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O vão sem plataforma: um estudo das concepções da psicanálise freudiana sobre a ciência

Introdução

Rogério Barbosa

Em Londres, quando os transeuntes estão na plataforma de metrô e o trem está prestes a abrir suas portas, uma mensagem é emitida pelas caixas de som: “mind the gap”. Da mesma forma, no Brasil, quando a estação adverte os cidadãos sobre a necessidade de “cuidado com o vão entre o trem e a plataforma”, o que está em jogo é uma medida de segurança concreta e objetiva aos passageiros. Por outro lado, aos ouvidos de um psicanalista, a expressão mind the gap evoca o acréscimo de um simples artigo e de uma vírgula prosódica, que transformariam por inteiro a expressão, de tal forma que esta se tornasse referida às questões que envolvem o entendimento do que seja o psiquismo, a mente e a subjetividade. Essa instrução objetiva de segurança do underground londrino permite extrair, por associação-livre, um dos pilares fundamentais da psicanálise: the mind, the gap – a mente, o vão. Nosso psiquismo precisa ser entendido como relativo a esse caráter de lacuna, hiato ou intervalo.

Retornaremos a esta questão mais adiante. Por ora, cabe sublinhar que são ideias como essa — que envolvem considerar a função fundamental do negativo e da negação na constituição psíquica — que sustentam a crítica psicanalítica insistente ao cientificismo1 e ao positivismo2. A importância que Freud conferiu aos processos psíquicos inconscientes e aos modos de expressão psíquica da vida afetiva são grandes exemplos dessa crítica3 — e isso nada tem a ver, muito pelo contrário, com Freud ter insistido incansavelmente ser a psicanálise uma ciência natural.

Desde a eclosão da pandemia no início de 2020, foi colocada uma questão aos psicanalistas. Críticos ferrenhos da ciência positiva, eles acabaram, caso não quisessem tender a uma negação patológica das mortes causadas pelo vírus, precisando advogar em favor da ciência. Para não cair na falácia lógica que implicaria uma clivagem psíquica operando com dois pesos e duas medidas, foi exigido da psicanálise assumir uma posição que defendesse a ciência, sem abandonar suas críticas históricas. Não se trata de mera conveniência ou de estratégia de defesa contra ataques.

Para esse reposicionamento que a história coloca à psicanálise, é preciso resgatar a dupla face de Freud4 (ROCHA, 2010), que, nos termos emprestados de Nietzsche, poderia ser caracterizado não somente como um guardião apolíneo do brilho da razão, mas também como um dionisíaco em busca do lado obscuro da lua que habita cada humano. O pensamento de Freud faz um movimento aparentemente pendular, mas cuja alternância se desdobra em uma espiral5 (MONZANI, 2014) entre luz e sombra, colocando ambas em uma relação de dependência concomitante e de ação recíproca uma com a outra.

Alocando seu pensamento como uma ramificação do conhecimento científico produzido por Nicolau Copérnico e Charles Darwin, Freud678 argumenta que a psicanálise é a terceira ferida no narcisismo humano. Ele considera o pensamento desses grandes nomes do naturalismo como feridas narcísicas porque ambas frustraram o ímpeto humano de se pensar no centro das coisas. Enquanto o primeiro postulou o descentramento do humano em relação ao cosmos, pois a Terra não era mais o centro do sistema solar, e o segundo em relação às espécies, na medida em que a teoria da seleção natural nos aproximou mais dos macacos do que da imagem de Deus, a teoria psicanalítica teria criado uma terceira ferida que se refere ao descentramento do sujeito em relação a si próprio.

Assim, apesar de nascida do seio do naturalismo europeu do final do século XIX, o legado deixado por Freud encaminhou a psicanálise a uma racionalidade em que o primado está, paradoxalmente, sob a égide do irracional, ou seja, uma afetividade irrefreável que atribui à consciência do indivíduo uma parcela menor daquilo que governa sua mente. A produção teórica de Freud permitiu não somente a inauguração da ideia de que os transtornos da mente poderiam ser tratados por meio de palavras — o que nem sempre é tomado de maneira óbvia, seja no século XIX, seja hoje —, mas, sobretudo, uma contribuição inestimável à compreensão que a ciência tem do que é a própria mente. Isso tem muito a ver com a demonstração de Freud de que o antropocentrismo não é procedente nem quando falamos do universo físico, nem do fenômeno biológico e tampouco quando o tema é a vida mental.

Na senda aberta por Freud, a psicanálise mergulhou mais e mais na direção de investigar a dinâmica inconsciente que habita os indivíduos e que se correlaciona com seu mal-estar. Os traumas da história individual, mas principalmente a maneira como a mente em suas fantasias representa esses traumas, se tornaram o campo de exploração da psicanálise. Embora Freud não limitasse a psicanálise a isso, por exemplo sugerindo a ideia de que a formação psicanalítica deveria incluir disciplinas de anatomia fisiológica, houve um progressivo afastamento, por parte dos pós-freudianos, da ideia de que a psicanálise estaria associada à ciência natural.

No contexto brasileiro, Renato Mezan9 compreende que a melhor categorização da psicanálise seria a de uma ciência humana e que a alocação da psicanálise por Freud em meio às ciências naturais se deve principalmente a uma contingência histórica de um pensador educado na segunda metade do século XIX no contexto europeu, no qual as ciências do espírito não deveriam ter qualquer abordagem causal dos fenômenos, em que estes seriam dependentes de leis universais ou qua universais. Joel Birman10, por sua vez, também associa o naturalismo de Freud como inadequado ao próprio objeto teórico da psicanálise, de maneira que, ao longo de sua obra, ele teria progressivamente se distanciado dos preceitos da ciência natural em direção a um pensamento que o aproxima mais da atividade estética.

Diferentemente desses dois autores, XX Simanke11 considera que o pensamento freudiano, tanto sobre o psiquismo individual quanto sobre a organização sociopolítica, deve ser abarcado dentro de uma proposta estritamente naturalista de ciência, uma vez postulado o pressuposto de um naturalismo integral ou qualificado, que evada tanto de um antinaturalismo humanista como de um naturalismo positivista, nos termos do autor. Conforme seu argumento, existe uma recusa freudiana de uma dualidade entre humanidades e natureza, à exemplo da maneira como Freud procede na análise da atividade estética, considerando esta como uma sublimação de instintos biologicamente determinados. Seria com premissas como a existência de uma natureza dotada também de historicidade, de conflitos, de finalidades e, por isso, de possibilidades de significação que Freud constituiu teses em que se confere uma naturalização da experiência do sentido.12

De maneira contrastante a essa última interpretação, em uma perspectiva mais antinaturalista da psicanálise, podemos citar também as proposições de Alberti e Elia13, que chegam a afirmar o disparate interpretativo de que “Para Freud, toda realidade é psíquica”14. Se devemos hoje considerar a psicanálise uma ciência humana, uma ciência do espírito, uma ciência natural ou uma atividade mais próxima da estética nos parece um ponto a ser debatido — Freud é um autor de grande envergadura e por isso não é surpreendente que existam interpretações diversas de seu pensamento —, mas a atribuição ao fundador da psicanálise de um solipsismo absoluto ou mesmo de um panpsiquismo ingênuo é algo que foge aos limites das zonas cinzentas de interpretação de uma obra para entrar no campo de uma franca distorção do que ele disse. Para citarmos um argumento simples que por si refuta esta interpretação da obra de Freud, podemos nos perguntar: supondo que toda realidade seria psíquica, o que propriamente seria a fuga da realidade pela neurose e a substituição da realidade pela psicose tão claramente descritas por Freud15? Como ele formula: “a neurose não nega a realidade, apenas não quer saber dela; a psicose a nega e busca substituí-la”16.

Nesse contexto, vale lembrar como psicologizações excessivas são oriundas, para o autor, de uma defesa psicológica antropocêntrica operada pelos próprios pensadores. Diz Freud: “a substituição de uma ciência natural pela psicologia não apenas produz alívio imediato, [como] também mostra o caminho para um subsequente controle da situação”17, de modo que podemos considerar que a psicologização antropomorfista é nada mais que uma tentativa dos investigadores de se defenderem dos “poderes superiores da natureza, do destino, que os ameaçam como todos os demais”18. Impulsionados pela pandemia, os desastres contemporâneos evocam de maneira veemente os poderes superiores da natureza, do destino e do acaso sobre nossa existência neste pequeno planeta. Deve-se considerar, como entendem Verztman e Romão-Dias19 (2020), que o trauma pandêmico parece ser um processo difícil porque se insere no bojo não principalmente da terceira, mas da segunda ferida narcísica.

Dessa maneira, podemos considerar que a catástrofe ocasionada pela covid-19 lembra aos psicanalistas que, apesar de sujeitos do inconsciente, também somos seres materiais. Se a memória da pandemia já não foi reprimida, os psicanalistas devem tomá-la como um momento profícuo para que façam uma autocrítica: não é porque a psicanálise é a terceira ferida narcísica que houve uma suplantação das outras duas. Mas, para esse argumento, não precisaríamos necessariamente citar a covid-19: as notícias de que estamos em um processo de aquecimento global e que existem pessoas que defendem o terraplanismo já seriam suficientes para que tivéssemos um pouco de Copérnico e Darwin habitando nosso superego.

De nosso ponto de vista, Freud compreende a psicanálise como uma ciência natural não porque negue a importância do psíquico — como poderia? O monismo freudiano a respeito da relação corpo/psiquismo torna insustentável uma dicotomia essencial entre humanidades — o campo do cogito — e natureza — o campo da extensão.20

O método e a epistemologia da ciência segundo Freud

Um dos trechos centrais no qual Freud aborda diretamente suas concepções epistêmicas e metodológicas sobre a ciência é encontrado no primeiro parágrafo de um de seus artigos metapsicológicos. No texto de 1915, Os instintos e seus destinos, Freud afirma:

Não é raro ouvirmos a exigência de que uma ciência deve ser edificada sobre conceitos fundamentais claros e bem definidos. Na realidade, nenhuma ciência começa com tais definições, nem mesmo as mais exatas. O verdadeiro início da atividade científica está na descrição de fenômenos, que depois são agrupados, ordenados e relacionados entre si. Já na descrição é inevitável que apliquemos ao material certas ideias abstratas, tomadas daqui e dali, certamente não só da nova experiência. Ainda mais indispensáveis são essas ideias — os futuros conceitos fundamentais da ciência — na elaboração posterior da matéria. Primeiro elas têm de comportar certo grau de indeterminação; é impossível falar de uma clara delimitação de seu conteúdo. Enquanto se acham nesse estado, entramos em acordo quanto ao seu significado, remetendo continuamente ao material de que parecem extraídas, mas que na realidade lhes é subordinado. Portanto, a rigor elas possuem o caráter de convenções, embora a questão seja que de fato não são escolhidas arbitrariamente, mas determinadas por meio de significativas relações com o material empírico — relações que acreditamos adivinhar, ainda antes que possamos reconhecer e demonstrar. Apenas depois de uma exploração mais radical desse âmbito de fenômenos podemos apreender seus conceitos científicos fundamentais de maneira mais nítida e modificá-los progressivamente, tornando-os utilizáveis em larga medida e ao mesmo tempo livres de contradição. Então pode ser o momento de encerrá-los em definições. Mas o progresso do conhecimento também não tolera definições rígidas. Como ilustra de maneira excelente o exemplo da física, também os “conceitos fundamentais” fixados em definições experimentam uma constante alteração de conteúdo.21

Freud afirma que nenhuma ciência começa com as definições de seus conceitos fundamentais, sendo este início caracterizado pela descrição de fenômenos. Na descrição, contudo, já são inevitáveis a aplicação de ideias abstratas intuídas de algum outro lugar que não no objeto estudado. Essas ideias abstratas intuídas de algum outro lugar e utilizadas para agrupar, ordenar e correlacionar os fenômenos inicialmente contém certo grau de indeterminação, mesmo que possam eventualmente se tornarem conceitos fundamentais de uma ciência

No trecho seguinte, Freud apresenta uma primeira tese: afirma que, uma vez que há um grau de indeterminação sobre os seus conteúdos, as ideias abstratas serão mais bem entendidas quanto ao seu significado uma vez remetidas continuamente ao material experiencial e modificadas progressivamente. Contudo, como próprio de seu estilo, Freud traz a antítese: esse material experiencial parece ser a fonte de onde são extraídas as ideais abstratas, mas o material empírico é também a elas subordinado, ou seja, a maneira como a realidade objetiva é representada determina, ao menos parcialmente, a própria percepção dessa realidade. O efeito dessa consideração é de que não é possível entender um fenômeno cujo conteúdo ainda é bastante indeterminado sem as determinações de outras categorias que a ele estão associadas no conjunto de representações existentes na mente do pesquisador e que fundamentam a sua intuição.

Por fim, um desfecho dialético: embora tenham o caráter de convenções que subordinam a descrição dos fenômenos do material empírico de maneira intuitiva, essas ideias abstratas não são, contudo, arbitrárias, pois são elas que intuímos, e não outras, pois as mesmas mantêm relações significativas com o material empírico. Freud afirma que a modificação subsequente dos conteúdos dessas ideias abstratas em virtude de sua remissão ao material empírico ou ao material experiencial pode fazê-las tornarem-se os conceitos fundamentais de uma ciência utilizáveis em larga escala e em grande parte livres de contradição, mas que deverão sempre se permitir passarem pela constante modificação de seu conteúdo para o progresso do conhecimento. Não é apenas no início da formação de uma disciplina científica que as ideias intuídas pela observação dos fenômenos conterão algum grau de indeterminação sobre seus conteúdos. Mesmo quando já se tornaram conceitos fundamentais de uma ciência já consolidada, estas deverão ser liberadas da rigidez de seus conteúdos para a continuidade do avanço dessa mesma ciência no sentido de uma menor contradição do uso de seus significados.

O que nos parece o mais obscuro na célebre passagem de 1915, e especialmente no trecho que grifamos, é a tensão entre a observação de fenômenos como o começo da investigação para a formulação de conceitos e as ideias abstratas que inevitavelmente subordinam a observação. Ao mesmo tempo em que o material observado é dependente dessas ideias e dos conceitos científicos na mente no observador, ideias extrínsecas e extemporâneas aos fatos observados, os conteúdos dessas intuições não são aleatórios, mas sim dependentes do material empírico, e por isso são dotados de significado.

Portanto, existe uma ambiguidade presente nessa célebre passagem da obra freudiana, de modo que, a depender do trecho destacado por um comentador ou intérprete, existe a possibilidade de se ver Freud como alinhado a uma concepção epistemológica que coloca a natureza física como aquilo que orienta objetivamente o conhecimento, de tal maneira que o mundo material teria suas próprias leis gerais com eficácia na realidade, ou como um defensor de teses que assumem as leis do universo físico como categorias nominais oriundas da perspectiva que os sujeitos constroem por meio de suas próprias representações. Dada a ambiguidade, esses polos antagônicos são ambos atributos do pensador e não se trata de uma alternância entre essas duas atitudes epistemológicas, mas sim de uma ação recíproca entre ambas. É esta reciprocidade associativa entre a representação-palavra e a representação-coisa que parece ser, para Freud, o fulcro do processo de produção de significados dos objetos da natureza.

Apesar dessa reciprocidade e dessa mútua dependência no fazer científico entre a categoria intelectual que é utilizada para a observação e o fenômeno observado enquanto tal, é preciso se levar em conta que há uma hierarquia entre esses elementos, do ponto de vista de Freud. Não é porque o fazer científico comporta dois lados que se determinam reciprocamente, um lado do sujeito do conhecimento e um lado do objeto conhecido, que por isso seria correto supormos uma indissociabilidade ou simetria entre eles. Afirmar que sujeito e objeto são estritamente indissociáveis coloca a questão de que os primeiros objetos do universo somente teriam existido depois que surgiram os seus observadores. Conceber a relação entre sujeito e objeto dessa forma é conceber uma realidade antropocêntrica e nem o mais relativista dos físicos da mecânica quântica afirmaria algo assim a partir do conceito, por exemplo, de emaranhamento quântico. Mais correto do que dizer que sujeito e objeto são indissociáveis seria afirmar que o primeiro se encontra aninhado no seio do segundo, ao mesmo tempo em que, uma vez dentro desse ventre que o gestou, ele mesmo também retroage sobre os objetos que o pariram — inclusive quando esses objetos são outros sujeitos! Sobre essa hierarquia, Freud é explícito: “o que é vivo apareceu depois do que é inanimado e dele se originou”22.

Essa concepção epistemológica fica mais nítida à luz de um texto que Freud havia escrito um ano antes23:

Não nos sentimos bem ao abandonar a observação em favor de estéreis disputas teóricas, mas não podemos nos furtar a uma tentativa de esclarecimento. É certo que noções como a de uma libido do Eu, energia dos instintos do Eu e assim por diante não são particularmente fáceis de apreender nem suficientemente ricas de conteúdo; uma teoria especulativa das relações em jogo procuraria antes de tudo obter um conceito nitidamente circunscrito como fundamento. Acredito, no entanto, ser justamente essa a diferença entre uma teoria especulativa e uma ciência edificada sobre a interpretação da empiria. Esta não invejará à especulação o privilégio de uma fundamentação limpa, logicamente inatacável, mas de bom grado se contentará com pensamentos básicos nebulosos, dificilmente imagináveis, os quais espera apreender de modo mais claro no curso de seu desenvolvimento, e está disposta a eventualmente trocar por outros. Pois essas ideias não são o fundamento da ciência, sobre o qual tudo repousa; tal fundamento é apenas a observação. Elas não são a parte inferior, mas o topo da construção inteira, podendo ser substituídas e afastadas sem prejuízo. Em nossos dias vemos algo semelhante na física, cujas concepções básicas sobre matéria, centros de força, atração etc. não seriam menos problemáticas do que as correspondentes na psicanálise.24

E, mais tarde, em texto de 1925 intitulado “Autobiografia”, Freud25 retoma as mesmas considerações de 1914:

Não poucas vezes escutei a desdenhosa afirmação de que não se pode levar a sério uma ciência cujos principais conceitos são tão imprecisos como os da libido e do instinto na psicanálise. Mas essa objeção se baseia numa total incompreensão dos fatos. Conceitos fundamentais claros e definições nitidamente demarcadas apenas são possíveis nas ciências humanas [Geisteswissenschaften] quando elas procuram acomodar todo um âmbito de fatos na moldura de um sistema intelectual. Nas ciências da natureza [Naturwissenschaften], entre as quais se inclui a psicologia, tal clareza dos conceitos principais é supérflua e mesmo impossível. A zoologia e a botânica não principiaram com definições corretas e suficientes de animal e planta, e ainda hoje a biologia não soube dar um conteúdo preciso ao conceito de ser vivo. A própria física não teria absolutamente se desenvolvido caso tivesse sido obrigada a esperar até que seus conceitos de matéria, força, gravitação e outros alcançassem a clareza e precisão desejável. As ideias fundamentais ou conceitos supremos das disciplinas das ciências naturais são sempre deixadas inicialmente indeterminadas, provisoriamente são explicadas apenas pela referência à área de fenômenos de que procedem, e somente com a progressiva análise do material da observação podem se tornar claras, ricas de conteúdo e livres de contradição26

Ao nos determos nesses trechos de 1914 e 1925, são evidentes as semelhanças entre eles e o de 1915, ainda que por vezes Freud se refira às mesmas designações por meio de vocábulos diferentes. Deste trecho, vale destacar algumas ideias expressas de modo mais claro por Freud do que na primeira citação que referimos. Em primeiro lugar, é necessário reconhecer a hierarquia de valores do fazer científico, que fala sobre o primado que a observação deve ter sobre a teoria. Levando em consideração a análise que fizemos sobre a passagem célebre do texto de 1915, podemos entender que, embora a teoria subordine a observação na maneira como ela extrai significados da substância empírica, a teoria deve ser tomada não como a base do fazer científico, mas justamente um derivado das inferências geradas na interpretação dos fenômenos. Podemos entender que, enquanto as ciências baseadas na compreensão [Geisteswissenschaften], como propõe Freud, partem de concepções teóricas das quais se produzem inferências dedutivas que subordinam a observação dos fenômenos; a psicanálise, como uma ciência natural [Naturwissenschaften], deve buscar partir da observação indutiva dos fenômenos para a produção de uma teoria.

É por essa razão que, nas ciências naturais, dentre elas a psicanálise, as ideias provisórias advindas de outros lugares que não os fenômenos presentes e os conceitos fundamentais das ciências que subordinam a observação atual devem sempre carregar em seu seio algum grau de indeterminação. Embora essa indeterminação implique a impossibilidade de conceitos cristalinos, esta hierarquia da observação sobre a teoria é o que garante a primazia da clínica psicanalítica como o dispositivo por excelência de constituição da psicanálise.

Desta assertiva que coloca a psicanálise como uma prática, Freud também fornece uma posição ética de cunho utilitário em relação à ciência, ou seja, de que as disputas teóricas são estéreis caso essas querelas impliquem o abandono da observação. Esse postulado implica que as disputas teóricas tanto podem ser profícuas como estéreis, a depender do quanto elas favorecem ou não as capacidades interpretativas dos pesquisadores, sofisticando a maneira como eles significam o material empírico e a maneira como eles debatem seus conceitos e ideias. Não é porque há uma hierarquia da observação sobre a teoria que esta é desnecessária. A subordinação que as ideias abstratas estabelecidas por convenção e os conceitos fundamentais que os cientistas carregam em suas mentes ao interrogarem a substância empírica subordinam a sua observação “de graça”, espontaneamente e sem maiores esforços, jazendo o rigor científico, portanto, na atividade de justamente tentar inverter essa relação de subordinação, de tal maneira que o primado seja da observação e não das categorias intelectuais que a subordinam.

Em 1929, em A questão da análise leiga, Freud faz uma reiteração de sua concepção de ciência e de que maneira a psicanálise com ela se relaciona

Não pense, no entanto, que ela [a psicanálise] nasceu assim pronta, como um sistema filosófico. Nós a desenvolvemos bastante lentamente, muito pelejamos por cada pedaço dela, sempre a modificamos em contato com a observação, até finalmente ela adquirir uma forma em que parece nos bastar para nossa finalidade. Ainda alguns anos atrás eu teria que expor essa teoria em termos diferentes. Naturalmente, não posso lhe garantir que a forma em que hoje é expressa será definitiva. Como sabe, a ciência não é uma revelação; ela carece, muito depois de seus primórdios, dos atributos de certeza, imutabilidade e infalibilidade, pelos quais o pensamento humano tanto anseia. Ainda assim, é tudo o que podemos ter. Se também levar em conta que nossa ciência particular é muito jovem, tem quase a idade do século, e que se ocupa da matéria mais difícil que se pode oferecer à investigação humana, poderá então adotar a atitude correta perante minha exposição27

Freud, desse modo, reafirma em diversas ocasiões uma concepção de ciência em que esta sempre deve estar sujeita à modificação de seus conteúdos, ou seja, que a certeza, a imutabilidade e a infalibilidade são contrárias ao espírito científico, talvez sendo essas características próprias do que é do âmbito da “revelação”, ou seja, no seu entender, do que é próprio dos campos filosófico e religioso. Portanto, embora contrariando o positivismo científico, Freud segue um adepto da ciência natural devido à qualificação com a qual conceitua a própria ideia do que é a investigação da natureza*.

Na conferência de 1933, denominada Acerca de uma visão de mundo, Freud28 é claro quanto à sua adesão ao naturalismo científico, fundamentado na interpretação observacional dos fenômenos, e a necessidade de hierarquizar as suas capacidades em relação a outras atividades intelectuais, como a religião, a filosofia e a arte:

É inadmissível dizer que a ciência é uma área da atividade espiritual humana, que a religião e a filosofia são outras, de valor pelo menos igual, e que a ciência não deve interferir nelas; que todas podem igualmente reivindicar serem verdadeiras e cada pessoa é livre para escolher de onde tirar sua convicção e onde depositar sua crença. Uma visão assim é tida como particularmente nobre, tolerante, abrangente e livre de preconceitos tacanhos. Infelizmente ela não é defensável, compartilha todos os traços nocivos de uma visão de mundo não científica, praticamente equivalendo a esta. Ocorre que a verdade não pode ser tolerante, não permite compromissos e imitações, que a pesquisa tem de considerar todos os âmbitos da atividade humana como seus e deve se tornar implacavelmente crítica, quando um outro poder busca usurpar alguma parte dela.29

Nesta conferência, também discorre a respeito das correlações entre sua adesão ao naturalismo científico e o método clínico que ele próprio desenvolveu ao longo de sua vida:

O progresso, no trabalho científico, ocorre de maneira muito semelhante ao de uma análise. Levamos expectativas para o trabalho, mas temos de refreá-las. Através da observação aprendemos algo novo — ora aqui, ora ali — e inicialmente as peças não se encaixam. Estabelecemos hipóteses, fazemos construções auxiliares, que retiramos quando não se confirmam; necessitamos de muita paciência de prontidão para toda possibilidade; renunciamos a convicções prematuras, que nos obrigariam a não enxergar fatores novos e inesperados, e, por fim, todo esforço é recompensado, os achados dispersos se combinam, obtemos uma visão de toda uma parcela do funcionamento mental, completamos nossa tarefa e estamos livres para a próxima30

Onde está o vão?

Há um elemento na obra de Freud que nos parece o mais fundamental. Nos referimos ao trecho em que Freud diz que seria desejável à psicanálise a existência de conceitos nitidamente circunscritos, como em uma teoria meramente especulativa, mas que, dada a sua natureza prática, baseada na interpretação do sofrimento mental, essa ambição é insustentável.

Como apresentado nos textos de 1914, 1915, 1925, 1927, 1929, assim como na conferência de 1933, o método freudiano busca seguir os cânones da ciência natural, pautados na observação mais do que na teoria. Mas, apesar disso, o conceito de inconsciente produz uma nuance fundamental. Nuance que se esclarece quando aludimos à última das citações de Freud que referenciamos, denominado Algumas lições elementares de psicanálise, escrito em 1938, ano anterior à sua morte:

A psicologia também é uma ciência natural. Que mais poderia ser? Mas o seu caso é diferente. Nem todos se aventuram a emitir um juízo sobre as coisas físicas, mas todos — tanto o filósofo como o homem da rua — opinam sobre questões psicológicas, comportam-se como se fossem psicólogos amadores. E agora sucede algo notável: todos — quase todos — concordam que […] tudo o que é consciente seria psíquico; e, inversamente, tudo o que é psíquico, consciente. Isso seria evidente, contrariá-lo seria um absurdo. Ora, não se pode afirmar que uma resolução tal lance muita luz sobre a essência do psíquico.31

Após essa contestação de que a psicologia, e dentro dela a psicanálise, seria uma forma de senso comum, Freud, então, complementa sua argumentação criticando que o que difere aquele da ciência psicológica seria a crítica desta ao primado da consciência na compreensão da ação humana. Para tal, busca elucidar que sua própria teoria é uma tentativa de demonstrar que essa centralidade do humano é ilusória. Como não escapará ao leitor, Freud implicitamente retoma sua crítica ao antropocentrismo:

a equiparação do psíquico ao consciente trouxe a desagradável consequência de os processos psíquicos serem arrancados do contexto geral de eventos do universo e serem contrapostos a todo o resto como algo estranho. Mas isso não era possível, não se podendo ignorar muito tempo o fato de que os fenômenos psíquicos dependem em alto grau das influências somáticas e, por sua vez, têm efeitos poderosos sobre os processos somáticos. Se alguma vez o pensamento humano entrou num beco sem saída, foi aqui.32

Por fim, apresenta a solução dada pela sua teoria a esse beco sem saída que, por um lado, diz respeito ao problema corpo/mente, mas que também nos dá as pistas sobre a hierarquia entre a categoria utilizada para a observação e o fenômeno observado. Tratando-se de Freud, esta solução jaz no inconsciente:

A psicanálise evitou essas dificuldades ao contestar energicamente a equiparação do psíquico ao consciente. Não, o estado consciente não pode constituir a essência do psíquico, é apenas um atributo dele, e inclusive um atributo inconstante, muito mais ausente do que presente. O psíquico em si mesmo, qualquer que seja a sua natureza, é inconsciente, provavelmente de espécie similar a todos os outros processos naturais de que adquirimos conhecimento33

Portanto, embora tudo aquilo que é natural não seja necessariamente psíquico, quando algo é psíquico, e mesmo quando inconsciente, o que está em jogo é um processo natural. Apesar disso, quando Freud, embora acompanhando a visão de mundo da ciência, antinômica a qualquer forma de pampsiquismo ou espiritualismo sobrenatural, afirma que não é um demérito da metapsicologia seus conceitos básicos serem “nebulosos, dificilmente imagináveis”, o motivo disto não é simplesmente uma limitação metodológica do fazer psicanalítico, mas de uma concepção sobre o próprio objeto natural da psicanálise — a ação humana — que o toma como necessariamente nebuloso e dificilmente imaginável. Freud34 entende que é uma ilusão paradoxal acreditar que poderíamos obter de outras fontes que não da psicanálise algo que ela própria também não pode nos dar por completo, ou seja, uma consciência total do que é o inconsciente. Como Assoun explicita, “o cerne do paradoxo da epistemologia freudiana”35 está colocado na própria definição do que é o seu objeto: afinal, se a psicanálise tem por objeto o inconsciente, por definição incognoscível, portanto a “psicanálise não seria o saber do incognoscível?”36.

Desse modo, as ideias de “nebulosidade” de 1914, de “indeterminação” de 1915, de “clareza impossível” de 1925, de “ilusão” de 1927, de “matéria mais difícil que se pode oferecer à investigação humana” de 1929, de “peças que não se encaixam” de 1933 e de “beco sem saída” de 1938 são não somente maneiras pelas quais Freud caracteriza as limitações da epistemologia e do método psicanalíticos. Essas ideias não são apenas atributos oriundos de uma incompletude do conhecimento sobre um objeto cujo significado é alienado de nós pelas nossas próprias limitações, pois essas ideias têm, para a psicanálise, o caráter ontológico de alienações sediadas nos atributos da própria natureza, que, tão logo preenchidas nas ausências que implicam, se recompõem e formam novas ausências. Não é somente o indivíduo que tem seus impulsos guiados de maneira polimórfica, mas a própria matéria é sediada por possibilidades de indeterminação, que é uma condição necessária para que a indeterminação presente no vivo possa ter emergido da substância física. A certeza e a imutabilidade, atributos ambicionados pelo positivismo, não são somente antagônicos ao espírito científico que investiga a natureza, mas à própria concepção de natureza forjada por Freud.

Em outras palavras, o postulado fundamental da psicanálise é ele próprio da ordem da nebulosidade. De tal maneira que, como afirma Assoun37, se a ciência natural psicanálise alcança plenamente os ideais positivos tipicamente atribuídos à ciência natural — com fundamentações cristalinas e logicamente inatacáveis — ela própria deixa de ter um objeto para interrogar. A psicanálise não é uma disciplina que preenche a falta de conhecimento da ciência natural sobre o campo da ação humana, mas sim uma ciência natural que toma a ação humana como efeito de uma falta.

O conhecimento dessa falta não é, contudo, signo de obscurantismo, ou seja, não é uma doutrina que se opõe à atitude necessária à produção e à difusão do conhecimento científico. Freud funda a psicanálise e delimita o seu objeto com vistas a iluminar o fato de que existe uma obscuridade, imanente à própria natureza, que é uma marca necessária do universo físico e da vida mental do humano. A psicanálise não busca impedir, por uma questão de método, técnicas ou instrumentos, o acesso a detalhes e fatos, mas por uma razão ontológica de que o negativo é um atributo da própria natureza.

Retornando à estação de partida

Tratar as propostas de Freud sem questionamento não somente é um absurdo devido ao grande avanço técnico e científico que tivemos desde sua morte, como também constitui uma clara violação da ciência que ele mesmo defendia. O que devemos reter do pensamento freudiano é antes de mais nada as problemáticas mais do que as possíveis soluções dadas pelo autor a essas mesmas questões. Quando isso é ignorado, é preciso se considerar que a neurose, narcísica ou não, não é uma particularidade apenas dos pacientes, sendo ela também um atributo possível do psicanalista. A rigidez das concepções intelectuais, sua fixação em posições subjetivas, é um regresso do desenvolvimento científico .

O que buscamos enfatizar aqui é que as limitações da psicanálise dizem respeito não somente aos inúmeros problemas metodológicos que ela enfrenta para demonstrar sua eficácia, na medida em que dificilmente é capaz de replicar os dados das pesquisas obtidos. As limitações que ela enfrenta se centram, como em qualquer conhecimento, e principalmente científico, pela existência do tempo e pela possibilidade da emergência do novo.

The mind, the gap”. A mente se constitui pelo negativo e isso constitui um limite. Não existe um trem em movimento — nossa ação subjetiva — que emerge de uma plataforma inerte — a natureza. A obscuridade sobre a qual a psicanálise produz sua teoria mantém, assim, necessariamente uma relação com o movimento do tempo — e esta historicidade também vale para a natureza, pois esta também tem o negativo em seu seio.

Há um certo medo por parte dos psicanalistas em relação àquilo que é da ordem da Ciência com C maiúsculo, como se esta pudesse representar uma incerteza do destino, que poderia acabar negando a psicanálise — uma angústia sinal que entrou pela porta dos fundos de sua visão de mundo quando diante da pandemia. Será que é porque esta causou uma angústia real? Na dúvida de seguirem sua neurose narcísico-institucional que insula sua epistemologia da realidade ou a angústia ética oriunda da realidade de mortos pela covid-19, os psicanalistas acabam por produzir uma clivagem interna. Esta clivagem, contudo, nos parece desnecessária e, no fundo, oriunda de um esquecimento da ciência que Freud defendia. Não é preciso termos medo que a ciência negue a psicanálise, pois o que funda a psicanálise é justamente uma atenção, de dentro da visão de mundo da ciência, daquilo que é da ordem da negação. Freud não busca, com o edifício da psicanálise, ascender acima do solo, mas ocupar o porão, o underground, da natureza.