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Psicanálise e ciência

Apresentação

Rogério Barbosa

Nos últimos anos, o debate público ao redor do mundo foi marcado por questões a respeito da legitimidade científica de teorias e políticas públicas. Aos poucos, vimo-nos obrigados a nos posicionar a respeito da eficácia e confiabilidade das vacinas; do formato da Terra e de sua posição no sistema solar; da influência humana no aquecimento global e tantos outros temas que acabaram por trazer à superfície o problema da cientificidade. Nesses embates, o campo progressista tendeu a adotar, na maior parte das vezes, uma postura de defesa da ciência, como vimos especialmente durante a pandemia no Brasil. A cientificidade seria o critério capaz de legitimar um discurso ou uma hipótese em detrimento das outras e, assim, orientar o Estado a adotar as medidas eficazes no combate à proliferação e mortalidade do vírus.

A defesa renhida da ciência, no entanto, opera um curto-circuito no discurso de alguns setores do campo progressista, que, apesar de terem defendido a compra de vacinas e o distanciamento social, têm fortes e justificadas ressalvas à defesa da ciência em abstrato. Nas humanidades, em especial, existe uma desconfiança histórica com respeito ao elogio efusivo da ciência. É essa desconfiança que motiva suas críticas ao positivismo; à suposta neutralidade do conhecimento científico e à pretensão normativa de estender critérios de cientificidade estabelecidos nas ciências naturais para todo e qualquer domínio do conhecimento sob pretexto de com isso combater a metafísica e o charlatanismo.

Esse debate, no entanto, corre muitas vezes o risco de ser reduzido a uma antinomia que opõe simplesmente o cientificismo ao obscurantismo. De um lado, portanto, a defesa da ciência pode encobrir certo autoritarismo da razão; e, de outro, a defesa da pluralidade de formas de produção de conhecimento cede o flanco ao avanço do negacionismo.

Dentre os objetos que reúnem as problemáticas acima mencionadas a respeito da cientificidade está a psicanálise. Desde seu surgimento até os dias de hoje, há um debate contínuo acerca da legitimidade científica da disciplina. Há aqueles que defendem que a psicanálise está presa aos dogmatismos cientificistas do meio médico no qual Freud se formou, sendo necessário exorcizá-la desses demônios positivistas. Há outros que, ao contrário, defendem que a psicanálise carece de rigor científico, sendo ela uma pseudociência que, como tal, não deve gozar de qualquer prestígio social, que dirá de financiamento por sistemas de saúde. Entre esses dois pólos de crítica à disciplina, há uma série de posições intermediárias, que fazem da psicanálise um palco interessante das querelas em torno dos critérios de legitimidade científica e do lugar da ciência em nossas sociedades.

Esse dossiê reúne artigos que refletem a diversidade de posicionamentos a respeito da questão. Em “Naturalismo, psicanálise e ciências da vida no horizonte contemporâneo”, Benilton Bezerra da Silva avança sobre a proficuidade do diálogo entre a psicanálise e as ciências da vida na contemporaneidade. Na contramão daqueles que defendem uma autonomia da psicanálise em relação a outros domínios científicos, o autor recupera o lugar das ciências naturais no pensamento de Freud para mostrar como a psicanálise pode se beneficiar de uma postura menos sectária em relação a outras ciências, em especial àquelas ligadas à biologia e às neurociências.

Eduardo Rocha Zaidhaft e Monah Winograd fazem uma recuperação importante das passagens de Freud a respeito do estatuto epistemológico da psicanálise. Analisando esses trechos, os autores discorrem sobre a complexidade de uma epistemologia que segue os cânones científicos de sua época ao mesmo tempo que se dedica a um objeto que parece exceder a malha investigativa desses métodos e escapar de uma apreensão plena pelas suas garras: o inconsciente.

A fim de refletir sobre a crítica à psicanálise que acusa a disciplina de ser uma pseudociência, Antonio Neves Neto e Paulo Carvalho Silva retomam os argumentos do filósofo da ciência Adolf Grunbaum em defesa dessa posição. Os autores sustentam que não há um critério transcendental para se aferir legitimidade científica, sendo necessário sempre refletir sobre os alcances e limites do critério de cientificidade adotado por cada disciplina. Com isso, a questão mais importante não é se a psicanálise é ou não uma ciência, mas sim qual critério de cientificidade defendemos para a psicanálise que queremos construir.

Marta D’Agord apresenta um panorama dos cortes, giros e revoluções ocorridas no pensamento científico, de modo a situar a psicanálise em seus debates. Trata-se de um estudo que, ao situar o pensamento psicanalítico dentro da história da ciência, circunscreve suas particularidades, assim como aponta a um caminho de desenvolvimento que alia rigor e inventividade dentro de uma renovada perspectiva lacaniana.

Em sua contribuição, Paulo Beer propõe uma reflexão sobre resistências que usualmente são encontradas não somente nos debates acerca da cientificidade da psicanálise, mas em diversas tentativas de atualização daquilo que é chamado de ciência. Apresentando trabalhos recentes do campo da filosofia da ciência, indica como a abertura para se pensar a ciência enquanto algo que comporta uma dimensão de escolha parece produzir respostas mais afetivas que racionais. Num esforço de delimitação do quê seria essa dimensão de escolha, Beer também recorre à psicanálise para analisar a supracitada dimensão afetiva.

Por fim, Ilana Katz oferece uma contribuição que compõe o dossiê de maneira distinta, não aprofundando numa discussão epistemológica, mas sim demonstrando o tipo de efeito que tomar esse debate a sério pode produzir nas possibilidades de investigação. Seu artigo relata uma pesquisa em andamento, compromissada com o avanço em políticas públicas para a primeira infância em um contexto específico. Coloca em ato, assim, a potência de um pensamento científico que não se prenda a anseios ingênuos de universalidade e purificação, mostrando os ganhos advindos da implicação dos pesquisadores naquilo que investigam.

Com os textos que compõem o dossiê, pretendemos complexificar um debate que apresenta como pólos dominantes duas teses rígidas: ou a unilateralidade metodológica que conduz ao cientificismo, ou um pluralismo que cede ao obscurantismo. Para além da dualidade simplista, há certamente muito espaço a ser explorado e é nesse sentido que esse dossiê caminha.

— Os organizadores