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Uma república na corda-bamba

Maquiavelianas — povo e poder popular, Maria Spector

Escrevo este texto sobre Maquiavelianas: lições de política republicana, de Sérgio Cardoso, com alegria e receio. Esses dois sentimentos aparentemente contrários aqui se confundem, a ponto de eu descrer de minha capacidade de comentar o livro com o distanciamento que, suponho, esperavam de mim quando me convidaram para participar deste número da Rosa. Para estudiosos e estudiosas da obra de Maquiavel no Brasil, entre as quais descaradamente ouso me incluir, a oportunidade de participar deste book symposium só pode ser motivo de alegria. Mas receio não ter discernimento suficiente para separar o trabalho da reflexão e a memória afetiva que teima em se insinuar na minha leitura do livro. Digo isso, de partida, já me desculpando por escrever este texto menos como uma crítica teórica do que como uma homenagem à obra e à persona filosófica de Sérgio.

Fui aluna de Sérgio no segundo ano de graduação em filosofia, em 1990, na disciplina Teoria das Ciências Humanas. Foi durante a disciplina que Sérgio defendeu sua tese de doutorado, “A crítica da antropologia política na obra de Pierre Clastres”. Lembro-me quando nós, alunas e alunos, o esperamos ansiosas à porta da sala de aula, dias após a defesa, e o vimos surgir vagarosamente pelo corredor da Filosofia como alguém que regressasse de uma batalha, exausto, mas vitorioso. Para nós, defender uma tese era um feito quase sobre-humano e por isso impiedosamente o cravamos de perguntas sobre como tinha sido. Ele nos respondeu com a gentileza e paciência que são duas de suas características pessoais mais notáveis, não se importando em perder parte da aula para sossegar aqueles jovens assombrados.

O programa do curso deveria terminar com a análise de A sociedade contra o Estado, de Clastres. Começamos com a Política, de Aristóteles, daí partimos para Os canibais, de Montaigne, em seguida visitamos O discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, de Rousseau, e fizemos uma escala em “Jean-Jacques Rousseau, fundador das ciências do homem”, de Lévi-Strauss. Nunca chegamos a Clastres. Passamos quase um mês discutindo os Livros I e III da Política, retomando as passagens nas quais Aristóteles diferencia os helenos dos bárbaros. Foi um curso muito marcante para mim. Aprendi que era possível lançar um olhar filosófico sobre textos que não são explicitamente de filosofia; que não era errado nem torto tratar como filosoficamente relevantes escritos não apenas fora do cânone, como ainda que põem em xeque distinções rígidas sobre o que define ou não um texto filosófico. E hoje ainda continuo interessada em entender a dicotomia entre bárbaros e não bárbaros.

O curso também me marcou pelo exame cuidadoso dos detalhes e matizes, algo que a meu ver constitui um exercício genuíno de reflexão. Não chegamos a estudar A sociedade contra o Estado, é verdade, mas já na época me pareceu que o aprendizado mais forte e sutil da disciplina era esse fazer e refazer o mesmo percurso, porém formulando outras indagações e, principalmente, dúvidas. A sustentação da dúvida, seu adensamento gradual, é algo que buscávamos muito mais do que as respostas, fadadas ao rápido perecimento. Aprendemos a nos manter em dúvida para não perdermos de vista as diferentes perspectivas sobre um certo texto, sem que isso implicasse mergulharmos no solipsismo estéril.

Reencontro o olhar filosófico generoso e aguçado de Sérgio em Maquiavelianas e na sua trajetória intelectual que tenho acompanhado desde então, em especial no que se refere ao seu “projeto republicano” (surrupiando uma expressão da querida Heloísa Starling). Esse “projeto republicano” se concretiza duplamente no livro. Primeiro, podemos considerá-lo como o estudo de um modelo popular de república, isto é, um modelo no qual o povo é o produtor da lei. Voltarei a isso daqui a pouco. Em segundo lugar, o livro é um ensinamento valioso sobre Maquiavel, sobre o conceito de república e sobre as repúblicas que consumiram sua atenção, particularmente Roma e Florença. Junto com Newton Bignotto e Helton Adverse, que compõem o núcleo duro dos maquiavelianos no Brasil, Sérgio ajudou a criar um campo de estudos ou constituir uma disciplina, aqui entendida como ramo de conhecimento, instrução e direção. Na última parte do livro, fica claro que Sérgio se preocupa em formar leitores e estudantes, afastando aquelas interpretações de senso comum que vão desde o Maquiavel maquiavélico até o Maquiavel teórico da “escolha racional”, cuja máxima suprema seria “os fins justificam os meios” — máxima enunciada por jesuítas e que não se encontra em nenhum lugar das obras de Maquiavel, mas isso pouco importa. Nesse aspecto também, o cuidado e a paciência de Sérgio transparecem quando ele reconhece nas obras labirínticas de Maquiavel desafios incontornáveis e talvez invencíveis.

Aliás, Sérgio se mostra um discípulo de Maquiavel não apenas quando procura compreender junto com o autor o significado da república, mas também quando valoriza e concede lugar privilegiado ao debate, incorporando ao livro seu diálogo com Helton Adverse e José Luiz Ames. É uma espécie de propedêutica filosófica e humanística evidenciar a natureza polêmica e controvertida do tipo de estudo que se deve realizar em filosofia e teoria política. A verdade não é o valor principal a se perseguir, mas nem por isso um estudo nesses moldes é menos rigoroso e valoroso. É por essas e outras que Sérgio Cardoso continua a ser um teórico das ciências humanas.

Mas Maquiavelianas é também o trabalho de um filósofo político e, ao mesmo tempo, de um historiador da filosofia. Sérgio oscila entre esses dois papeis, indicando que é preciso ponderar as relações entre eles. Penso, porém, que esse movimento de oscilação não é mesmo linear, nem destituído de tensões, e por isso tentarei, a seguir, explorar o entrecruzamento dessas duas dimensões do livro.

Como filósofo político, Sérgio não deixa de enfatizar suas inquietações normativas e prescritivas, que são abordadas mais diretamente na Parte I do livro. Exemplo disso se vê na página 226: “a afirmação da divisão civil … torna-se o eixo do debate no campo da exegese e da própria disputa sobre o sentido da obra”. Discursos sobre a década de Tito Lívio se converte em fundação da reflexão, ou seja, essa obra fornece os conceitos, teses, argumentos, contra-argumentos que fixam um ponto de referência para o exame de outras obras, como O príncipe e as Histórias florentinas. Esses conceitos são: “república” (o mais óbvio); “povo” ou “república popular” ou “república plebeia”; “democracia” — tudo isso mediado pelo conceito inerentemente subversivo de “conflito”. Ao se concentrar nesses conceitos, o próprio Sérgio admite o tamanho da dívida com seu mestre Lefort: a divisão irredutível da cidade entre os grandes e o povo deve ser tomada como o princípio com base no qual é possível pensar a natureza do desejo do povo, em oposição ao desejo dos grandes.

É em torno da dinâmica entre esses desejos opostos que Sérgio estrutura sua reflexão filosófica, uma reflexão que, ao investigar o fenômeno da excelência da república romana, acaba por recuperar o tema do bom governo. Sabemos que Maquiavel desconfia fortemente das teorias que advogaram uma forma pré-determinada de governo como um ideal a ser perseguido, a despeito das características próprias de cada corpo político. Essas teorias ignoraram que os valores morais puramente especulativos, os quais devem nortear a constituição dessas formas de governo, não dão conta da multiplicidade e complexidade de relações de poder existentes no mundo. Mas isso não quer dizer que Maquiavel, na interpretação de Sérgio, tenha renunciado a pensar sobre os fundamentos da república e, em particular, o que tornou Roma uma república perfeita.

A partir disso, Sérgio busca desenhar uma república democrática, na qual o elemento popular não é apenas indispensável, como também definidor da legitimidade do governo. Uma república em que não existe ou na qual é sufocado o elemento popular não é uma república; uma democracia em que o elemento popular é mero garantidor de um governo da elite não passa daquilo que Rosanvallon chamou, em Le bon gouvernment (2015), de “democracia sem povo”. Na democracia, como na república, o povo não pode desempenhar um papel meramente passivo, do contrário o regime é uma oligarquia. Por outro lado, tampouco se pode suprimir, da república, o elemento não popular, sob pena da ruína da própria república. Eliminados os grandes, a república se torna um governo faccioso, voltado à satisfação de interesses privados e convertido em meio de dominação do grupo majoritário. De fato, o desejo do povo só pode ser negativo enquanto confrontar o desejo positivo dos grandes, que é um desejo de dominação e aquisição. O que certamente confere um sentido ainda mais trágico a essa república é que mesmo o desejo nocivo deve ter algum espaço. Contê-lo não é fácil, porque os grandes sempre procuram escapar às ordini e leggi, desencadeando o processo de corrupção da república.

Na perspectiva de Sérgio, a república maquiaveliana parece estar constantemente na corda-bamba. Nela, é necessário manter em equilíbrio instável o conflito entre grandes e povo, seja por canais institucionais, seja por vias extra-institucionais, já que não se pode reduzir a participação popular a nenhum desses dois meios. Em condições excelentes, como a que em algum momento pode ter alcançado Roma, o povo manifesta seu desejo negativo ao impedir o desejo nocivo dos grandes, o que o qualifica, portanto, como o guardião da liberdade

Essa visão de uma república conflituosa combate o que em algumas passagens mais enfáticas Sérgio chama de “leitura apaziguadora” de Maquiavel. Ele tem em mente a interpretação de Quentin Skinner, para quem a necessidade de diluição dos conflitos, supressão dos excessos, das paixões aquisitivas, seriam requisitos para uma composição constitucional capaz de equilibrar pulsões opostas. Mas me pergunto se, em alguma medida, a construção de um povo ontológico, povo que não é um agrupamento social nem “psicológico”, que não configura uma classe, não poderia ser também classificada como uma proposta de apagamento do povo empírico. Nos Discursos sobre a década de Tito Lívio, várias passagens evidenciam que o povo, em vez de ser o promotor da grandeza da república romana, é diretamente responsável por seu aviltamento, por flertar com a tirania. No capítulo 10, Livro I, Maquiavel procura dissipar a aura gloriosa formada em torno de César, que não seria senão o primeiro tirano de Roma. César se fez amigo da plebe para desmobilizá-la e corrompê-la; a plebe, por sua vez, reuniu-se sob o manto de César com a expectativa de eliminar a elite. César foi amado, quando deveria ter sido odiado. No capítulo 40, Livro I, Maquiavel critica o povo por deliberadamente não controlar os decênviros, animado que estava pelo desejo de eliminação dos oponentes e privatização do poder. Ao apoiar os intentos tirânicos de Ápio Cláudio de abater a nobreza, o povo ignorou o fato de que aquele a quem ele favorece costuma se voltar, depois de atingir os adversários, contra o próprio povo, tornando-o servil. O problema, portanto, é que o desejo do povo pode perder sua negatividade, situação em que seu desejo não parece se diferenciar do dos grandes

Gostaria de insistir um pouco nesta pergunta: não é uma maneira de apaziguar o povo, de domesticá-lo, traduzir seu desejo negativo como destituído de um objeto — neste caso, a destruição dos grandes? Como purificar o desejo negativo para que ele não se converta em desejo tirânico? Parece-me que, para Sérgio, o povo somente é um agente político legítimo quando ele atua como unidade dotada de um desejo negativo. Do contrário, não é um povo, não é nada. No entanto, a meu ver, o risco que essa operação de submissão do povo empírico ao povo ontológico corre é deixar escapar relevantes pulsões e conflitos da república democrática, ponto tocado também por Ames e Adverse no livro. E também indiretamente pelo próprio Sérgio, como tentarei mostrar a seguir.

As tensões resultantes da separação entre um povo empírico e um povo ontológico me parecem ser o desdobramento de uma distinção anterior, entre filosofia e história da filosofia, ou melhor, entre o Sérgio filósofo político e o Sérgio historiador do pensamento político, dois papeis assumidos por ele no livro, como já indiquei acima. Identifico aqui, na verdade, uma ambiguidade que não sei se se dissolve ao longo da Parte II de Maquiavelianas. Essa ambiguidade se deve à valorização da filosofia em detrimento da história da filosofia ainda na Parte I. Na página 124, Sérgio afirma que o historiador vai dos registros documentais aos textos filosóficos, enquanto a filosofia parte dos textos e vai à história “para iluminar os caminhos do discurso” (ênfase minha). Tarefa soberana a da filosofia! Porém, na página 139, ouvimos Sérgio dizer que o historiador Maquiavel investiga as causas dos acontecimentos políticos, as razões dos ódios e divisões no interior da cidade, produzindo, nessa atividade, uma arte política. Agora, a matéria-prima da reflexão não é o que deveria ser, mas o que é. Se for assim, parece haver um deslocamento teórico importante da Parte I para a Parte II do livro, provocado pelo estudo original e fascinante das Histórias florentinas. Essa obra de Maquiavel coloca um dilema e faz aumentar as tensões entre estes dois polos: povo ontológico-povo empírico e filosofia-história. Salvo engano, aqui se vê uma inversão de prioridades. A reflexão sobre o estatuto da história se torna uma reflexão sobre a natureza instável e imprevisível dos conflitos. No mesmo passo, Maquiavel se torna mais republicano por sua análise das venturas e desventuras da república florentina do que por estabelecer um modelo excelente de república. Florença se dissocia de Roma, não devendo nem podendo imitar-lhe a constituição. Afinal, Florença é a república que já nasce corrompida e não consegue se livrar dessas marcas de origem. Ao contrário, com o tempo elas só vão se tornando mais profundas. Florença não é, em definitivo, o exemplo de boa constituição, já que propende, a não ser em momentos excepcionais, para a oligarquia ou, pior, para o principado e a tirania. Será que, mesmo assim, é possível falar de um paradigma florentino?

Talvez essa oscilação da análise de Sérgio em Maquiavelianas, que partiu de uma república perfeita para uma imperfeita, sugira que as categorias ontológicas nem sempre são os melhores instrumentos da reflexão filosófica e normativa. A história, como a política, está crivada de fissuras, imperfeições e contradições que se furtam sem cessar a explicações abstratas. A contingência, sempre ela, parece se impor mesmo quando julgamos que finalmente refreamos seu ímpeto. Diante desses impasses, novamente então se colocam as perguntas que nunca querem calar: é possível prescrever modos de ação regulares e formular um discurso sobre as variações das circunstâncias? Como conferir inteligibilidade ao mundo, estabelecendo algum controle sobre ele?

Fico feliz e grata que eu tenha podido formular essas perguntas a Sérgio, perguntas que me intrigam faz tempo e para as quais eu mesma não tenho boas respostas. Mas foi ele quem me ensinou que mais importante do que as respostas são as perguntas a se fazer e refazer, até quando não haja em nós curiosidade e espanto.