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Seria a psicanálise uma pseudociência?

Uma reflexão epistemológica sobre a crítica à cientificidade da psicanálise1

Apresentação do problema: a psicanálise sob fogo cruzado

Rogério Barbosa

Sabemos que o debate sobre a cientificidade da psicanálise não é novo. Como aponta Renato Mezan, não foi somente contra a descoberta da sexualidade infantil que se erigiram críticas à psicanálise.2 O pensamento de Freud foi desde o início tomado como especulativo e, metodologicamente, pouco rigoroso. As críticas de seus opositores fizeram com que o próprio Freud se incumbisse de prestar contas sobre o seu empreendimento. Vemos isso em um texto tão antigo na história da psicanálise quanto “Resposta às críticas a meu artigo sobre neurose de angústia”, de 1896, no qual Freud responde as críticas do psiquiatra Leopold Lowenfeld sobre a validade desse diagnóstico.3 Ao longo de toda sua vida como psicanalista, Freud continuará a se haver com esses problemas e dedica passagens importantes de alguns textos centrais para tratar da questão. Apenas para ficar com alguns que cobrem momentos diversos de sua obra, podemos lembrar do início de “As pulsões e seus destinos”, de 1915,4 da conferência “A questão da Weltanschauung” de 19325 ou do texto “Construções em análise”, de 1937.6

Mesmo sendo antigo, há bons motivos para dizer que esse debate está vivo na atualidade. Diante de desafios de gestão pública no combate à pandemia de covid-19 no Brasil, da promoção de políticas de saúde ineficazes por parte do Estado e da adesão significativa da população a teorias insustentáveis a respeito do vírus, das vacinas e da melhor maneira de gerir a situação sanitária do país, vimos tanto no domínio acadêmico como no debate público discussões acaloradas sobre a necessidade de defender a ciência e demarcar seu território para que possamos diferenciá-la de práticas pseudocientíficas. A situação da pandemia em território nacional seria apenas um exemplo do problema maior sobre o lugar da ciência em nossas sociedades contemporâneas, em um momento que ela não goza mais da mesma autoridade que lhe foi conferida outrora.

Nesse contexto, devemos levar a sério críticas que questionem a cientificidade da psicanálise. Um autor importante no qual encontramos essa crítica é o filósofo da ciência Adolph Grünbaum. Seu primeiro livro sobre psicanálise foi publicado em 1984 e causou tamanho alvoroço na comunidade psicanalítica que, já em 1986, o então presidente da International Psychoanalitycal Association (IPA) Robert Wallerstein dedicou sua conferência no principal encontro da associação para responder as críticas do filósofo.7 Muitas outras respostas a Grünbaum se seguiram dessa, a ponto do autor publicar, em 1993, um novo livro para reiterar sua crítica à psicanálise e responder seus opositores.8

Grünbaum diz que não é possível aferir a eficácia do tratamento psicanalítico uma vez que sua validação em Freud, mas também nos pós-freudianos, ocorre unicamente pela observação clínica. O dado clínico se aproximaria do dado anedótico, que comparece antes como uma forma de validar oportunamente teorias pressupostas pelo clínico do que como forma eficaz de testá-las. O filósofo diz que a única maneira de verificar a eficácia da psicanálise seria usando métodos epidemiológicos e ensaios clínicos com grupos controle para isolarmos as variáveis em jogo na melhora do paciente. O mesmo serviria para as outras teses psicanalíticas sobre o funcionamento psíquico: como se baseiam em dados anedóticos fornecidos pela prática clínica, deveriam buscar um lastro experimental para sua comprovação, sendo sugerido pelo filósofo estudos interdisciplinares com a área da neurociência para alcançar esse objetivo. Não atendendo a esses critérios de empiria e cientificidade, a psicanálise deveria ser descreditada como forma válida de compreensão e tratamento do ser humano, sendo injustificável seu financiamento por planos de saúde privados e sistemas de saúde públicos, devendo ela ser relegada ao descrédito junto a outras práticas pseudocientíficas em saúde.

Há, porém, o outro polo do debate. Se existem aqueles que censuram a psicanálise por ela ser científica de menos (ou pseudocientífica), há também aqueles que a censuram por ser científica demais (cientificista).9 Esses últimos dizem que o problema da psicanálise é justamente a redução que ela opera do ser humano ao modelo explicativo das ciências naturais. Para eles, a psicanálise nunca estará apta a produzir um conhecimento válido sobre o psíquico enquanto tentar explicá-lo por relações mecanicistas de causa e efeito. O humano só pode ser entendido quando o compreendemos em suas relações de sentido.10

É curioso notar como essa crítica à psicanálise reúne em torno de si pensadores de escolas diversas, mas cujas afinidades já são conhecidas: hermenêutica, fenomenologia e existencialismo. Isso fica evidente quando lembramos alguns dos autores que enveredaram por essa leitura da obra de Freud: Politzer,11 Dalbiez,12 Ludwig Binswanger,13 Jean Hyppolite,14 Paul Ricoeur,15 além do já citado Boss. É uma leitura que gozou de prestígio na recepção francesa da psicanálise na metade do século XX, em especial nas ciências humanas e na filosofia.

É verdade que essa leitura da psicanálise não goza hoje da hegemonia e poder daquela que a crítica por ser pseudocientífica. Ainda assim, ela tem uma capilaridade que não deve ser ignorada. Sua presença dentro da própria comunidade psicanalítica pode ser vista em diversas respostas de psicanalistas aos vetos de Grünbaum, retomando o posicionamento dos autores citados no parágrafo anterior para refugiar a psicanálise no domínio da hermenêutica, distinto por princípio do reino das causalidades das ciências naturais.16

Ainda nesse sentido, agora em solo nacional, vimos reações nada amistosas de psicanalistas à neuropsicanálise, disciplina que tenta reunir os esforços da psicanálise e da neurociência na investigação do humano. Na ocasião da vinda ao Brasil de Mark Solms, um dos criadores da neuropsicanálise, e da publicação de uma entrevista com ele no jornal Folha de S.Paulo, o psicanalista Jorge Forbes e o neurologista Daniele Riva publicaram um texto intitulado “Complexo de cientista”. Nesse texto, a dupla diz que Freud abandonou cedo suas pretensões cientificistas e o estudo do cérebro para se dedicar a uma investigação do psiquismo centrada em explorar o reino dos sentidos, que a saída do cientificismo e entrada no reino interpretativo é a pedra fundamental da psicanálise e que retornar as ciências seria um passo atrás em sua história,17 censurando assim os esforços interdisciplinares da neuropsicanálise.18 Além disso, vemos ecos dessa crítica ao cientificismo em outros posicionamentos mais contemporâneos, como o de autores ligados ao pós-estruturalismo e as reflexões decoloniais que, em seus comentários à psicanálise, criticam sua aspiração de objetividade, apontando o etnocentrismo da ciência ocidental que toma a sua matriz cognoscente como universal e superior às outras.19

Aqui chegamos a um ponto importante: há diversas maneiras de se posicionar diante de uma crítica. Por exemplo, diante da acusação de pseudocientificidade da psicanálise, psicanalistas poderiam atender aos critérios dessa crítica e dizer que a psicanálise precisa de fato se adequar a determinadas métricas para ser chamada de ciência. Por outro lado, é possível resistir à crítica, dizendo que a psicanálise não deve atender a esses vetos e defendendo um tipo de validação epistemológica outra que não a proposta por Grünbaum. Isso também vale para o outro lado: diante das acusações de cientificismo e da exigência de que a psicanálise expurgue seus avatares positivistas, mecanicistas e tudo mais, psicanalistas podem adequar a psicanálise a esses ditames anticientificistas ou apontar para os problemas que eles trariam para pesquisa e prática psicanalíticas.

Para que o posicionamento diante dessas críticas não seja um ato automático decorrente da filiação prévia e irrefletida a uma escola de pensamento, é necessária uma reflexão epistemológica como defendida por Gérard Lebrun.20 O filósofo distingue a reflexão racionalista sobre a ciência de uma reflexão epistemológica sobre as ciências. Na primeira, a Razão é anterior à própria ciência, sendo a ciência apenas mandatária da Razão no descobrimento da Verdade. O exemplo maior desse estilo para Lebrun é o cartesianismo que, partindo de noções filosoficamente construídas sobre a natureza do sujeito, dos objetos e do conhecimento, deriva um método como forma garantida de se chegar á Verdade do mundo. Já na reflexão epistemológica das ciências entende-se que um campo de racionalidade é instaurado pela prática científica e que diversos campos científicos podem coexistir com legitimidade, uma vez que não há uma razão anterior a eles para apontar quem é a sua legítima representante. Nesse entendimento, a ciência não descobre a verdade, mas a engendra. Analisa-se cada campo do conhecimento não com um critério prévio de Razão, Verdade e ciência a fim de julgá-lo pela proximidade ou distância que guarda dessa métrica pré-estabelecida. Um campo científico deve ser avaliado pelos resultados que produz em atividade, pelas consequências que engendra, sendo os critérios de avaliação desses resultados um objeto de discussão antes filosófico do que científico. Não existindo um índice transcendental, dogmático ou técnico para optar por uma matriz epistemológica em detrimento de outra, sua eleição estará inevitavelmente atrelada à reflexão filosófica, ao debate público e à vida democrática.21

Nas próximas sessões deste artigo, exploraremos a crítica dos autores que acusam a psicanálise de ser uma pseudociência, especialmente Adolf Grünbaum. A reflexão aqui pretendida também se beneficiaria de uma análise epistemológica de mesmo estilo da crítica à psicanálise que a acusa de cientificismo e requer que ela espante do seu domínio os fantasmas das ciências naturais. O perfilamento das análises dessas duas críticas serviria para enfatizar como a assunção de diferentes modelos epistemológicos promove críticas absolutamente diversas à psicanálise, com diferentes horizontes para aquela que seria a psicanálise “consertada”, livre dos males que a crítica aponta. Enfileirar as críticas traria à tona como vários modelos epistemológicos são possíveis para a psicanálise, cada um deles com seus alcances e limites a serem avaliados. Porém, isso excederia em muito o espaço destinado a este artigo.

Os vetos de Grünbaum: a psicanálise como ciência estatístico‑experimental

A crítica à psicanálise que a censura por ser pseudocientífica não começa com Grünbaum. Mezan traça um breve histórico dessas críticas e, seguindo Marshall Edelson, divide-o em três momentos.22 O primeiro seria a recepção da psicanálise pelo positivismo lógico, encarnada em um colóquio organizado por Ernst Nagel em 1959. Um segundo seria a crítica de Popper em textos dispersos entre o final dos anos 1950 e início dos 1960, no qual o filósofo da ciência recrimina a teoria psicanalítica por não ser possível submetê-la a testes que pudessem refutar suas hipóteses. O terceiro é, dentre as críticas feitas por essa tradição à psicanálise, a mais robusta: aquela formulada por Grünbaum primeiro em um livro de 1984 e depois retomada em um livro de 1993. Privilegiaremos esse autor não apenas por entender que ele é, dentre esses críticos, o mais sólido e aquele com maior conhecimento da obra freudiana, mas também porque sua crítica é a de maior repercussão e compartilha dos critérios de cientificidade de outras importantes críticas contemporâneas à validade epistêmica da psicanálise.

Ainda que o argumento de Grünbaum seja extenso e tenha suas complexidades, ele pode ser resumido da seguinte forma: a psicanálise não atenderia a critérios mínimos de cientificidade uma vez que não pode, pelo método clínico, ter um controle de variáveis em jogo no atendimento de um paciente para saber se a) as relações causais pleiteadas pela teoria são válidas e b) o tratamento psicanalítico é eficiente. Grünbaum defende ainda que sua crítica à relação entre teoria e o método clínico derrubaria o fundamento não apenas da psicanálise de Freud, mas de todos os desenvolvimentos pós-freudianos da psicanálise, que se sustentam nessa mesma viga.23 Isso sendo provado, a psicanálise seria um exercício especulativo irresponsável, indispondo de critérios empíricos válidos para a confirmação de suas teses sobre o funcionamento psíquico ou mesmo para sustentar a eficácia do tratamento psicanalítico e, assim, devendo ser relegada ao domínio das pseudociências e perder sua credibilidade.24

Tomemos como exemplo a análise que Grünbaum faz da seguinte tese psicanalítica: “o levantamento das repressões e a vinda à consciência de conteúdos inconscientes alivia os sintomas do paciente”. Como sabemos da validade de uma afirmação como essa? Segundo o filósofo, Freud sustenta a validade dessa tese tendo em vista as experiências com catarse nas pacientes histéricas no período em que Freud ainda usava da hipnose ou, posteriormente, o fato de insights dos conteúdos reprimidos durante as sessões em psicanálise serem sucedidos de uma melhora clínica. Grünbaum afirma que essa validação não consegue se diferenciar de uma prova do tipo post hoc ergo propter hoc: que um evento tenha se seguido de outro não quer dizer necessariamente que ele tenha sido causado pelo primeiro.

Expliquemos. Entre seu estado de enfermidade e sua melhora, o paciente passou pela catarse hipnótica ou pelo insight, mas também pode ter mudado a alimentação, feito compras, começado uma rotina de exercícios físicos e passado pelas inúmeras coisas que passamos todos os dias. O que nos garante que sua melhora se deve ao processo analítico e não outra variável dessas? Segundo Grünbaum, nada, e a psicanálise não tem, pelo método clínico, como isolar essas inúmeras variáveis que influenciam na saúde dos pacientes. Com isso, a psicanálise não conseguiria diferenciar os seus resultados de um mero efeito placebo, no qual a melhora do paciente se dá por motivos outros que não a intervenção médica em questão.25 26

Não se restringindo apenas à teoria do recalque e sua relação com a produção da neurose, o filósofo revisita outras teses teóricas da psicanálise que teriam como único lastro empírico a observação anedótica e não controlada feita na clínica.27 É o caso das teorias a respeito da associação livre como método para se chegar aos conteúdos inconscientes28 e também da teoria do sonho como realização de desejo.29 Como essas duas hipóteses psicanalíticas não tem uma base empírica experimental que poderia pô-las a prova, elas são suspeitas de serem apenas uma ficção teórica dos psicanalistas, que a comprovam com dados clínicos colhidos e narrados de forma oportuna para que correspondam a uma teoria pré-estabelecida.

Porém, haveria uma salvação para a psicanálise:

Eu não descarto a possibilidade de que, apesar da fraqueza dos principais argumentos clínicos de Freud, sua imaginação teórica brilhante pode, no entanto, ter levado a insights corretos em alguns aspectos importantes. Portanto, eu permito que uma reivindicação substancial para algumas de suas ideias chaves possa talvez ainda vir de investigações extraclínicas bem desenhadas, sejam elas epidemiológicas ou experimentais. […] Em segundo lugar, se uma nova fundamentação confiável for alcançada para a teoria de Freud, é essencial ter uma clara apreciação da amplitude e profundidade das dificuldades que se colocam para as suas defesas existentes.30

Se o método clínico não pode fornecer a validação científica para psicanálise, ela poderia recorrer aos métodos experimentais e epidemiológicos para tal. Os métodos experimentais são justamente aqueles nos quais é possível testar a veracidade das relações causais alegadas pela psicanálise sem a interferência de variáveis intrusas que podem contaminar o resultado. Um exemplo de um estudo desse tipo é aquele realizado por Shevrin e sua equipe de pesquisa. Misturando metodologias psicanalíticas (entrevistas diagnósticas) e da neurociência (mensuração do funcionamento cerebral por algumas escalas), eles confirmaram uma relação entre conteúdo reprimido e reação sintomática que sustenta a teoria da repressão e do inconsciente em Freud.31 32

Os métodos epidemiológicos, por outro lado, são aqueles em que se comparam os efeitos de uma intervenção em saúde com as intervenções concorrentes para casos semelhantes (normalmente intervenções já estabelecidas como padrão), grupos controle e grupos placebo. Assim, em um modelo muito próximo ao dos Radomized Controled Trials (RCTs) usados em outras áreas da medicina33 , separa-se o grupo de intervenção de grupos controle e avalia-se a redução dos sintomas, o tempo necessário para o tratamento apresentar efetividade, a duração dos efeitos do tratamento depois que ele cessa etc. Depois de realizar esse tipo de estudo com grandes amostragens, faz-se revisões sistemáticas e metanálises reunindo os resultados de vários deles a fim de aumentar a amostra do estudo e com isso minimizar as chances de a amostra ser atípica, facilitando o reconhecimento de outliers, diminuindo a margem de erro e com isso dando mais precisão ao estudo. Amostragens grandes dão mais confiabilidade na avaliação, tentando substituir o controle de variáveis que temos no método experimental por uma correlação estatística forte que não se confunda com o acaso. Esse tipo de procedimento (o tripé RCT, revisão sistemática e metanálise) é o padrão ouro de fundamentação do movimento “Medicina Baseada em Evidências”, que desfruta da hegemonia hoje nas metodologias de produção de conhecimento na área da saúde. A psicanálise também tem se submetido a esse tipo de testagem, ainda que um veredito final sobre a sua maior eficácia em relação a outras abordagens seja muito polêmico.34

Agora, atentemo-nos às consequências em adotar esses critérios de validade epistemológica. O primeiro ponto a se ressaltar é que o modelo de validação experimental de teorias científicas, por ser reprodutível, abre o conhecimento ao escrutínio público. A partir do momento em que uma tese pode ser testada e avaliada por qualquer pessoa que siga a mesma metodologia, o conhecimento científico foge dos riscos do personalismo e do esoterismo.35 Por ser anônimo (a validade do experimento não depende da pessoa que o realizou), o conhecimento gerado por método experimental não deixa a população à mercê de um detentor do saber, o que levaria a um risco de sofrer dinâmicas verticalizadas de poder onde um “iluminado” tem acesso ao saber que os outros não tem.

Além disso, a possibilidade de isolar variáveis no método experimental previne alguns erros que o pensamento especulativo pode incorrer. O primeiro, já apontado por Grünbaum, é o de tomar a sucessão cronológica de eventos como relações de causa e efeito entre eles. Quando uma mãe religiosa joga água benta no filho antes de ele sair para uma viagem e ele, depois de uma semana, retorna vivo, alguém poderia ficar tentado a afirmar que sua volta com segurança para casa é decorrente da benção, mas não é esse o caso. O segundo é que o pensamento especulativo, na compulsão em dar sentido ao todo, pode criar uma teoria que, apesar de dar conta de explicar todos os fatos com que lida, é inconsistente simplesmente porque deixou de fora de sua consideração fatos desconhecidos (ou propositalmente ignorados) que desafiariam sua teoria. Os diversos estudos sobre viés cognitivo têm mostrado a facilidade com que nós, seres humanos, incorremos em autoenganos teóricos e científicos, especialmente quando existem bons motivos para que nos enganemos. É o que mostram os estudos em Viés de Proteção da Identidade (Idendity Protective Bias), nos quais vemos como sujeitos tendem a creditar ou desconsiderar seletivamente evidências em favor de preservar teorias que refletem as crenças do grupo social que pertencem.36

É necessário lembrar que os métodos estatísticos experimentais são um dos padrões de legitimidade científica de maior hegemonia hoje. Para tomar um exemplo da força desse paradigma epistêmico, vejamos os debates sobre o financiamento de práticas em saúde mental pelo Estado na Inglaterra. Desde a década de 1980 vemos censuras enérgicas à psicanálise como forma de tratamento disponível pelo National Health Service (NHS). Acusa-se a psicanálise de ser uma terapia que não é compatível com a cultura de racionalidade e responsabilidade dos gastos [accountability] do NHS. O principal argumento que sustenta essa incompatibilidade é o de que a psicanálise não apresenta pesquisas de ensaios clínicos comparando a sua eficácia com a de outros tratamentos concorrentes. Dessa forma, não teríamos evidências estatísticas de que seu efeito é não só melhor do que outros tratamentos, mas mesmo superior a um mero placebo.37 Em um sistema de saúde altamente racionalizado e metrificado que disponibiliza os tratamentos tendo em vista um cálculo que leva em conta o custo das intervenções e o benefício que elas trazem aos favorecidos, a ausência de estudos de ensaio clínico desse tipo é altamente desfavorável à inclusão da psicanálise. Os autores que censuram a inclusão da psicanálise como tratamento disponível no NHS recuperam o outro argumento que vimos em Grünbaum: a psicanálise não teria formas confiáveis de confirmar seus conceitos base (Édipo, Id, Ego, Superego, etc.) uma vez que sua teoria não é nem testável e nem refutável experimentalmente.38 Com isso, a psicanálise poderia ter o mesmo fim da homeopatia que, recentemente, saiu da lista de tratamentos disponíveis pelo NHS por não apresentar evidências de sua eficácia.39

Sob pressão semelhante, a sociedade psicanalítica alemã tem produzido pesquisas com resultados tão controversos no meio, quanto interessantes. Marianne Leuzinger-Bohleber, Ulrich Stuhr, Bernhard Rüger e Manfred E. Beutel aplicaram múltiplos procedimentos de investigação para avaliar a eficácia de tratamentos psicanalíticos, realizados na Alemanha entre 1990 e 1993.40 Como complemento a um amplo levantamento estatístico por meio de questionários, os pesquisadores cotejaram dados de entrevistas com 194 pacientes com a avaliação dos próprios terapeutas, além de especialistas psicanalistas e não psicanalistas. Ademais, levantaram informações sobre a situação social, econômica e, sobretudo, despesas médicas, antes e depois do processo analítico, incluindo-se dados objetivos dos convênios médicos, em especial, faltas no trabalho por motivo de saúde, consultas médicas e visitas em hospitais. Com isso, foi possível verificar não apenas alívio duradouro de sintomas, mas diminuição geral dos custos com tratamentos de saúde, bem como averiguar níveis de satisfação com a análise e melhoras na qualidade global de vida de cerca de 70% dos psicanalisados. Digno de nota é o fato que os psicanalistas se mostraram mais críticos a respeito dos tratamentos: 76% dos pacientes declararam-se satisfeitos com os resultados de sua análise, contra apenas 64% dos psicanalistas contentes com seu trabalho. Esse seria um exemplo em que membros da comunidade psicanalítica dialogam com as críticas vindas de uma matriz epistêmica cujo critério de validação científica é o de comparação da eficácia das intervenções por meio de instrumentos estatísticos e dados mensuráveis.

É verdade que, se existirem bons motivos para não tomar esse modelo epistêmico como única forma legítima de se produzir conhecimento, devemos nos opor a incorporação total da psicanálise a esses moldes e propor outros. Ainda assim, é fundamental perceber que esse é o modelo vencedor hoje e que, se desejamos nos opor a ele, é necessário estar em condições de diálogo para fazer sua crítica. Se a psicanálise recusar o diálogo com esses modelos experimentais e estatísticos mencionados e abandonar os espaços de produção científica hegemônica, ela estará condenada ao isolamento dentro dos consultórios privados, do meio restrito das escolas de formação em psicanálise e, com sorte, dos departamentos de ciências humanas que a abrigarem diante da expulsão dos departamentos da área da saúde e psicologia. Esse processo de isolamento já acontece, em maior ou menor grau, em vários países. O preço do encastelamento arrogante em palavras de ordem sobre a oposição da psicanálise à ciência ocidental, a impossibilidade de incorporá-la à Ciência ou tantas outras bravatas que muitas vezes soam como puro e simples negacionismo pode ser a marginalização e o ostracismo.

Enfim, vamos aos problemas do método experimental. Não são todos os objetos do conhecimento que podem ser submetidos a malha fina dos experimentos. Fenômenos de causalidade complexa, de duração muito prolongada e que são impassíveis de reprodução (a revolução francesa, a eleição de Bolsonaro, a função social da guerra entre os tupinambás, etc.) são dificilmente adaptados a um desenho de estudo experimental. Como produzir conhecimento diante deles? Mezan defende que tanto Darwin como Freud lidaram com objetos científicos desse tipo e tiveram de apelar para o que chamamos mais acima de “pensamento especulativo”. Os dois pensadores criaram teorias capazes de dar uma explicação crível aos eventos dispersos que lidavam, dando coesão a fenômenos esparsos que estudavam partindo de teorias hipotéticas basilares cuja comprovação experimental não dispunham. No caso de Darwin, sua teoria da seleção natural era a mais capaz de dar uma explicação plausível à coleção de dados geológicos, morfológicos e taxonômicos que dispunha, enquanto a teoria de Freud sobre o funcionamento das diversas instâncias do aparelho psíquico e do inconsciente desenhava as ligações entre os fenômenos que lidava: sintomas, dados clínicos, sonhos, dados sociológicos, conteúdos de associação livre, etc.41

Vale lembrar que Freud, desde os primórdios da psicanálise até suas últimas obras, advertia sobre a necessidade de se trabalhar com a ideia de uma trama de causações (Netzwerk der Verursachungen), ou seja, com mais de uma hipótese elucidativa, quando se trata de fenômenos subjetivos, como as manifestações do inconsciente, ou eventos históricos, sociais e culturais. Explicações simplistas de causa e efeito facilmente identificáveis seriam, para ele, uma ilusão, um limite da razão humana, intimidada pela imensa complexidade dos fatos: “Para nossa necessidade causal (que é imperiosa, sem dúvida) basta que cada acontecimento tenha uma só causa verificável. Mas na realidade que está fora de nós isso dificilmente ocorre; cada acontecimento parece ser sobredeterminado, mostra-se como efeito de várias causas convergentes”.42

Os limites do método experimental para alguns objetos científicos podem ser vistos em um recente estudo conduzido por Brian Nosek e sua equipe da “Open Science Collaboration”. Eles replicaram 100 estudos experimentais e correlacionais (que usam ferramentas estatísticas) em psicologia publicados em revistas especializadas para avaliar a validade das teses ali apresentadas. O resultado foi o seguinte: enquanto 97% dos estudos originais apresentavam resultados significativos para suas reivindicações científicas, apenas 36% das replicações tiveram o mesmo tipo de resultado, sendo que, dentro desses 36%, 83% desses resultados eram menos intensos. Os autores insistem que isso não leva à conclusão de que a psicologia experimental ou o método científico são farsas e entendem que seu estudo aponta principalmente para problemas como o viés de publicação dos jornais científicos (resultados positivos, novos e mais intensos são aqueles mais desejados para publicação).43 Podemos conjecturar, porém, que a disparidade de resultados dos estudos experimentais replicados apresentados nessa pesquisa apontam para limites do método experimental quando aplicado para fenômenos desse tipo. Isso tem um efeito direto sobre a possibilidade de generalização dos achados, que passam cada vez mais a ser restritos ao caso específico em que foram encontrados.

Uma outra discussão é se os ensaios clínicos randomizados e as revisões sistemáticas e meta análises que neles se baseiam seriam desenhos de estudo adequados para se avaliar a eficácia de um tratamento psicológico. Já existe alguma discussão sobre isso no campo de tratamentos por psicodélicos acompanhados por psicoterapia. Pesquisadores como Eduardo Schenberg argumentam que exigências dos ensaios clínicos tais como o mascaramento acabariam por distorcer a avaliação dos tratamentos psicoterapêuticos acompanhados por psicodélicos, uma vez que fatores como a expectativa positiva do paciente sobre o tratamento, a qualidade do vínculo com o médico e o próprio efeito placebo são partes constituintes do tratamento que se quer avaliar, sendo a tentativa de anulá-las uma deturpação do próprio objeto de estudo.44 Assim, seria necessária uma reflexão desse tipo sobre a legitimidade desses desenhos de estudo para o campo das psicoterapias e da psicanálise.

Uma dessas reflexões é sobre os critérios de eficácia estabelecidos pelos ensaios clínicos. O critério de eficiência clínica deles se norteia normalmente pela capacidade do tratamento em remitir os sintomas do quadro estudando. Para isso, eles se baseiam nas classificações diagnósticas do manual da Associação de Psiquiatria Americana, o DSM. Por vezes, também se utiliza nesses estudos escalas psicométricas que visam dar um indicador objetivo para quadros de ansiedade e depressão e a sua melhora durante o tratamento. Uma discussão importante para a psicanálise é se ela, na direção que dá ao tratamento, almeja esses mesmos critérios de eficiência.45 Mesmo discordando deles, a comunidade psicanalítica deveria se preocupar em estabelecer seus critérios de eficácia e fornecer indicadores de eficiência que não sejam apenas a avaliação privada e inquestionável do clínico. Com o objetivo de abrir a psicanálise a um escrutínio científico menos suspeito, mais público e democrático, medidas como essa seriam interessantes.

Para além das dificuldades em se creditar o método clínico como fundamento de teorias científicas, não seria também arriscado confiar como única comprovação de uma teoria procedimentos impassíveis de reprodução e que temos que dar um voto de confiança prévio no relato de alguém que está interessado em comprovar o funcionamento da psicanálise? Assim como teríamos motivos para desconfiar dos testes sobre a eficácia terapêutica de um fármaco realizado com financiamento da indústria que o produz, temos que admitir os riscos que a opacidade do método clínico e seu tipo de produção de evidências leva ao empreendimento científico da psicanálise. Os psicanalistas, portanto, teriam motivos prévios para comprovar a própria prática, sejam eles financeiros (eles vivem disso), sejam identificatórios, uma vez que ser psicanalista é gozar de uma série de reconhecimentos sociais dentro de instituições como universidade, sociedades de psicanálise, grupos de pares etc.

Conclusão: qual cientificidade para a psicanálise? Ou, que tipo de psicanálise, afinal, queremos construir?

Quando Pedro fala de Paulo, sabemos mais sobre Pedro do que de Paulo. Esse dito popular que vale para nossos pacientes em análise pode ser também estendido para reflexão epistemológica que empreendemos aqui: Grünbaum, quando fala da psicanálise, está falando sobre as condições de possibilidade que fundamentam seu discurso. O propósito deste texto foi revelar os fundamentos de sua crítica e avaliar seus alcances e limites, colocando as cartas na mesa para que se possa avaliar a adequação ou não da sua crítica. Esse escrutínio coloca à luz do dia os compromissos desse campo do conhecimento, contribuindo para uma decisão mais meditada e refletida sobre os modelos epistêmicos que desejemos adotar para psicanálise.

Uma análise epistemológica que tomasse dogmaticamente um referencial metodológico como único capaz de alcançar a verdade só poderia analisar outros campos do saber de forma comparativa, enxergando-os pela sua distância ou proximidade em relação a um suposto saber verdadeiro pré-estabelecido. Aos olhos dessa ciência transcendental, monárquica e divina, os campos de conhecimento que dela divergem seriam mera mistificação e ideologia. Esse tipo de análise não nos interessa aqui. Gostaríamos antes de poder compreender esses campos como possibilidades de empreendimentos científicos. Não tendo uma garantia transcendental de um sumo saber pelo qual deveríamos optar de partida, a avaliação desses domínios do conhecimento deve ser feita pelos seus méritos, pensando a prática que produzem e o fazer dessa ciência no mundo em sua relação com pacientes, instituições, médicos, pesquisadores etc.

Voltemos às críticas à psicanálise que elencamos na introdução. Tanto aqueles que censuram a psicanálise por sua pseudocientificidade como os que a acusam de cientificismo fazem exigências para que ela se adeque a determinados critérios. Quando o fazem, eles mesmos se apoiam em critérios de validade próprios. Grünbaum, físico de formação, parte de métricas de validação epistemológica da medicina contemporânea (mais especificamente da Medicina Baseada em Evidências com seus ensaios clínicos randomizados, meta análises e revisões sistemáticas) e das ciências experimentais. Enquanto isso, os autores do outro polo partem de critérios de validação ligados à fenomenologia, ao existencialismo e à hermenêutica. Uma análise epistemológica busca entender quais as consequências em se filiar a cada um desses campos, refletindo sobre o tipo de conhecimento produzido por cada um deles e o tipo de prática que eles promovem. Esse tipo de abordagem que mira as consequências engendradas por diferentes campos epistêmicos evita uma postura dogmática que toma um deles como detentores da Verdade já de partida. Deixamos de nos perguntar sobre a essência do humano ou da mente e começamos a refletir sobre o tipo de conhecimento e intervenção na realidade que diferentes paradigmas em psicanálise podem produzir. Em outras palavras, deixamos de nos perguntar que tipo de ciência é essencialmente a psicanálise e passamos a pensar em que tipo de psicanálise queremos produzir e praticar, podendo ela se apoiar em critérios epistemológicos diversos. Da pergunta fechada “psicanálise é ciência?”, passamos para pergunta “qual cientificidade para psicanálise?”, cuja resposta é um campo de disputas em aberto.

A psicanálise é um campo teórico e prático heterogêneo no qual seus autores, críticos e opositores exercem pressões constantes que resultam em toda sorte de reconfigurações do campo (conceituais, institucionais, técnicas etc.). Nesse sentido, não nos interessa aqui o estabelecimento de uma verdadeira psicanálise com recurso a uma leitura correta dos textos que se apresentariam como doxa. Esse tipo de procedimento faz um mal uso da história da psicanálise ao buscar em uma suposta leitura correta de Freud, Lacan, Winnicott, Klein ou qualquer outro autor os nortes absolutos de como deveria se configurar o campo psicanalítico. Isso deságua em um exercício exegético de caráter dogmático. O que pretendemos aqui é verificar que tipo de psicanálise se produz partindo da assunção ou da recusa das críticas elencadas, o que contribui para a reflexão sobre que tipo de psicanálise queremos defender e produzir.