, os quinze meses de estadia na França, entre novembro de 1936 e março de 1938, ao longo dos quais Lévi-Strauss consagra-se oficialmente como etnólogo com a “bênção de Lévy-Bruhl, Mauss e Rivet, dada retroativamente” (Lévi-Strauss 2008a, p. 243). Esses quinze meses são evocados em dois parágrafos,6 e a narrativa é retomada no capítulo 25, em Cuiabá, de onde partira, em janeiro de 1936, a expedição rumo aos Bororo. Assim é elaborado um tipo de itinerário simbólico que mergulha o etnólogo cada vez mais fundo nos territórios inexplorados do noroeste brasileiro, partindo das cidades em gestação no oeste de São Paulo até a miséria extrema dos Nambiquara do planalto do Mato Grosso — o que de resto confirma o mapa grosseiro que Lévi-Strauss tinha inserido na narrativa em 1955 (Lévi-Strauss 2008a, p. 94). Nessa perspectiva, o encontro com os Nambiquara e depois os Mondé constitui de fato o pivô dessa busca, antes do retorno progressivo à civilização, verdadeiro “mergulho ao fundo dos tempos”, através dos Tupi-Cavaíba, que ressuscitam a lembrança das viagens do século XVI, e os camponeses do seringal, que parecem saídos diretamente do século XVIII (Lévi-Strauss 2008a, p. 391).

Meu propósito obviamente não é acusar Lévi-Strauss de má-fé; isso pressuporia que Tristes trópicos tinha o projeto de relatar de maneira ao mesmo tempo exata e completa o período de 1935 a 1939, ou então simplesmente de oferecer uma narrativa exaustiva de suas expedições. Ao contrário, essa análise evidencia três elementos. Primeiro o caráter composto, até mesmo concertado da obra de 1955 (que, então, efetivamente não é um relato de viagem). Em seguida, o fato, mais uma vez, de que essa composição é retrospectiva; é o distanciamento no tempo que leva Lévi-Strauss a reorganizar sua experiência passada de acordo com os princípios de uma busca até “o ponto extremo da selvageria” (Lévi-Strauss 2008a, p. 349). Enfim, a conclusão que se impõe é que o modelo conradiano do mergulho no coração das trevas não é aplicável à experiência etnográfica: a alteridade pura e preservada, aquela que se procurava junto dos Nambiquara e, mais ainda, dos Mondé,7 não se dá na experiência.

Enquanto tais, essas considerações não permitem interpretar Tristes trópicos, mas esclarecem o projeto (provavelmente inconsciente e, em todo caso, não tematizado) de Lévi-Strauss quando ele se dedica à escrita do livro: trata-se de dar um sentido a uma experiência passada que, no momento de seu acontecimento, foi vivida como um fracasso. O fato de o projeto ganhar forma precisamente naquele momento específico é um efeito da situação pessoal particular de Lévi-Strauss, para quem o início dos anos 1950 constitui manifestamente um período de crise teórica, pessoal e profissional (ver Debaene, 2008, p. 1676–1678; Debaene, 2019, p. 36–37; Loyer, 2015, p. 373–376). Seus dois fracassos consecutivos no Collège de France, em 1949 e depois em 1950, são supostamente a causa principal disso. “Depois desse duplo fracasso, convenci-me que eu jamais faria aquilo que se chama de carreira. Rompi com meu passado, reconstruí minha vida privada” (Lévi-Strauss, 1991, p. 76, tradução nossa). Casado novamente em 1954 depois de um longo processo de divórcio, ele se muda para um novo apartamento e sente a necessidade tanto de uma ruptura quanto de um recomeço, e a escrita de Tristes trópicos apresentará a ele a ocasião de integrar todos os odds and ends — como indica a expressão inglesa que ele tanto gostava (ver Lévi-Strauss 2008b, p. 582) — de sua vida pregressa em uma narrativa em que vão, bem ou mal, encontrar seu lugar: projeto de romance, projeto de peça de teatro, trechos de cadernos de campo que até então não tinham encontrado um destino, artigos escritos em francês mas publicados unicamente em português em versão truncada, anotações de viagem feitas durante a missão no Paquistão pela Unesco em 1950, lembranças da guerra etc.

É aqui que podemos retornar à citação da passagem “Escrito no navio”. Efetivamente, esse trecho em itálico é apenas a versão mais explícita e visível de um procedimento que opera na escala do livro, a saber a colagem e a associação entre elementos de origens e datas diferentes. Sabemos que Tristes trópicos foi escrito em apenas cinco meses (12 de outubro de 1954 a 5 de março de 1955); obviamente trata-se de um indício de uma forma de febre e fúria criativa, mas isso é possível somente porque, ao longo desses cinco meses, o trabalho de Lévi-Strauss consiste — não unicamente, mas em grande parte — em colar, costurar e reunir textos já escritos: fragmentos dos cadernos, originais franceses de artigos publicados no Brasil em português, queixas dos garimpeiros, por vezes até documentos (cartazes, anúncios etc.) — o que confirma, de resto, a primeira versão original datilografada: Lévi-Strauss colou com fita adesiva fragmentos de origem diversa, particularmente trechos de sua tese secundária, La Vie familiale et sociale des Indiens nambikwara [A vida familiar e social dos índios nambiquara], expurgados de suas notas mais técnicas e modificados com relação à concordância de tempo e pessoa (ver Debaene, 2008, p. 1695–1696).

Assim, é isso que orienta a composição de Tristes trópicos: a necessidade imperiosa de constituir um conjunto significante a partir de peças e fragmentos passados, em resposta a uma necessidade de se reinventar, fiel também a um programa intelectual que o ocupava já há quinze anos e ao qual ele não renuncia: a refundação do comparatismo em antropologia (ver Salmon 2013). Ora, constituir um conjunto significante a partir de trechos e fragmentos é um projeto eminentemente proustiano, como o próprio Lévi-Strauss observa em Olhar escutar ler:

[as] intervenções [da memória involuntária] na trama da narrativa compensam, reequilibram um processo de composição que altera sistematicamente o curso dos acontecimentos e sua ordem numa duração que, na verdade, Proust trata com desenvoltura. […] Os motivos desse parti pris não são apenas, talvez não sobretudo, de ordem filosófica ou estética. Eles são indissociáveis de uma técnica. A busca é feita de trechos escritos em circunstâncias e épocas diferentes. Trata-se, para o autor, de dispô-los numa ordem satisfatória, quero dizer, conforme à concepção que ele se faz da veracidade, pelo menos no início; mas cada vez mais difícil de ser respeitada À medida que a composição avança. Em determinadas ocasiões, é preciso trabalhar com os "restos", e os disparates se tornam mais visíveis. Ao final de O tempo redescoberto, Proust compara seu trabalho ao de uma costureira que monta um vestido com pedaços de tecido de formas já cortadas; ou, se o vestido estiver muito gasto, a remendá-lo. Da mesma maneira, ele junta as pontas em seu livro e cola os fragmentos uns aos outros "para recriar a realidade, encaixando, sobre o movimento dos ombros de um, um movimento do pescoço feito por outro", e constrói uma única sonata, uma única igreja, uma única rapariga, com as impressões recebidas de várias.

(Lévi-Strauss, 2008d, p. 1495–1496, tradução nossa)

No mais, a citação do trecho “Escrito no navio” é bastante análoga a um procedimento empregado por Proust em No caminho de Swann, quando o narrador insere em sua narrativa a descrição dos campanários de Martinville e de Vieuxvicq da maneira como foi composta, pelo jovem rapaz que era então, de imediato ao retornar de um passeio, “apesar dos solavancos do carro/da carruagem”. Todos os ingredientes estão aí: o tema (um jogo de luzes que desaparece com o crepúsculo); a coincidência entusiasta da experiência e da escrita em um momento de interrogação sobre a vocação (o narrador proustiano se diz aflito “de não ter disposições para as letras e dever renunciar a nunca ser um escritor célebre”); a ambiguidade da apresentação retrospectiva do “trecho” (“estado de graça” de uma tentativa de escrita ainda mal compreendida e marcada por certa ingenuidade, pois, por mais feliz que fosse, o rapaz ainda não sabia “que aquilo que se escondia por trás dos campanários de Martinville devia ser algo análogo a uma bela frase”) (Proust, 1987, p. 176–180; sobre a genética complexa desse “trecho”, ver Milly, 2007, tradução nossa).

Como Em busca do tempo perdido, Tristes trópicos coloca em concorrência dois princípios de organização: uma narrativa linear de exploração que encara os anos de 1935 a 1939 e que se orienta para “o ponto extremo da selvageria” antes de um “mergulho ao fundo dos tempos”, mas essa linearidade é perturbada por um outro princípio “que altera sistematicamente o curso dos acontecimentos e sua ordem numa duração” (nas palavras do próprio Lévi-Strauss acerca da narrativa proustiana): o princípio de colagem, de colocar em relação fragmentos e, portanto, lugares e tempos heterogêneos. E, efetivamente, a linearidade narrativa é constantemente interrompida em Tristes trópicos por digressões, interrupções e comparações inesperadas: a descrição do Porto Esperança, lúgubre porto fluvial do Mato Grosso, faz surgir a imagem de Fire Island, ela própria uma “Veneza às avessas” ao largo de Long Island; as noites com os garimpeiros evocam os banquetes de funcionários públicos de baixo escalão na Índia, e as anedotas do sertão, o modo de argumentar dos Ahmadi de Lahore; as moradias dos Bororo, ao mesmo tempo monumentais e frágeis, sugerem tanto a flexibilidade das habitações dos Kuki quanto as técnicas de tecelagem e de bordado que só existem na Europa em “expressões menores”. Em meio a todas essas digressões, a mais importante é aquela que, ao fim da quarta parte, nos leva a passar em um movimento de “tapete voador” da cidade arbitrária de Goiânia à cidade arbitrária de Karachi. Esses três capítulos jogam a seu bel-prazer com a variação e o vaivém, declinando as semelhanças e diferenças entre “trópicos desocupados” e “trópicos superpovoados”. (Lévi-Strauss, 2008a, p. 133, tradução nossa)

Assim se esclarecem as enigmáticas últimas linhas da primeira parte, que marcam o início da intenção propriamente autobiográfica:

Que ocorreu, afinal, senão a fuga dos anos? Rolando minhas recordações em seu fluxo, o esquecimento fez mais do que gastá-las ou enterrá-las. O profundo edifício que construiu com esses fragmentos oferece a meus passos um equilíbrio mais estável, um desenho mais claro para a minha vista. Uma ordem substituiu-se a outra. Entre essas duas escarpas que mantêm distanciados meu olhar e seu objeto, os anos que as destroem começaram a acumular os destroços. As arestas vão se arredondando, pedaços inteiros desabam; os tempos e os lugares se chocam, se justapõem ou se invertem, como os sedimentos deslocados pelos tremores de uma crosta envelhecida. Determinado pormenor, ínfimo e antigo, prorrompe como um pico, enquanto camadas inteiras de meu passado afundam sem deixar rastro. Episódios sem relação aparente, oriundos de períodos e de regiões heterogêneas, deslizam uns por cima dos outros e, de repente, imobilizam-se num semblante de castelo sobre cujas plantas um arquiteto mais sensato do que minha história teria meditado. […] De forma inesperada, entre mim e a vida o tempo alongou seu istmo; foram necessários vinte anos de esquecimento para me levarem ao tête-à-tête com uma experiência antiga cujo sentido me fora recusado, e a intimidade, roubada, outrora, por uma perseguição tão longa quanto a Terra.

(Lévi-Strauss, 2008a, p. 32)


É preciso, então, questionar-se agora sobre o que pode ter constituído para Lévi-Strauss a literatura como experiência, isto é, nessa circunstância, como trabalho de “justaposição” de “episódios sem relação aparente, oriundos de períodos e de regiões heterogêneas”, imobilizados “num semblante de castelo”. Não me interesso aqui pela consagração de Tristes trópicos, pela sua publicação como parte da coleção “Terre humaine”, pelo fato que a obra perde o prêmio Goncourt por pouco (pelo motivo de não se tratar de uma “obra de imaginação” (ver Debaene, 2008a, p. 1719) ou que tenha sido republicada mais tarde na Bibliothèque de la Pléiade. Todas essas considerações continuam sendo exteriores ao livro em si; elas abordam a recepção, a história da vida intelectual francesa, a integração de Lévi-Strauss em uma tradição que o avizinha de Montaigne, Montesquieu, Rousseau ou Chateaubriand. E seria fácil conduzir um estudo em termos de campo literário que reconstituiria as lógicas que levaram, então, à consagração de Lévi-Strauss como escritor e à importância que Tristes trópicos assumiu na redefinição de seu personagem público, incluindo até mesmo sua eleição para o Collège de France em 1960. O que me interessa aqui é o sentido que pôde assumir para Lévi-Strauss a experiência da escrita e da composição poética, o papel que puderam desempenhar em seu itinerário intelectual essa crise e o trabalho febril de combinação e associação por meio do qual “os tempos e os lugares se chocam”.

A primeira coisa que se pode dizer é que a literatura, para Lévi-Strauss em 1954, não consiste mais em “encontrar uma linguagem” para dizer uma experiência, nem tampouco “evocar o verdadeiro espírito dos nativos, numa visão autêntica da vida tribal”, para retomar as palavras de Malinowski. Talvez esse fosse o projeto em 1935 ou 1938, mas ele pressupunha uma concepção que poderíamos dizer fenomenológica do trabalho de campo, a ideia que entrar em contato com os indígenas constituiria senão uma revelação, pelo menos uma experiência com valor de fonte, rica em ensinamentos, que seria preciso em seguida extrair por meio de um trabalho combinado de análise e de rememoração. Ora, o contato com os Nambiquara é decepcionante: tentando capturar o princípio de chefia a partir dessa sociedade elementar que ele tem a sorte de observar in vivo, o etnógrafo constata que a experiência se difrata em uma coleção de relações intersubjetivas e ele deve finalmente se conformar quanto a “as nuances fugazes da personalidade que escapam à análise científica” (Lévi-Strauss, 2008a, p. 319, tradução nossa). O contato com os Mondé não é mais frutuoso:

Eu quisera ir até o ponto extremo da selvageria; não devia estar plenamente satisfeito, entre aqueles graciosos indígenas que ninguém vira antes de mim, que talvez ninguém veria depois? Ao término de um exultante percurso, eu tinha os meus selvagens. Infelizmente, eram-no demasiado! […] Tão próximos de mim quanto uma imagem no espelho, eu podia tocar-lhes, mas não compreendê-los.

(Lévi-Strauss, 2008a, p. 349)

Antes da partida, o jovem etnólogo exercia seu estilo, preocupado em “encontrar uma linguagem” que lhe permitisse compartilhar sua experiência etnográfica por vir, mas no campo ele se dá conta de que não é a linguagem que se esquiva, e sim a própria experiência. Compreendemos que, em todo caso, a literatura, para Lévi-Strauss, não poderá depender de uma poética da etnografia.

Para isso, existe uma outra razão, talvez mais profunda. A lição mais fundamental de Tristes trópicos é que esse projeto de restituição da experiência etnográfica se depara com os artifícios da narrativa, com a falsa coerência que a narrativa retrospectiva acaba sempre por construir. Em A náusea, Jean-Paul Sartre atribui ao personagem Roquentin a seguinte reflexão:

Para que o mais banal dos episódios se torne uma aventura, é preciso e basta começar a contá-lo. É isso que engana as pessoas: um homem é sempre um contador de histórias […] e busca viver sua vida como se a estivesse contando. […] Eu quis que os momentos da minha vida se sucedessem e se ordenassem como os de uma vida da qual nos lembramos. Melhor tentar apanhar o tempo pelo rabo.

(Sartre, 1972, p. 64–66, tradução nossa)

Ora, em campo, Lévi-Strauss faz uma descoberta exatamente igual: o fracasso da narrativa etnográfica não depende de início do fracasso da experiência ou de seu caráter intransmissível, e sim daquilo que ele chama de “engano da narrativa”. A narrativa factual e cronológica do estudo cria uma coerência artificial; ele converte em necessidade aquilo que é apenas acidental. O etnógrafo partiu fiando-se a romances conradianos e narrativas de exploradores, mas essas narrativas são falaciosas: não porque os exploradores são mentirosos, mas porque a narrativa retrospectiva é, por essência, uma maneira mentirosa de dar forma a algo. Eis a fonte do ódio das viagens e dos exploradores (ver Debaene, 2008, 1698–1700).

Esse tema — a mentira da narrativa — serve de plano de fundo para “A apoteose de Augusto”, peça que Lévi-Strauss começa a escrever em agosto de 1938, quando se encontra sozinho no acampamento de Campos Novos (seus companheiros de expedição ficaram para trás devido a diferentes dificuldades e os dois grupos de indígenas junto dos quais ele passava a estadia tinham se dispersado). Trata-se, explica ele, de uma nova versão de Cina, a tragédia de Pierre Corneille, criada pela primeira vez em 1641 baseada no argumento clássico da “clemência de Augusto”. Na versão imaginada por Lévi-Strauss, Cina é um explorador que retorna a Roma depois de dez anos de aventuras. Ele vem coroado por seu prestígio de aventureiro que percorreu o mundo. Os mundanos disputam sua presença em conferências e jantares, pois lhe conferem um conhecimento sem equivalente da estranheza. Assim, Cina figura indiscutivelmente o etnógrafo de volta à sua própria civilização, mas ele mesmo sabe que esse prestígio se baseia em uma mentira: Por mais que eu ponha no meu discurso todo o vazio, a insignificância de cada um desses acontecimentos, basta que ele se transforme em relato para maravilhar e fazer sonhar. No entanto, não era nada; a terra era semelhante a esta terra e os fiapos de capim, a este prado. (Lévi-Strauss, 2008a, p. 408)

Entre parênteses, resta-nos apenas o impressionamento da coincidência cronológica: quando ele se encontra isolado no planalto do Mato Grosso e obviamente não tem nenhum conhecimento do projeto de Sartre, mesmo momento em que, em Paris, é publicado A náusea, Lévi-Strauss projeta no Brasil uma peça de teatro que retoma as interrogações de Roquentin quase literalmente.

Portanto, não basta dizer que a literatura, para Lévi-Strauss, não depende de uma poética da etnografia; é preciso ler Tristes trópicos como a narrativa do abandono dessa concepção — que é, ao mesmo tempo, uma concepção do trabalho de campo, uma concepção da narrativa e uma concepção da antropologia. O que acontece, então, na escrita de Tristes trópicos e através dela? Ao compor, depois do acontecido e em um momento de crise, um mosaico a partir dos vestígios de seu passado, Lévi-Strauss experiencia em si mesmo e sobre si mesmo a lógica do sensível exposta em O pensamento selvagem e no fundamento das Mitológicas. Evocar o Novo Mundo pelo intermédio desses “odores primos irmãos” como o do “‘fumo de rolo’, folhas de tabaco fermentadas e enroladas em cordas” e o da “pimenta exótica recém-debulhada”. (Lévi-Strauss, 2008a, p. 64) ou ainda encontrar nos méis nambiquara o escalonamento dos sabores dos vinhos da Borgonha, significa jogar o jogo dessa “ciência do concreto” operante no pensamento selvagem que coloca o mundo em ordem ao articular as propriedades sensíveis dos elementos naturais. Colocando de outra maneira, mais do que a aventura, a decepção etc., o que Tristes trópicos conta é a descoberta em si dessa “lógica das sensações”, uma inteligibilidade “ajustada ao nível da percepção e da imaginação” , e que depende da “organização e […] exploração especulativas do mundo sensível em termos de sensibilidade (Lévi-Strauss, 2008b p. 575, tradução nossa). Redescobrir Chopin por meio de Debussy, associar os bordéis da época de 1900 e os templos hindus, reconhecer A sagração da primavera na música religiosa nambiquara e compreender Florença graças à mediação de Nova York significa apreender a realidade de acordo com esse plano em que as propriedades lógicas se dão como atributos das coisas.8

Nesse sentido, podemos dizer que, para Lévi-Strauss, a literatura — não como discurso, como gênero, como signo de distinção etc. — mas como passagem pela escrita, trabalho de composição, trabalho tanto formal quanto subjetivo, constituiu o início e talvez até a condição do desenvolvimento de um segundo estruturalismo (após um primeiro momento marcado por As estruturas elementares do parentesco), um estruturalismo integral cujo princípio é dado em O pensamento selvagem e cujo resultado ocupará primeiro as grandes e depois as pequenas Mitológicas, a saber uma busca de inteligibilidade a partir dos vestígios que subsistem ao termo de uma história catastrófica: mitos, classificações, modos à mesa etc. e tudo o que a coleta etnográfica pôde recolher como testemunhos de hábitos antigos, anteriores à Conquista. Pois é de fato um método desses que se pratica em Tristes trópicos, embora aplicado de início a si mesmo ou, mais exatamente, a um passado que o autor deve admitir ser o seu, mas no qual ele não se reconhece mais e que é preciso agora, a exemplo de Rousseau, “empreender lucidamente a exploração”, à procura desse “‘ele’ que se pensa em mim mesmo”.9 Se, com dezesseis anos de intervalo, tanto Tristes trópicos quanto as Mitológicas se concluem com a dissolução do sujeito conhecedor, não é antes um indício de uma convicção não empreendida ou de uma constância doutrinal de Lévi-Strauss; mas um efeito desse método que consiste, a partir de “amostras operadas do lado de fora” que são em seguida “deixadas livres para se dispor ao longo das páginas, de acordo com arranjos comandados pela maneira como eles se pensam em mim, muito mais do que a maneira como eu os determino conscientemente e com propósito deliberado ” (Lévi-Strauss, 1983, p. 327–328, tradução nossa). Assim, ao termo do trabalho, duas lições se impõem: o destaque de uma ordem sensível, revelada por justaposições que subtraem o material bruto da contingência história que havia dispersado as qualidades dessa ordem; a irrealidade de um eu que “não tem lugar entre um nós e um nada” (Lévi-Strauss, 2008a, p. 444) e não é nada mais que um “Lugar insubstancial oferecido a um pensamento anônimo para que ele possa então se manifestar” (Lévi-Strauss, 1971, p. 559, tradução nossa). E não é por acaso, obviamente, que essa busca foi empreendida por Lévi-Strauss ao fim de outra história catastrófica que conduziria até ele mesmo, ele que em poucos anos passou do estatuto de embaixador do pensamento francês no Brasil ao de exilado, fugindo das perseguições antissemitas do regime de Vichy. Talvez possamos ler a obra de 1955 como guiada de maneira subterrânea pela aproximação dessas duas experiências: a de um “[animal de] caça de campo de concentração”, que Lévi-Strauss reconstitui quinze anos mais tarde, e a dos indígenas, “pobre caça pega pela armadilha da civilização mecânica” (Lévi-Strauss, 2008a, 10, 29 ; voir Debaene, 2018 et Debaene, 2019, tradução nossa).


Chego então brevemente à questão do papel da literatura como referência na obra de Lévi-Strauss. Sabemos que a literatura, entendida aqui no senso comum de corpus literário, impregna seu trabalho não apenas nos capítulos ou artigos que são especificamente dedicados ao assunto em O olhar distanciado (Apollinaire, Chrétien de Troyes), História de lince (Montaigne) ou Olhar escutar ler (Diderot, Rimbaud, Proust, Breton), mas que ela é onipresente na forma de alusões, epígrafes, citações, aproximações inesperadas em O pensamento selvagem ou nas Mitológicas – tantos indícios de um “belo espírito” capaz de irritar certos antropólogos americanos, particularmente Clifford Geertz (ver Geertz, 1988, p. 25–48). É difícil a questão do papel desempenhado por essas referências, além de não ser certo que elas sejam passíveis de uma interpretação geral pelos motivos já mencionados: tal análise tende a imobilizar as coisas em uma oposição entre referências eruditas e referências literárias — de um lado, Boas, do outro, Rousseau; de um lado, Troubetzkoy ou Mauss, do outro, Montaigne ou Baudelaire — quando Lévi-Strauss precisamente não trabalha dessa maneira. O que mais impressiona é a extrema disponibilidade desse conhecimento das obras e a indistinção dos usos: Kroeber e Balzac, Darcy Ribeiro e Ingres. Em uma primeira análise, podemos antes acrescentar a literatura à concepção de arte que vem à tona em Tristes trópicos e que será exposta mais diretamente no segundo capítulo de O pensamento selvagem. Trata-se de fazer da frequentação das obras uma experiência de conhecimento, não em virtude dos conteúdos que nelas encontramos e de seu caráter eventualmente “documental”, mas, ao contrário, em razão da elaboração secundária que toda arte supõe: a arte se faz como lugar de um saber, envolvendo ao mesmo tempo a sensibilidade e o entendimento.

O espaço possui seus valores próprios, assim como os sons e os perfumes têm cor, e os sentimentos, um peso. Essa busca de correspondências não é um jogo de poeta ou uma mistificação (assim como se ousou escrevê-lo a respeito do soneto das vogais, hoje exemplo clássico para o linguista que conhece o fundamento — não da cor dos fonemas, variável segundo os indivíduos, mas da relação que os une e que admite uma gama limitada de possíveis); ela propõe ao cientista o terreno mais novo e aquele cuja exploração ainda pode lhe proporcionar ricas descobertas. […] a obra do pintor, do poeta ou do músico, os mitos e os símbolos do selvagem devem afigurar-se-nos, se não como uma forma superior de conhecimento, pelo menos como a mais fundamental, a única verdadeiramente comum, e cujo pensamento científico constitui apenas a ponta afiada: mais penetrante porque amolada na pedra dos fatos, mas às custas de uma perda de substância; e cuja eficácia decorre de seu poder de penetrar com suficiente profundidade para que a massa da ferramenta acompanhe por completo a ponta.

(Lévi-Strauss, 2008a, p. 111)

A obra de arte modeliza a experiência não por meio da referência a uma exterioridade, mas recolhendo-se em si mesma para encontrar ecos em outro domínio do sensível, à maneira que as linhagens humanas e as distribuições das espécies estruturam uma à outra em determinada cosmogonia.

Assim, a arte, incluindo a literatura, permite capturar em uma síntese sensível as propriedades que a ciência, contrariamente, visa isolar analiticamente. Portanto, para Lévi-Strauss, não há ruptura ou conflito entre a ciência e a arte: “ A arte se insere no meio do caminho entre o conhecimento científico e o pensamento mítico ou mágico (Lévi-Strauss, 2008b p. 585, tradução nossa). Quando a ciência liberta as propriedades formais da matéria ou do espírito humano, quando o pensamento mítico organiza o mundo a partir de dados da experiência sensível, a arte, por sua vez, opera diretamente na diversidade do mundo (como a bricolagem ou o pensamento mítico), mas produz ao mesmo tempo um artefato que é, para o espectador, para o auditor ou para o leitor, o objeto de uma experimentação graças à qual, em uma síntese imediatamente dada à percepção, “o conhecimento do todo precede do conhecimento das partes”. (Lévi-Strauss, 2008b, p. 582 ; voir aussi Charbonnier, 1961, p. 105–120, tradução nossa)”

Com base nisso, podemos distinguir dois conjuntos de referências literárias no trabalho de Lévi-Strauss. De um lado, as obras que se esforçam para reconstituir por meio da combinação uma totalidade portadora de um sentido superior e irredutível à soma das partes; é o que fascina Lévi-Strauss na obra de Balzac e Proust, o primeiro muito presente em O pensamento selvagem e nas Mitológicas, e o segundo talvez constituindo menos uma referência do que a fonte de uma verdadeira impregnação cujas manifestações são múltiplas (nem todas elas conscientes, presumivelmente, a exemplo de certos fenômenos prosódicos, do ressurgimento de certas imagens (a ideia de “chão mental”, por exemplo) ou de certos procedimentos como a colagem do trecho “Escrito no navio” que provavelmente não é diretamente imitado dos campanários de Martinville). Por outro lado, as obras que, em uma perspectiva francamente mallarmeana, empenham-se em “remunerar a falha da língua” (Mallarmé, 2003, p. 208), isto é, em compensar um atributo arbitrário do signo que, no seio de uma determinada língua e cultura, “mesmo assim ele conserva um valor próprio, um conteúdo independente que se combina com a função significante para modulá-la” (Lévi-Strauss, 1958, p. 108). Com isso se explicam as referências à poesia de Baudelaire e Rimbaud ou ao surrealismo. Para Lévi-Strauss, essas últimas obras encontram uma verdade que o primeiro estruturalismo, inspirado diretamente em demasia da fonologia, havia negligenciado. Este último postulava efetivamente um nível de não-sentido — o nível fonemático — a partir do qual a língua fabrica sentido. Mas a “crise” dos anos 1950 — da qual a escrita de Tristes trópicos é ao mesmo tempo um sintoma e uma consequência — tem também uma vertente teórica que, quanto a esse ponto preciso, se traduz por uma inflexão (ver Benoist, 2008; Debaene, 2022). Encontramos traço disso particularmente no capítulo V de Antropologia estrutural, em um acréscimo tardio (em 1956) a uma coletânea de concepção antiga: “o caráter arbitrário do signo linguístico é apenas temporário. O signo, uma vez criado, tem sua vocação especificada, de um lado em função da estrutura natural do cérebro e, do outro, em relação ao conjunto dos demais signos, isto é, do universo da língua, que tende naturalmente para o sistema”. (Lévi-Strauss, 1958, p. 108; sobre esse ponto, ver também Lévi-Strauss, 1983, p. 191–201 e Lévi-Strauss 2008c, p. 1181–1182).

Para ilustrar seu propósito, Lévi-Strauss não remete apenas a Mallarmé, mas também aos dois primeiros tomos de La règle du jeu [A regra do jogo] de Michel Leiris, Biffures [Exclusões] (1942) e Fourbis [Apetrechos] (1957), onde nos enganaríamos, diz ele, de “ver nisso um jogo poético” pois iniciam “o estudo dessa estruturação inconsciente do vocabulário, cuja teoria científica resta por fazer” (Lévi-Strauss, 1958, p. 107–108). A convocação dessas obras poéticas no trabalho antropológico não tem, portanto, nada de um aceno entre letrados. Ao explorar as virtualidades de uma língua que elas fazem surgir como um conjunto ao mesmo tempo sistemático, sensível e conversível (isto é, em uma relação de transformação regulada com outras sistematicidades), elas fornecem à antropologia tanto um lembrete quanto um recurso, talvez também a ocasião de se tranquilizar quanto ao aspecto bem fundado de seu projeto e de sua empreitada, pois é mesmo essa convertibilidade das sistematicidades entre elas que garante que “O objeto da antropologia dá oportunidade ao método empregado para compreendê-lo.” (Salmon, 2013, p. 13) — em outras palavras, que o risco de projeção que ameaça todo discurso antropológico constitui por certo um perigo, mas não uma fatalidade.


O percurso de Lévi-Strauss em sua relação com as obras e mais ainda com as formas literárias — do projeto de “romance conradiano” à colagem proustiana e sua teorização — mostra que a questão da poética da etnografia (“encontrar uma linguagem”) não é a única via de entrada no problema das relações entre literatura e antropologia, e talvez não seja a mais interessante ou a mais frutuosa. Na realidade, é impressionante constatar a que ponto o questionamento pós-moderno — a poética da etnografia, para retomar parte do subtítulo de A escrita da cultura – permanece muitas vezes arrimada a uma concepção pré-moderna da literatura: como dizer? Como transmitir? Que figuras de estilo escolher? Como ter certeza de se fazer entender? Como ter certeza de não causar nenhuma violência aos objetos e aos públicos? É notável que Lévi-Strauss o clássico, o acadêmico, o espírito do século XIX extraviado no século XX e até mesmo no século XXI (como ele mesmo se descreveu em diversas ocasiões) tinha ao menos guardado a lição moderna que faz da literatura não um trabalho de representação, mas uma exigência e um desafio a reerguer: uma experiência total, tanto subjetiva quanto de linguagem, cuja questão está em redispor o pensamento.