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A ciência, a psicanálise e a escolha

Rogério Barbosa

A cientificidade da psicanálise ser um tema que suscita acalorados debates parece contraintuitivo. Afinal, seria surpreendente que uma disciplina intimamente compromissada com a produção de conhecimento estável e confiável não consiga produzir consensos mínimos sobre a validade de seus constructos, os quais sustentam práticas clínicas tão difundidas. Nesse sentido, compreender os motivos subjacentes a debates intensos consiste em uma tarefa tão complexa quanto necessária. Um possível motivo envolve os efeitos epistemológicos que podem ser depreendidos da teoria psicanalítica e que remontam a um debate não menos acalorado e atual no campo da filosofia da ciência: a questão da escolha.

É verdade que Freud não deixava de relatar certo incômodo acerca da forma como lograva apresentar a teoria psicanalítica e seu processo de produção de conhecimento. É o que vemos, por exemplo, quando afirma a possibilidade de que seus relatos sejam lidos como novelas e “careçam do cunho austero da cientificidade”,1 algo que é rapidamente imputado à “natureza da matéria” e não a um gosto pessoal. Ora, o psicanalista lançou mão de diversos esforços para sanar tal peculiaridade: seja na publicação de textos com discussões teóricas rigorosas e pouco aprazíveis a leitores em busca de novelas, seja em discussões epistemológicas que dão sustentação a seu método de investigação e a suas formas de exposição, seja nos ditos textos sociais, nos quais o autor se lança em análises que demonstram a inseparabilidade entre o individual e o social na psicanálise. Esses três e insuficientes exemplos dos gêneros literários habitados por Freud indicam a riqueza de sua obra, embora também produzam uma equivocidade improdutiva quando generalizações são feitas ignorando tal multiplicidade — problema não raramente encontrado em discussões sobre psicanálise e ciência. As décadas seguintes da produção de Freud e seus colegas levanta a questão sobre o que seria o cerne da problemática contida na “natureza da matéria”: a profusão de métodos de exposição alternativos ao novelesco não parece sanar os tensionamentos produzidos em relação a certos padrões de cientificidade.

Fato é que novos campos de investigação demandam certos ajustes entre as novidades introduzidas e as normas (explícitas ou implícitas) em vigor, e os relatos de Freud não se mostravam tão díspares daqueles produzidos por alguns de seus pares. Por mais que seja possível reconhecer o papel central dos casos no pensamento freudiano,2 isso não é um privilégio do psicanalista, o que é corroborado por outros relatos publicados na mesma época3 e também por outras disciplinas.4 Pode-se especular que a formação de Freud como cientista, bastante habituado à vida laboratorial, contribuiria com esse incômodo, além de seu receio de que a psicanálise fosse considerada uma ciência judaica, algo que na época significava uma clara deslegitimação. Haveria outros fatores a serem levantados, mas o caminho que pretendo explorar tem outra direção, menos biográfica e, inclusive, pouco explorada por Freud: trata-se daquilo que se mobiliza, em relação ao modo como pensamos a ciência, quando novidades são introduzidas no campo científico.

Crise

Em seu A estrutura das revoluções científicas, Thomas Kuhn5 dá grande centralidade à noção de crise. Uma crise é produzida quando um problema persiste a tentativas de resolução, demandando a invenção de um novo paradigma. Segundo o físico e filósofo, tais momentos são de grande importância no fazer científico, pois seria a produção de um novo paradigma que marcaria a diferença entre a ciência ordinária — em que problemas são resolvidos com ferramentas já disponibilizadas, algo aproximado pelo autor da resolução de quebra-cabeças — e a ciência extraordinária.

Esta última tem como característica central a invenção de conceitos, teorias ou métodos novos, e principalmente o estabelecimento de novos paradigmas a partir dos quais outros tipos de problemas poderão ser pensados, assim como outras soluções poderão ser produzidas. Kuhn aponta que são esses momentos que podem ser considerados revolucionários, fazendo com que novas possibilidades de pensamento sejam construídas. Além disso, salienta o autor, um paradigma não necessariamente apresenta continuidade em relação aos paradigmas que o antecederam, de modo que se instaura um entendimento não progressivo ou não cumulativo do pensamento científico. Paradigmas podem ser incomensuráveis entre si: o termo largamente empregado em debates sobre tradução — com o sentido de indicar a impossibilidade de transporte de um significante específico de uma língua a outra sem que algo de seu sentido seja perdido nessa transposição — é utilizado por Kuhn para indicar a impossibilidade de transposição simples de um conceito para fora de seu paradigma originário. O que não necessariamente significa que a incomensurabilidade seja algo incontornável, mas sem dúvida se torna um tema de debates tão intensos quanto aqueles sobre as possibilidades de uma tradução literal correta.6

Há, entretanto, algumas páginas que Kuhn dedica a uma questão subjacente às crises e às revoluções científicas, algo que tradicionalmente não figurava em tratados de filosofia da ciência: um processo nomeado por ele como “resistência”. Segundo o autor, a proposição de um novo paradigma e, em especial, a afirmação de limites dos paradigmas vigentes são atos que produzem reações conservadoras na comunidade científica. Desde tentativas de deslegitimação dos problemas causadores de crises até a incredulidade, ou até mesmo críticas não procedentes, seriam respostas mais comuns do que se gostaria de acreditar, empreendidas por parte dos membros da comunidade científica que teriam algo a perder com a reorganização do campo produzida pela emergência de novos paradigmas. Sejam essas reações causadas por algum tipo de apego aos paradigmas estabelecidos, ou mesmo por possíveis perdas de prestígio, de poder, de acesso a financiamentos etc., Kuhn não deixa de ressaltar a incidência dessas idiossincrasias no fazer científico.

Não é difícil imaginar que tais apontamentos tenham causado certo alvoroço entre teóricos da filosofia da ciência. A ruptura de um ideal de produção de conhecimento linear e cumulativo indicaria a necessidade de ressignificação de uma imagem de ciência há muito difundida; ademais, a consideração de que interesses mundanos eram parte importante da definição da agenda científica consistia num golpe cuja efetividade não era prevista no Olimpo, até então retratado como um espaço ocupado somente por questões puramente epistemológicas ou metodológicas, internas à comunidade científica. Efetividade essa decorrente do fato de o próprio Kuhn ser, além de filósofo e historiador, um físico. Essa posição de insider pode ter lhe dado uma potência que alguns de seus antecessores e influências7, como Alexandre Koyré8 e Ludwik Fleck,9 não obtiveram.

Nesse sentido, Kuhn é um nome decisivo na tradição crítica a posicionamentos unicistas ou epistemologicamente normativos em filosofia da ciência, a qual desde então tem causado debates acalorados apelidados de Science Wars [guerras da ciência]. Um embate que pode ser entendido como a disputa entre realistas teóricos e nominalistas radicais10, a qual teria tido seu momento crítico com a controversa publicação de Vida de laboratório, por Bruno Latour e Steve Woolgar.11 Entre as diversas discussões que se pode depreender dessa querela — que se esparrama por décadas a fio —, há um ponto de especial interesse para o caminho proposto neste artigo. Algo ligado a ideia de contingencialidade do fazer científico; não a contingencialidade em si, mas uma de suas decorrências: os efeitos causados pela existência de uma possibilidade de escolha.

Uma vez colocada a questão nesses termos, é necessário traçar alguns limites que deixem claro que não se trata de uma posição negacionista. A ideia de escolha não decorre de uma relativização total do fazer científico, como se isso que chamamos de ciência fosse um processo a tal ponto maleável que poderíamos produzir, a nosso bel prazer, os resultados esperados. Isso não é possível, seja porque há uma comunidade que regula o grau de interferência das intenções dos cientistas, seja porque os próprios objetos colocam limites àquilo que pode ser afirmado sobre eles.12 Mas então onde seria possível encontrar margem para escolha?

A filósofa e fisicista Isabelle Stengers13 discorre sobre uma ideia próxima ao falar da dimensão política presente no fazer científico. O faz apresentado criticamente os sucessivos fracassos das tentativas de demarcação dos limites entre ciência e não ciência a partir de critérios puramente epistemológicos ou metodológicos. Ou mesmo comentando o fato de que não são raros os casos em que a comunidade científica escolhe uma teoria em detrimento de outra sem que haja qualquer vantagem clara de uma sobre a outra — expediente esse anteriormente empregado por Thomas Kuhn em seu Estrutura das revoluções científicas. Segundo Stengers, a impossibilidade de esgotamento da compreensão do fazer científico somente em termos epistemológicos ou metodológicos produz duas consequências: primeira, a impossibilidade de unificação metodológica ou de normatização epistemológica, de modo que a variabilidade das formas de produção de conhecimento deve ser rigorosamente considerada; segundo, a necessidade de observação de um componente político, o qual consiste naquilo que permite a decidibilidade em casos em que não é possível fazer uma distinção de mérito somente a partir de discussões epistemológicas ou metodológicas.

Algo coerente com o que defende Hacking, ao comentar a contingencialidade e a necessidade do fazer científico. Segundo o filósofo,14 é possível afirmar que, uma vez determinados os parâmetros metodológicos e de validação de uma determinada disciplina, os resultados devam ser consistentes e coerentes entre si. Contudo, haveria um momento anterior, que diz respeito não à consistência do conhecimento produzido frente aos parâmetros estabelecidos, mas sim a como se dá o processo de definição desses próprios parâmetros, indissociáveis do delineamento das possibilidades de objetos e problemas a serem resolvidos.

Em outras palavras, é necessário considerar que as perguntas que foram, são e serão feitas são contingentes. Que nosso interesse se dirija a certos tipos de questões e não a outros indica uma dimensão contingente de extrema importância. Até mesmo a linguagem empregada modificaria as possibilidades do fazer científico. Nesse sentido, pode-se ver que a questão da escolha toca num ponto sensível sobre a imagem que construímos da ciência: a sua inevitabilidade. Algo presente já no título do artigo de Hacking, “How Inevitable Are the Results of Successful Science?” [O quão inevitáveis são os resultados de uma ciência bem-sucedida?]. A inevitabilidade indica o caráter necessário, aquilo que não pode ser diferente do que é. Tanto a epistemologia quanto as discussões metodológicas tentam fazer com que a ciência se aproxime ao máximo de tal inevitabilidade, mas parece haver um momento em que isso não é possível: a escolha é anterior.

Já Stengers15 toma uma posição um pouco mais radical ao afirmar que tanto a definição da agenda científica como do desenvolvimento das ferramentas (teóricas, epistemológicas, metodológicas etc.) são indissociáveis do campo político: lugar do debate sobre o bem comum e onde se conjugam relações de poder. Isso não significa que a ciência deva ser reduzida à política, mas que o político deve ser reconhecido como parte operante de seu fazer. Tampouco diminui o valor do conhecimento produzido, a não ser que haja algum ganho com a ideia de que o processo de produção de conhecimento seja inevitável.

Em seu argumento, a filósofa faz uma diferenciação entre a postura de filósofos da ciência e a postura de cientistas. Segundo ela, os primeiros tradicionalmente se preocupam e se engajam em definir e defender a unicidade do fazer científico baseando-se em critérios epistemológicos e metodológicos. A definição de uma normatividade seria central, e tal normatividade deveria ser sustentada pela filosofia da ciência.

Já os cientistas, diz Stengers, não estariam assim tão preocupados com a unicidade ou normatividade epistemológica, nem metodológica. Haveria, em seu cotidiano investigativo, dispositivos bastante competentes em delinear o campo de debate e de possibilidades, de modo que uma sustentação filosófica não seria tão relevante. Entretanto, isso não significa a ausência de uma visão normativa, pelo contrário: quando confrontados com questionamentos sobre a suposta pureza do fazer científico, a resposta encontrada seria reativa e até mesmo agressiva. Como se a ideia de variabilidade fosse tolerável somente se as opções forem internas e alinhadas a um ideal de pureza científica. Algo que pôde ser vislumbrado quando Thomas Kuhn publicou seu As estruturas…, 16 e que foi explicitado na recepção de Vida de laboratório:17 ao que parece, o questionamento de uma imagem purificada de ciência, como realizado por Latour e Woolgar, extrapolou o aceitável (na época, ao menos).

Vemos, por exemplo, tolerância e interesse no debate neoliberal em que as críticas de Friedrich von Hayek sobre a unicidade foram aceitas por Karl Popper,18 acolhendo a ideia de que haveria espaço para escolhas epistemológicas e metodológicas distintas dentro do campo científico. Entretanto, o mesmo não aconteceu com os autores que se debruçaram num estudo antropológico de um laboratório cuja pesquisa viria a ser laureada com um Nobel, como feito por Latour e Woolgar. De fato, o relato mostra uma quantidade enorme de decisões motivadas por questões “extra” científicas. Algo qualitativamente distinto da diferenciação entre fenômenos simples e complexos de Hayek,19 e muito mais radical que as considerações de Kuhn.20 Tal radicalismo apresenta uma dupla inscrição: por um lado, ao demonstrar como tais fatores “impuros” estariam presentes no dia-a-dia, ou seja, na ciência normal e não só em momentos de crise; por outro lado, ao indicar que parte das motivações são externas à comunidade científica, algo que, como bem aponta Stengers21, não foi muito desenvolvido por Kuhn em As estruturas.

Ao voltarmos nossa atenção para a psicanálise, há duas considerações iniciais a serem feitas: a primeira, diz respeito ao modo como os psicanalistas, em especial Freud, lidaram com o lugar resguardado à ciência em suas considerações — e também como isso eventualmente foi subvertido, produzido efeitos diversificados; a segunda, versa sobre como a psicanálise pode contribuir para a compreensão da resistência à consideração da existência da escolha.

A psicanálise e a escolha

Freud tinha uma preocupação em solidificar o lugar da psicanálise enquanto uma ciência legítima, algo encontrado já em 1895 com a afirmação da psicanálise como uma ciência natural22 — o que pode ser compreendido como uma tentativa de superação da divisão entre ciências da natureza e ciências do espírito.23 Como afirmado no início deste artigo, a preocupação com a adequação aos padrões de cientificidade de seu tempo se faz perceber em diferentes momentos — efeito produzido pela especificidade do objeto e do método de investigação psicanalíticos, mas também atravessado por receios antissemitas e outras questões políticas do contexto. Em outros momentos, como no referido projeto de 1895 e retomado numa conferência apresentada em 1933,24 o psicanalista sublinha a filiação da psicanálise à práxis científica, o que além de lhe dar certo lugar de prestígio, também serviria como uma imposição de limites frente à especulação metafísica pela qual psicanalistas poderiam se sentir seduzidos. Freud é bastante claro ao afirmar que a psicanálise não é uma visão de mundo; ela está inscrita na visão de mundo científica.25

É possível reconhecer um tensionamento entre o desejo de Freud de consolidação da psicanálise enquanto uma ciência o mais adequada possível aos padrões da época e as dificuldades decorrentes dos problemas que tenta resolver. Tal tensionamento produz avanços epistemológicos que poderiam levar a um questionamento desses padrões de cientificidade, porém não é levado às últimas consequências. Ao contrário, uma concepção tradicional de ciência continua ocupando um lugar central de apoio na legitimação não somente do conhecimento psicanalítico, mas também de sua práxis.

Esse posicionamento de Freud pode ser visto, por exemplo, em sua preocupação em forjar um conceito que pudesse ser uma espécie de representante da psicanálise, algo que fornecesse uma explicação geral e que pudesse ser identificado à ciência psicanalítica. Como indicam Philippe Van Haute e Herman Westerink,26 a centralidade da conceitualização do Complexo de Édipo teria sido forçada por Freud também nesse intuito, o que teria produzido recuos importantes em relação a avanços inovadores da teoria freudiana. É possível reconhecer uma crescente normatividade na teoria da sexualidade nos textos produzidos após a centralização do complexo de Édipo, a qual contrasta com momentos precedentes (as modificações realizadas em textos anteriores não deixam de atestar esse movimento). Mas, para além das análises do lugar que a teoria da sexualidade teria na política do conhecimento freudiano, há outra linha argumentativa que deixa clara a função e o lugar dados à ciência.

Em Uma dificuldade da psicanálise,27 Freud mobiliza seu célebre paralelo sobre as três afrontas infligidas contra o amor-próprio de toda a humanidade: a primeira, impetrada por Copérnico ao retirar a Terra do centro do universo; a segunda, por Darwin na retirada dos humanos de um lugar privilegiado em relação a outras espécies; e, por fim, o comentário de que a terceira afronta seria o descentramento do Eu, causada pela psicanálise (portanto, pelo próprio Freud). Para que não repitamos análises já muito difundidas, gostaria de focar em dois pontos: a função e o lugar da ciência. Isso porque, apesar de citar nominalmente os autores referidos, Freud é categórico ao nomear o agente das afrontas como algo maior: a ciência.

Primeiramente, uma operação topológica realizada pela ciência: ela produz o descentramento. A práxis científica aparece aí numa função crítica, capaz de desmantelar crenças e entendimentos há muito consolidados. Ademais, não somente bem consolidados, mas com grande prestígio e ocupando um lugar de referência na organização dos ditames sociais e das identificações. Não à toa, como aponta o psicanalista, a crítica e consequente descentramento da Terra, da espécie humana e do Eu produziriam os mais intensos protestos e resistências. Como viria a elaborar alguns anos depois, os processos identificatórios são amplos e possuem um papel central na organização psíquica e social,28 e a perda do elemento organizador produz efeitos de intenso medo e angústia.

Num segundo momento, entretanto, pode-se pensar que a organização topológica é reestabelecida: o lugar organizador passa a ser ocupado pela ciência. Desse modo, a ciência não possui apenas uma função crítica, mas também ganha uma posição privilegiada enquanto referência social e psíquica,29 sendo inclusive um destino possível para a angústia produzida por sua função crítica. Seria possível ponderar, corretamente, que a ciência tem um funcionamento calcado num horizonte de abertura que privilegiaria essa função crítica e, portanto, que as teorias que ocupariam tal lugar sofreriam com certa instabilidade constitutiva dessa própria posição topológica dentro do pensamento científico. Isso não impede, contudo, que a ciência, de maneira ampla, ocupe tal lugar. O que explica as reações intensas a críticas que questionam alguns aspectos tradicionalmente compreendidos como relevantes à sustentação do lugar privilegiado da ciência, como vimos anteriormente com Kuhn, Latour & Woolgar e Stengers.30

No caso de Freud, retomando a supracitada conferência de 1933, vê-se que embora haja o reconhecimento da religião e da filosofia enquanto visões de mundo, a visão de mundo científica é apresentada enquanto superior. Não obstante, como dito há pouco, a própria psicanálise é subordinada a essa visão de mundo, de modo que existe uma hierarquia bem estabelecida. A questão da escolha, nesse ponto específico, parece passar por um duplo apagamento: por um lado, não haveria (e nunca houve) escolha à psicanálise senão subordinar-se à visão de mundo científica; por outro, não parece haver margem para que os parâmetros de cientificidade sejam questionados ou reformulados. Embora a localização da psicanálise na ciência seja bastante profícua, a impossibilidade de questionamento sobre os parâmetros de cientificidade pode produzir um efeito retroativo de filiação acrítica, marcada sobretudo por uma crença na impossibilidade de escolha. Vale lembrar que esses parâmetros já eram debatidos de maneira crítica nessa época.31 Por outro lado, esse duplo apagamento pode servir como uma forma de manter intacto um traço tradicionalmente reconhecido como constitutivo do lugar privilegiado da ciência: a sua inevitabilidade. Como se a ciência fosse um trem com um trilho já pré-definido, mesmo que ainda desconhecido; mas que, mesmo sem saber exatamente o caminho futuro, só haveria uma maneira de descobri-lo: seguir o único trilho existente. Com a psicanálise, não seria diferente.

O projeto cientificista de Freud tem continuidade com Jacques Lacan, ao menos nas primeiras décadas de seu ensino. Mesmo que de maneira renovada, o psicanalista francês não deixa de buscar na antropologia e na linguística estrutural um modo de inscrição que Freud buscava nas ciências físicas e biológicas.32 Tal esforço perde intensidade por alguns anos, mas um diálogo franco com a ciência é retomado nos anos 1960, em especial a partir de 1964. Segundo Sidi Askofaré,33 essa retomada teria sido ensaiada no seminário interrompido sobre os Nomes-do-Pai­, em que Lacan discorreria sobre o desejo de Freud em relação à psicanálise, sobre a questão da ciência e inclusive sobre como, em diversos momentos, ela pode se aproximar da religião. A interrupção do seminário e sua consequente mudança de lugar fez com que o debate sobre o desejo de Freud fosse adiado, mas não impediu a retomada da questão da ciência. Esta se deu, entretanto, sob outro ângulo, agora visando um diálogo maior com outras áreas.34 Além disso, tal retomada promove uma subversão do projeto cientificista original, ao não mais buscar meios de sustentar a adequação aos critérios estabelecidos de cientificidade, mas sim ao problematizar tais critérios. Algo que leva à célebre afirmação de que não se trata de pensar se a psicanálise é uma ciência, mas sim do que seria uma ciência que inclua a psicanálise.35

Essa subversão, continuada nos anos seguintes, rende frutos diversos: desde um aprofundamento do tipo de problema ou incompatibilidade que a psicanálise colocaria aos moldes tradicionais de cientificidade, aprofundamentos em estudos sobre matemática e lógica, momentos em que Lacan afirma certo distanciamento da ciência, entre muitos outros. Não seria produtivo aprofundar cada um deles aqui, mas vale dizer que para além dos efeitos diretos na obra de Lacan, também se reforçou a possibilidade de defesa de um distanciamento da psicanálise em relação à ciência por parte de diversos psicanalistas, como se a restauração da possibilidade de escolha, rasurada por Freud, só pudesse se realizar pela negação da produtividade desse debate. Porém, o que mais nos interessa aqui é o trabalho teórico necessário para que essa subversão fosse possível em termos psicanalíticos, o que já se aproxima da segunda questão levantada, que versa sobre o que a psicanálise tem a dizer sobre o apagamento da escolha e retoma o comentário iniciado sobre o valor da inevitabilidade.

Se considerarmos que há um movimento que se inicia em 1963 ou 64, então haveria uma localização da psicanálise no espírito de sua época — As estruturas das revoluções científicas36 foi publicado em 1962 e Pensamento formal e ciências do homem,37 em 1960. Dois exemplos de livros que colocavam questões importantes a projetos de epistemologia normativa, de modo que poderíamos pensar que a psicanálise estaria simplesmente em compasso com a produção de outras áreas. Embora a correlação seja correta, o caminho não é necessariamente o mesmo. Se os filósofos e historiadores da ciência tomavam o próprio campo científico enquanto objeto, Lacan faz um percurso clínico, mas que será muito bem absorvido em discussões epistemológicas.

O final dos anos 1950 e início dos anos 1960 é marcado por questionamentos éticos, que revisitam de maneira vertical o potencial, a ser evitado, de que a psicanálise se torne uma prática moralizante — um dos pontos cruciais de desentendimento de Lacan com outros pós-freudianos. Lacan tenta dar consistência à ideia da inexistência do Outro do Outro,38 a qual pode ser desdobrada na inexistência da verdade da verdade e também da inexistência da metalinguagem. Esse percurso envolve, por um lado, um questionamento sobre o lugar do analista em uma análise e, por outro, o lugar do saber dentro da psicanálise.

A resposta, para ambos, é que haveria certa inércia para a substancialização de alguém ou algo que poderia ter a função de detentor da verdade da verdade, o Outro do Outro: isto é, mesmo trabalhando com certa plasticidade fenomênica, haveria um horizonte normativo que corresponderia a uma verdade absoluta, inevitável. Isso fica claro, por exemplo, nas críticas que Lacan faz a algumas vertentes em voga nos Estados Unidos nos anos 1950, ao questionar se se trataria de um projeto de normalização cujo objetivo seria fazer com que os analisantes se tornassem indivíduos produtivos nos moldes da cultura estadunidense.39 A maneira como isso poderia se realizar é variável, mas haveria uma referência estável a partir da qual seria possível estabelecer a verdade do que estaria acontecendo. Dentro do pensamento lacaniano, tal inércia seria justamente um modo de resistência, algo que funcionaria para evitar a angústia advinda da opacidade produzida pela ausência de um sentido essencial, ou de uma verdade absoluta. Isso não significava uma defesa de um gozo individualista — o que seria restaurar uma verdade absoluta invertida —, mas sim de um outro modo de implicação na definição dos parâmetros de julgamento, modo este capaz de produzir laços sem a necessidade de um outro garantidor.40

Vemos que, embora tratando de questões clínicas, o percurso trilhado por Lacan não pode deixar de produzir efeitos sobre o modo como lidamos com o conhecimento. Retomando o que foi discutido anteriormente, vê-se que apesar de seu horizonte crítico de abertura, a ciência pode ser colocada no lugar de garantia, como se fosse detentora da verdade da verdade. Instaura-se, assim, um tensionamento entre a função crítica da ciência e o lugar organizador que ela ocupa, o qual pode produzir tanto uma maneira mais interessante de ocupar tal lugar organizador, mas também pode fazer com que a função crítica seja obliterada. Talvez aqui resida a primeira escolha que devemos fazer em relação à ciência.

Escolha pra quê?

Gostaria de indicar alguns motivos pelos quais a dimensão de escolha deveria ter um lugar mais cuidado em nossos debates. A psiquiatria contemporânea nos fornece alguns exemplos, assim como certas decisões tomadas em políticas públicas de saúde mental.

Como aponta Nikolas Rose,41 as últimas décadas têm sido bastante movimentadas no campo de pesquisas sobre saúde mental. Partindo de certa estagnação da indústria farmacológica na área da psiquiatria, uma nova aposta foi feita, junto com a eleição de um inimigo: a dificuldade de avanços no campo da psiquiatria seria decorrente de sua frouxidão metodológica, causada pela insuficiência de manuais convencionalistas. Como afirmou Thomas Insel42 em 2013, quando era diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA (NIMH), as pesquisas deveriam parar de ter o DSM (Manual Diagnóstico Estatístico) como referência, passando a serem feitas como nas outras áreas da medicina.43 Tratava-se do momento de lançamento do RDoC, o qual se juntava a projetos de mapeamento cerebral, com o intuito de abordar os transtornos mentais de outra maneira, recebendo enormes investimentos governamentais, muitas vezes tirando financiamento de projetos mais promissores.44

De fato, apesar de toda a empolgação, a aposta em neuroimagens, mapeamento cerebral e outras promessas não têm se mostrado muito efetivas, algo já previsto por alguns autores.45 Por outro lado, a escolha por investir nesses projetos e não em outros se mostra questionável. Rose aponta, por exemplo, estudos ingleses que indicam ligações fortíssimas entre insegurança domiciliar e alcoolismo, depressão e surtos psicóticos. Estudos que muitas vezes são obliterados, e que recebem muito menos financiamento. O próprio Insel, antes defensor inconteste, voltou atrás poucos anos depois, após sua saída do NIMH, afirmando que apesar de ter manejado algo próximo a 20 bilhões de dólares, não sabe se ajudou uma pessoa sequer46.

Não se trata de ser contra a pesquisa em neurociências ou com mapeamento cerebral. Mas de poder questionar o que estaria em jogo na opção por gastos estrondosos com estudos que, previsivelmente, não trariam o tipo de resultado esperado. Especialmente quando em detrimento de outras que poderiam produzir soluções mais consistentes. Tratando-se de pesquisas que prometem uma compreensão integral do cérebro e seus transtornos — retirando do conhecimento seu caráter consensual —, é difícil não pensar que há uma tentativa de restauração de um lugar de garantia, de estabelecimento de um saber inevitável, indiscutível.

Deve-se lembrar que essa ânsia também ecoa na psicanálise, sempre que esta é tomada enquanto uma visão totalizante que prescinde de interlocuções. Os momentos em que tal descaminho mostre sua radicalidade são, justamente, aqueles em que o debate com a ciência é recusado, numa atitude muito bem pontuada por Waldir Beividas como fóbica.47 Não se trata de tomar a ciência de maneira ingênua — até porque, coerentemente com nosso argumento, não existe “a” ciência, e sim ciências —, nem de evitar o debate sobre os atravessamentos políticos. Trata-se de poder entrar nessas discussões de maneira mais vertical, apontando as possibilidades e as impossibilidades, questionando as motivações e discutindo os efeitos éticos do conhecimento que queremos produzir. O próprio debate com as neurociências tem sido realizado de maneira muito produtiva, como vemos com Howard Shevrin,48 Linda Brakel, Ariane Bazan e muitos outros. Como efeitos, podemos encontrar a concordância de críticos tradicionais da psicanálise como Adolf Grümbaum,49 e também perguntar por que estudos bem-sucedidos não têm sido replicados ou ampliados.50

Partindo desse ponto, a discussão sobre atravessamentos políticos tem uma incidência mais clara. A escolha se dá num momento anterior, mas ela existe. Há caminhos muito diversos por onde podemos produzir nosso conhecimento, e a história de por que escolhemos esses caminhos e não outros deve ser contada. As escolhas devem ser explicitadas, debatidas e, sempre que necessário, revistas. O momento em que escrevo este ensaio, após anos de desmonte e destruição da ciência brasileira, é um momento de reconstrução. É imperativo que discutamos como reconstruir esses caminhos, pensando não somente nas possibilidades epistemológicas e metodológicas, mas também em como o conhecimento científico influencia os modos como construímos nosso mundo. Pode-se pensar no que se quer evitar, resolver e construir ou pode-se tentar alcançar uma inevitabilidade impossível. A história mostra que tentar evitar esse impossível não só nos faz perder tempo, mas também produz violências e cala diversas formas de saber. Talvez lidar com esse impossível de outra maneira, tentando não o evitar, mas sim tomando-o como impulso, pode trazer resultados novos.