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Estratos submersos e a condição do conhecimento na América Latina

3 (2022), Renata Haar

O objetivo deste ensaio é mapear o crescente número de trabalhos com foco nas Humanidades Ambientais e analisar duas importantes contribuições para os debates em curso que estão definindo a direção dos estudos culturais latino-americanos e caribenhos. Em 2019, Hector Hoyos publicou Things whith a History: Transcultural Materialism and Literature of Extraction in Contemporary Latin America, enquanto Elizabeth DeLoughrey publicou “Allegories of the Anthropocene”. Enquanto o escopo desses dois trabalhos varia em termos de geografia regional e/ou nacional, eles cobrem tanto os autores quanto os artistas que analisam. Ambos os livros tentam contestar o binarismo natureza/cultura — juntamente com outras dicotomias modernas — de posições e ângulos muito diferentes (talvez mesmo opostos): enquanto Hoyos propõe uma desalegorização (nomeadamente uma “literalização”) de vários trabalhos latino-americanos importantes, DeLoughery, por outro lado, nos convida a reconsiderar a alegoria como um modo de simbolizar a “disjunção percebida entre os humanos e o planeta, entre nossa ‘espécie’ e uma ‘natureza’ externa dinâmica”.

O modo como momentos históricos diferentes articulam a tensão entre processos de nomeação, descrição e conhecimento, e anonimato como uma condição primária constituem um estrato submerso da condição de conhecimento.

Matthew Fuller, “Anonimity” (2018, p. 42)

Em anos recentes, houve uma explosão de publicações (livros acadêmicos e não acadêmicos, ensaios, artigos), assim como obras de arte (performances, exibições e instalações, intervenções de mídia, filmes e documentários) que se situam nas intersecções dos estudos culturais latino-americanos e das humanidades ambientais. A ascensão destas últimas como um campo em rápida evolução não é exclusiva da América Latina, claro, mas um crescente fenômeno que reverbera em outras partes do globo. Embora isso não seja surpresa, face às rápidas mudanças do meio ambiente e às transformações antropogênicas que os humanos estamos experimentando, as quais impregnam “cada palavra que escrevemos, a comida que comemos e o ar que respiramos”, como assinala a historiadora da arte Susan Ballard (2021 p.2). Enquanto seu impacto avassalador afeta toda e cada pessoa no mundo, sua desproporcionalidade em relação aos perigos ambientais sobre as pessoas de cor ou as mais vulneráveis tem vindo ao primeiro plano das reivindicações de justiça ambiental.1 Essas lutas, certamente, não são exclusivas do Norte Global, pois sempre houve “inúmeras formas de consciência, prática e mobilização ambientais”, através da maior parte do mundo, a despeito de nem sempre terem sido familiares ao olhar ocidental (Carruthers 2008, 1). Para essas comunidades, às vezes à beira da extinção, a habilidade de se conectar e de ter acesso a uma terra saudável lhes permite florescer e ao mesmo tempo lhes proporciona continuidade. Um exemplo bem conhecido são os 15.000 habitantes Cofans que vivem na fronteira amazônica entre Equador e Colômbia, onde 18.5 bilhões de barris de petróleo derramados pela Texaco e centenas de outros vazamentos causados pela Petro Equador reduziram a população atual a umas poucas centenas (Anderson, 2021, p.210).

Os estudos culturais latino-americanos têm testemunhado o crescimento e a consolidação da crítica ambiental, mas também o surgimento de uma constelação de trabalhos que têm fomentado o desenvolvimento de novas práticas e enfoques dentro desse campo. Cada um desses trabalhos, desde seus próprios métodos e técnicas operam a partir de diferentes marcos teóricos e críticos, mudando o rumo epistemológico do campo — estabelecendo, assim, novas áreas de estudo e/ou potencializando sua reformulação. Esses enfoques críticos e teóricos, ademais, têm sido marcados por vários “giros” (desde o giro afetivo, o giro espacial, o giro pós-hegemônico, o giro ontológico, o giro em direção aos estudos indígenas, o giro material, etc.). Assim, algumas das propostas mais recentes se situam no giro vegetal e nos estudos críticos de plantas (Gagliano, Ryan & Vieira, 2017; Wylie, 2020); estudos sobre as intersecções de paisagem, o extrativismo e os legados da colonização (Andermann, Blackmore & Carrillo Morell, 2018); trabalhos sobre as noções heterogêneas da paisagem (Briceño & Coronado, 2019); a descolonização da ciência, do conhecimento e da natureza (Page, 2021), pós-humanismo e os limites do humano (Bollington and Merchant2020; Fornoff and Heffes, 2021), geografias imaginárias e construções de Estado-nação vis-à-vis aos trópicos (Martinez-Pinzón, 2016); as reconfigurações do canon latino-americano (French & Heffes, 2021); a interação entre textos e contextos durante o período de desenvolvimentismo (Saramago, 2021); as contra-leituras literárias da Amazônia (Smith, 2021); o extrativismo e a busca do Eldorado (Rogers, 2019); o materialismo transcultural (Hoyos, 2019); as ecologias líquidas (Blackmore & Gómez, 2020); “tidalectics” (DeLoughrey 2019; DeLoughrey and flores, 2020), e violência lenta (slow violence) (Kressner, Mutis, and Pettinaroli, 2020). Também tem surgido novas propostas que seguem transversalmente as preocupações do novo materialismo, a crítica indígena e pós-colonial, os estudos animais e a ecologia queer.

A reconfiguração dos conceitos, estruturas e perspectivas que têm ordenado, classificado e sistematizado o estudo da cultura latino-americana e caribenha ampliou o que entendemos por um texto literário, uma obra de arte ou cinematográfica. Essas reconfigurações recentes, por sua vez, determinarão como entenderemos a produção literária/cultural contemporânea, assim como as maneiras em que poderemos revisar ou reler o canon artístico ou literário, buscando novos entendimentos.

Decentrando o Antropos

Como investigadora no campo dos estudos latino-americanos, meu trabalho tem se valido dos conceitos e debates mais vitais e que estruturam, no presente, a exploração e análise mais relevantes dentro dos estudos ambientais — incluídas as humanidades ambientais — para examinar como, a partir do termo “meio ambiente”, é possível questionar as “relações de poder, agenciamento e responsabilidade com respeito aos entornos humanos e não humanos” (Harcourt & Escobar 2005, in Harcourt, 2016, p.161). A crise antropogênica demanda uma revisão do papel que têm jogado as políticas, economias e culturas extrativistas nos ecossistemas atuais. Urge também uma reflexão inovadora capaz de capturar as mudanças geológicas provocadas pela grande escala e magnitude das ações humanas, especialmente aquelas induzidas por poucos. Durante muito tempo, a região geopolítica da América Latina tem oferecido um repositório ancestral do vivente, assim como uma plataforma experimental a partir da qual questionar e desafiar as ontologias e epistemologias hegemônicas, próprias do pensamento ocidental. Com isto, refiro-me às diferentes “variedades do pensamento ambiental latino-americano, que se evidenciam hoje”, tais como as ontologias ameríndias, os imaginários nacional-populares, as práticas sincréticas culturais afro-latinas, entre outras, as quais possuem genealogias que podem ser mapeadas, inclusive até o passado pré-colombiano (French & Heffes, 2021, p.3). Dois exemplos recentes são , primeiro, o surgimento político da indigeneidade , que, de acordo com a antropóloga peruana Marisol de la Cadena, “desafia a separação entre natureza e cultura, a qual sustenta a noção predominante de política e o contrato social em que esta se baseia” (French & Heffes 2021, p.13); e, segundo a consideração que fazem Eduardo Gudynas e outros intelectuais — tanto indígenas quanto não indígenas — de conferir à natureza um valor intrínseco, junto com um reconhecimento mais amplo da Natureza como portadora de direitos — ou seja, como sujeito de direitos — impulsionado, este último, a partir da incorporação dos direitos da natureza no marco da construção equatoriana (French & Heffes, 2021, p.13).

Os estudos latino-americanos e caribenhos, ao responder às emergências atuais — em seu duplo sentido semântico de emergência e latência —, têm aberto um espaço produtivo para a crítica cultural, na qual se nutrem de novos marcos teóricos, tais como o pensamento ambientalista e a ecocrítica, a saber: os estudos focados na relação entre as obras literárias, artísticas e culturais e o seu entorno físico, os novos materialismos (neomaterialismos), a crítica ao ideal humanista do “homem” como representante universal do humano e o pós-antropocentrismo — a crítica das hierarquias entre espécies que promove o igualitarismo biocentrado e impulsiona novas formas de conhecimento e compreensão do conhecimento encarnado, bem como a relação deste com o ser e estar no mundo ( Fornoff & Heffes , 2021). Sem dúvida, como sugerem Rosi Braidotti e Maria Hlavajova, “a consciência de um sentido coletivo de responsabilidade ecológica, social e afetiva” pode (ou não) renovar o sentido da “agência ética e da consciência política” (2018, p. 4). Obviamente, existem controvérsias a respeito do uso do termo Antropos e, por extensão, do Antropoceno — muito se tem dito sobre a inadequação deste último. Na esclarecedora mesa redonda de 2014, intitulada “Os antropólogos falam: sobre o Antropoceno”, Haraway et al. discutem o conceito, então embrionário, de Antropoceno, captando várias destas tensões:

O Antropoceno implica um chamado importante para um novo tipo de prática política e modo de compreensão? Ou não passa de uma palavra política da moda? Os estudos sobre o Antropoceno apontam para uma genuína colaboração interdisciplinar ou sustentam hierarquias convencionais de conhecimento e poder? Quais são, em suma, as armadilhas e possibilidades do Antropoceno? (Haraway et al., 2016)

Particularmente interessante tem sido o surgimento de publicações acadêmicas que analisam detidamente obras literárias e artísticas com objetivo de reexaminar leituras convencionais. Alguns desses trabalhos propõem um tipo de leitura que tenta desestabilizar o humano e, portanto, descentrar o Antropos. Dito de outro modo, são trabalhos que “exigem uma redefinição radical da relação entre os seres humanos e a natureza” (Emmett & Nye, 2017, p. 140). Desenvolvidos através de uma pluralidade de métodos, esses enfoques ressoam com o que David Naguib Pellow definiu como a “pergunta, pouco examinada, sobre a prescindibilidade das populações humanas e não humanas”, que enfrentam ameaças culturais e socioecológicas por parte “dos estados, indústrias e outras forças econômico-políticas” (2018, p. 14).

À luz desse amplo contexto, o presente artigo revisa duas importantes contribuições aos debates que atualmente estão definindo a direção dos estudos culturais da América Latina e Caribe, ante ao crescente número de trabalhos focados no campo das humanidades ambientais. Esses são os livros Things with a History: Transcultural Materialism and the Literatures of Extraction in Contemporary Latin America, de Héctor Hoyos, e Allegories of the Anthropocene, de Elizabeth DeLoughrey, ambos publicados em 2019. Ainda que o alcance desses trabalhos varie em termos das geografias regionais e/ou nacionais que abarcam, bem como dos autores e artistas que analisam, ambos pretendem questionar o binômio natureza/cultura — junto a outras dicotomias modernas — desde posições e ângulos divergentes (talvez, inclusive, opostos). Enquanto Hoyos propõe uma desalegorização (isto é, uma “literalização”) de várias obras importantes dentro do canon latino-americano, DeLoughrey nos convida a reconsiderar a alegoria como uma forma de simbolizar a “disjunção percebida entre os humanos e o planeta, entre a nossa ‘espécie’ e uma ‘natureza’ que é dinâmica e externa” (2019, p. 4).

Coisas com uma história

O livro de Hoyos aborda a linguagem lidando com transformações materiais. Assim, tenta demonstrar que a ficção latino-americana contemporânea não apenas reflete essa transformação material, mas também “enriquece nossa compreensão dela e desafia o status quo que a sustenta” (2019, p. 2). Por contemporânea, Hoyos entende a América Latina pós-1989, um período que tem testemunhado uma transformação “sísmica” em nossa relação com os objetos (2019, p. 1). A América Latina é, sugere Hoyos, um lugar privilegiado para teorizar sobre o nosso tempo “instável”, devido à sua capacidade literária e cultural para questionar o processo de globalização. Daí que o livro desenvolva uma noção de “materialismo transcultural”, um fenômeno que não é exclusivo da América Latina, mas que foi gestado nas intersecções de sua própria história intelectual e literária. Como ocorre com outros materialismos, o materialismo transcultural atenta ao corpo e se centra não apenas no tangível, mas também, em certa medida, no pragmatismo, pois, segundo afirma, “todos os materialismos se opõem ao idealismo” (2019, p. 3).

A respeito da definição de transcultural, o livro sustenta que se trata de uma “práxis intelectual — ‘mais que uma’ doutrina filosófica” — cuja justificação existencial é a crítica ao extrativismo. Este último é aqui entendido como a exploração tanto da natureza quanto do trabalho (Hoyos, 2019, p. 3). Dadas as características do extrativismo, principalmente na América Latina, enquanto procedimento histórico e estrutural entre o Norte Global e o Sul Global, esse mecanismo extrativo e explorador se conecta com os “desequilíbrios comerciais que impactam o entorno natural e o uso desproporcional de recursos naturais por parte de certos países durante largos períodos de tempo” (French & Heffes 2021, p. 336). Esse uso que Hoyos faz do termo se estende através de espaços e esferas (naturais e urbanos; econômicos e políticos; literários e culturais), e dialoga com o trabalho de Macarena Gómez-Barris ao conceber o extrativismo como um “roubo” dos territórios indígenas e afrodescendentes (2017, p. XVIII). Mais ainda, Things with a History examina um corpus de obras literárias que operam contra o extrativismo, ao articular a história natural e humana de uma maneira inovadora e estimulante. Esse trabalho crítico sustenta que as obras analisadas ao longo do livro intervêm, principalmente, na linguagem e na narrativa, não apenas como um modo de compor os efeitos do extrativismo, mas, mais importante — e talvez de maneira mais engenhosa —, como um “lugar para a ação político-ecológica” (Hoyos, 2019, p. 3). O prefixo “trans” se usa para indicar que as histórias examinadas no estudo frequentemente envolvem comunidades em conflito; também designa um aparato conceitual que se estende para além da cultura, compreendendo seu suposto “outro”: notadamente a Natureza (Hoyos, 2019, 3). Embora tanto a cultura quanto a Natureza se encontrem compreendidas na noção do transcultural como um todo — no lugar do binário antinômico herdado do pensamento ocidental —, aqui a cultura também é considerada como um assunto “concreto”; isto é, como matéria propriamente dita. Para demonstrar este raciocínio, Hoyos recorre a um exemplo que evoca a associação entre cultura e sua raiz etimológica palpável. Em latim, cultura significa “cultivo” (substantivo); o verbo deriva do obsoleto francês culturer ou do Latim medieval culturare, ambos baseados no latim colere, “cuidar, cultivar” (Oxford Dictionary).2 Não é coincidência, então, que Hoyos recorra à comida e à nutrição para sustentar seu argumento sobre o papel que joga a linguagem literária na regeneração do já desgastado vínculo entre humanos e não-humanos. E se essa operação tem ramificações políticas em uma forma “tradicional”, o alcance da política se estende agora ao não-humano. Por isso mesmo, Things With a History busca assinalar a pertinência do novo materialismo no pensamento latino-americano, através de uma “triangulação” que, ao modo de terceira perna, incorpora a literatura universal. O que é possível demonstrar porque, como é previsível, “um rico corpus e seus referentes tangíveis sustentam-no” (Hoyos, 2019,p.6; a ênfase é minha). O tangível da linguagem se encontra no primeiro plano deste estudo: a linguagem é material, nos lembra Hoyos, inspirando-se em Walter Benjamin, Hayden White, Fernando Ortiz e Antonio José Ponte, entre outros. Em Contrapunteo Cubano del Tabaco y el Azúcar (1940) — o seminal trabalho de Ortiz — o materialismo transcultural se manifesta seguindo essa tese através de uma modalidade narrativa onde confluem tanto o contra-fetichismo “da mercadoria” quanto os “relatos de longa duração (longue durée) sobre a agência dos objetos” (Hoyos, 2019, p.13). O ponto central na revisão de Contrapunteo Cubano del Tabaco y el Azúcar é afirmar que ambos os cultivos não podem simplesmente “reduzir-se a alegorias sobre o socialismo ou o capitalismo, ou a representar duas culturas cuja união desessencializada Ortiz supostamente se dedicou a celebrar” (Hoyos, 2019, p. 59). À diferença das interpretações prévias da obra de Ortiz, Hoyos trabalha a partir da ideia da desalegorização, especificamente uma “literalização” do livro, o qual é, segundo sua tese, um importante estudo sobre plantas “que também são bens” (Hoyos, 2019, p. 10).

Ao examinar esses organismos em seu devir através dos “limites disciplinares e epistemológicos”, Ortiz se incorpora à categoria de “precursor” do novo materialismo3 (Hoyos, 2019, p.10). Porém, o mais importante para essa discussão é a compreensão de que as figuras retóricas — isto é, a metáfora, a metonímia e a alegoria — e os recursos literários em geral operam como um “suplemento”, pois tanto a “dedução quanto a inferência” daquilo que nos custa enfrentar nos obrigará a reavaliar por completo o lugar que ocupamos dentro do mundo material. Em diálogo com os trabalhos de Janne Bennett e Bruno Latour sobre ciência, política e matéria vibrante — para citar os dois principais interlocutores — o livro explora uma ampla gama de narrativas e autores contemporâneos, tais como José Lezama Lima (Cuba), Ariel Magnus e César Aira (Argentina), Blanca Wiethüchter (Bolívia), Roberto Bolaño e Alejandro Zambra (Chile) e Karl Ove Knausgard (Noruega). Este último é evocado por Hoyos para demonstrar que uma crítica do neoextrativismo se origina na América Latina, mas tem implicações e ramificações na literatura mundial. Ao abordar as figurações do giro material contemporâneo na produção cultural latino-americana recente, bem como em suas modalidades operativas, através de “reapropriações da matéria prima, do hiperfetichismo, da crítica da ideologia digital, da historiografia literária centrada no objeto e do geologismo”, o livro expõe como estes diferentes fios argumentativos questionam diversos aspectos de um sistema econômico mundial que se estende desde a extração até o consumo.4 Essa reapropriação exibe o fluxo contínuo entre os agentes humanos e não-humanos — incluindo a narrativa — uma montagem que ressoa com a noção de transcorporeidade formulada por Stacy Alaimo (curiosamente ausente nesse estudo), uma possibilidade ética e política que emerge da zona de contato literal entre a corporeidade humana e a natureza mais que humana, na qual o “humano está sempre entrelaçado com o mundo mais que humano”, sublinhando até que ponto a “substância do humano é, em última instância, inseparável do ‘meio ambiente’” (2010, p. 2). Ao qualificar esse processo como “extrativismo estranhado”, Things With a History pretende atrair certas externalidades– tais como as vidas inorgânicas que se encontram enraizadas de forma permanente nas transações (biológicas e econômicas) cotidianas — para a convergência de “uma política literária do inorgânico em escala global” (Hoyos, 2019, p. 36). Talvez a novidade desse estudo seja que, à diferença de Bennett ou Latour, Things Whith a History enfatiza a necessidade do materialismo histórico, ao articular uma polinização cruzada que reformule o materialismo tradicional e, por sua vez, adote os novos materialismos.

Alegorias do Antropoceno

O livro de Hoyos parte da proposta “amoderna” de Latour, a qual sugere que jamais fomos modernos e, à luz deste marco teórico, examina narrativas híbridas que desafiam a separação moderna entre natureza e cultura. Allegories of the Anthropocene, de Elizabeth DeLoughrey, toma um caminho diferente. Aqui, a alegoria foi “revitalizada e reinventada” para expor um conjunto de desconexões aparentes, que confronta aos humanos vis-à-vis o planeta e as espécies, com uma suposta natureza externa (DeLoughrey, 2019, p. 4). Trata-se, aqui, de uma aparente ruptura que opera tanto em nível espacial quanto temporal, dado que afrontar o Antropoceno significa refletir sobre o “tempo geológico profundo do planeta”, bem como “o futuro do ser humano como espécie” (DeLoughrey, 2019, p.4). Seguindo esse raciocínio, a alegoria revela-se adequada, mais que como tropo retórico, como a “animação de figuras universalizantes, tais como o planeta, as espécies, a natureza e o ser humano no interior da narrativa e, portanto, no espaço e no tempo (DeLoughrey, 2019, p. 5). Isto explicaria, segundo DeLoughrey, o recente surgimento da representação alegórica na literatura, no cinema e nas artes visuais, pois a alegoria “encena outros mundos com o fim de traçar paralelismos e disjunções entre o presente e um futuro muitas vezes distópico”5 (2019, p. 5).

O ressurgimento das alegorias não é fortuito, pois são, acima de outras formas retóricas, dispositivos literários eficazes para encarnar tanto as “relações históricas quanto escalares” em um momento de crise planetária (2019, p. 5). Isto, contudo, não deveria surpreender, pois, como sugere DeLoughrey, a alegoria é conhecida por sua “incrustação na história (tempo), sua construção de um sistema-mundo (espaço) e suas práticas de significação, através das quais o particular representa o geral e, por sua vez, o geral é o local para o global” (2019, p. 5). Em lugar de “jamais fomos modernos”, que Hoyos referenda, seguindo o célebre dictum de Latour, a posição pós-colonial de DeLoughrey coincide, em seu trabalho, com o pronunciamento de Joni Adamson e outros acadêmicos focados nos estudos indígenas, os quais sustentam que, de fato, jamais fomos Antropos. Esta afirmação remonta, sem dúvida, à discussão acerca do nosso papel na premente e desordenada situação presente e, ainda mais importante, sobre quais são os termos mais adequados para gerar, como assinala Stephanie Malin na sequência de Kyle Powys White, advertências claras de que “o colonialismo, seguido do capitalismo e da industrialização, aos quais, por sua vez, segue o neoliberalismo; advertências de que todas essas são variações do colonialismo de povoamento (settler colonialism) e da expulsão forçada dos povos indígenas africanos e nativos de suas terras ancestrais e de suas formas de vida, pavimentando o caminho para a distopia definitiva, à qual alguns grupos têm sido confrontados de diferentes maneiras durante séculos” (Malin, 2021, p. 6). É inegável que a noção de Antropoceno não consegue transmitir de maneira adequada os problemas ambientais contemporâneos da nossa realidade e que a responsabilidade por isto não pode ser grosseiramente imputada à humanidade; ao contrário, esta é a forma através da qual certo “sistema humanamente criado (como a economia capitalista, as indústrias e tecnologias de combustíveis fósseis, tais como a desenfreada produção de plásticos e químicos) tomaram vida própria” (Malin, 2021, p. 15). E, embora o inacabado debate sobre o termo que capta de forma mais acertada a distribuição desigual das responsabilidades — a partir do Antropoceno (Crutzen & Stoermer, 2000), até o Capitaloceno (Moore, 2016), Plantacionceno (Harawey, 2015), Econoceno (Norgaard, 2013), Tecnosceno (Hornborg, 2015), Antrobsceno (Parikka, 2015; Ernstson & Swyngedouw, 2019), Mantroposceno (Raworth, 2014; Di Chiro, 2017) e o Desperdícioceno (Wasteocene) (Armiero & De Angelis, 2017) — consista em uma preocupação legítima, é difícil avaliar até que ponto proporciona um método efetivo para prevenir um final potencialmente catastrófico. Assim, tem razão DeLoughrey ao insistir que a condição “sinedoquial” da mudança climática “antropogênica” se detecta naquelas “expressões que parecem ignorar que a crise é o resultado das atividades de uma poderosa minoria” (2019, p. 15).

Allegories aborda as culturas literárias e visuais do Caribe e das ilhas do Pacífico através de “cinco constelações” que “organizam ou encapsulam a mudança climática global”. Em poucas palavras, estas são: a plantation (agricultura), radiation (militarismo), waste (globalização), ocean (risco do aumento do nível dos mares), e island (mundo) (2019, p. 8). Partindo da noção de alegoria proposta por Walter Benjamin, DeLoughrey sugere que os trabalhos sobre o Antropoceno também recorrem à noção de “declínio” enquanto representado por ruínas. Tanto a teorização de Benjamin quanto o discurso do Antropoceno ressaltam uma “disjunção entre os humanos (história) e o planeta (natureza)”, das quais se espera, em seu conjunto, que diminuam e, portanto, ambas ofereçam especulações alegóricas sobre o futuro (2019, p. 6). Reconhecer essa disjunção aparentemente nova significa, para DeLoughrey, identificar a crise da modernidade ecológica, na qual a alegoria aparece como um de seus “registros narrativos primários” (2019, p. 6). A alegoria, enquanto uma “parte-para-o-todo”, serve como um esquema cuja dinâmica repousa sobre a antítese entre o global e o local, a Terra e a ilha, a totalidade e o fragmento. Daí que o tropo da ilha se mostre eficaz enquanto uma “poderosa constelação para pensar alegoricamente” (DeLoughrey, 2019, p. 6). Nessas dinâmicas, isto é, nos interstícios desatados pelos contrastes entre o todo e a parte, é onde emergem as alegorias do Antropoceno. De fato, podemos captar os contornos destas fendas examinando a história dos “sistemas climáticos de pequena escala, como as ilhas” em seus “textos e contextos pós-coloniais” contemporâneos, como uma forma de enlaçar o intangível discurso do Antropoceno com histórias e lugares específicos (DeLoughrey, 2019, p. 7). Mais ainda, de acordo com DeLoughrey, “narrativizar a relação entre o ser humano e a natureza mais-que-humana” se encontra no centro mesmo das preocupações em levar o “discurso teórico do Norte Global para um diálogo com as comunidades que enfrentam os efeitos da mudança climática atual e seus sobreviventes históricos” (2019, p. 6). Organizado em torno destes momentos de ruptura, Allegories recorre à noção de constelações de Benjamin, conforme estas marcam pontos de inflexão planetários que informam, simultaneamente, a estrutura do livro. Um aspecto distintivo de Allegories é sua capacidade metodológica para explorar diferentes quadros de alegoreses, uma figura que permite um pensamento fluido sobre os regimes de violência e que questiona, por sua vez, os discursos coloniais situados dentro dos limites das narrativas teleológicas que têm definido tanto o espaço quanto o tempo modernos — alegorias, então, como veículo para interrogar de forma dialética, através de um método que “põe em primeiro plano a ruptura enquanto ferramenta de análise para explorar uma constelação de diferentes formas alegóricas, que glosam a disjunção percebida entre o humano e o não humano, a partir de nosso lugar terrestre” (DeLoughrey, 2019, p. 9). Mas também alegorias enquanto modo de estruturar o livro que se baseia no uso de técnicas alegóricas de disjunção dentro de e entre capítulos, desafiando o “telos ou desenvolvimento narrativo” (DeLoughrey, 2019, p. 9).

Deslocamento epistemológico, persistência e recorrência

Da mesma forma que Things with a History, Allegories se foca no Sul Global. Por meio de diferentes metodologias e perspectivas, o primeiro convida a desalegorizar e o segundo a realegorizar. Enquanto Hoyos se foca por completo em um “relato mais amplo dos fatos da literatura na escala global” (2019, p. 109), DeLoughrey põe seu foco em “lugares encarnados e memórias comunitárias” (2019, p. 176). A discussão sobre o Antropoceno está deliberadamente ausente na obra de Hoyos; DeLoughrey, ao contrário, a converte em seu principal objeto de estudo. Sem dúvida, existe em Allegories uma clara distinção entre os discursos do Antropoceno e aqueles da mudança climática global, sugerindo que ambos podem ser mutuamente ininteligíveis. Em correlação com a disjunção entre o discurso humanos/história e planeta/natureza, o primeiro aborda “a salinização de cultivos essenciais e de administração de água, a migração, a cultura, a terra, os ancestrais e as crianças” enquanto o segundo se ocupa “de espécies, história, temporalidade, modernidade e Ocidente”. Em um sentido amplo, enquanto o discurso sobre a mudança climática se preocupa pelo lugar e pela comunidade, o discurso do Antropoceno atende às modalidades de tempo e espaço abstratos (DeLoughrey, 2019, p.176). Por isso, DeLoughrey apela, por princípio e ecoando o trabalho de Dipesh Chakrabarty, a provincianizar o “discurso universalizador da Europa” (2019, p.2). Things With a History, por sua vez, centra-se menos na disjunção e ruptura e mais na continuidade. O livro retoma Contrapunteo Cubano del Tabaco y el Azúcar para postular que “deveria ser lido como se estivesse na presença das plantas de cana de açúcar e de tabaco” (Hoyos, 2019, p. 10). A noção de “transculturação” de Ortiz é aqui reexaminada não apenas como uma “praxis narrativa” — mais que uma “noção abstrata” — mas, ainda mais importante, como base material para a cultura: em outras palavras, o açúcar e o tabaco “são parte da natureza do mesmo modo que são parte da economia, sendo possível seguir as formas em que, ao que parece, entram e saem da cultura, esse reino supostamente separado (Hoyos, 2019, p. 32). De outra forma, também é possível reconhecer, como faz Ortiz, o continuum e recorrer à narrativa para identificar seu “devir” ao longo dos perímetros que dividem disciplinas e epistemologias. Este contínuo remonta à afirmação, em Things With a History, de que o livro é fundamentalmente sobre a historiografia literária latino-americana e mundial (2019, p. 32). É interessante notar que, enquanto Hoyos embarca numa viagem que parte das partículas mais íntimas da matéria (através da teoria quântica), objetivando traçar continuidades entre nações e continentes, DeLoughrey, ao contrário, em Allegories, parte da noção abstrata de Antropoceno (como sugere o título) para rastrear alegorias locais como a alegoria do solo, onde Wilson Harris, entre outros escritores caribenhos, aprofunda-se no local em busca de um modelo de forma literária que reflita com mais precisão a complexidade das raízes caribenhas (2019, p. 45). Ainda que de maneira díspar, é claro que os dois estudos estabelecem um tipo de conversação. Talvez o mais urgente e premente, para finalizar este artigo, seja a seguinte pergunta: até que ponto estas perspectivas configuram o surgimento de novos conceitos ao mesmo tempo que oferecem um quadro teórico para os estudos latino-americanos, caribenhos, e/ou latinx e, mais genericamente, as humanidades ambientais? Eu gostaria de propor a tese de que estes estudos deslocam o campo em diferentes direções ao estabelecer conversas e diálogos interdisciplinares que, ao mesmo tempo, se mantêm fiéis aos seus campos de origem. Things with a History torce o sentido do que até agora tem feito alguns investigadores latino-americanos que trabalham a literatura mundial, tais como Mariano Siskind, Gesini Müller, Ignacio Sánchez Prado, Jorge Locane e Benjamin Loy. Ainda assim, amplia o alcance das humanidades ambientais dentro do já extenso campo dos estudos latino-americanos. O livro propõe um deslocamento epistemológico em nossa compreensão da narrativa, da narração e das palavras; uma mudança que nos permite revisar, como faz Hoyos, obras culturais latino-americanas, tanto canônicas quanto não canônicas. Assim, alinha-se com outras publicações recentes que propõem novas aproximações à noção de subjetividade, como propõem Bollington & Merchant (2020) e French & Heffes (2021); e, ademais, contribui com o nascente campo do novo materialismo nos estudos culturais latino-americanos. Em suma, um aspecto destacado de Things with a History é sua capacidade para articular uma nova teoria materialista na literatura, a qual cruza e conecta diversos campos, como o ecomaterialismo e as humanidades ambientais, redefinindo-os neste processo.

Por sua vez, Allegories of the Anthropocene amplia o campo dos estudos pós-coloniais sobre o Antropoceno, os quais já haviam sido impulsionados por DeLoughrey em trabalhos anteriores como Caribbenan Literature and Environment (editado com Gilson e Handley, 2005), Postcolonial Ecologies: Literatures and Environment (editado com Handley, 2011), Global Ecologies and Environmental Humanities: Post-Colonial Approaches (editado com Carrigan e Didur, 2015), e seu trabalho monográfico Routes and Roots: Navigating Caribbean and Pacific Island Literatures (2007). Em um artigo recente, escrito junto com Tatiana Flores (2020), DeLoughrey propõe o conceito de “tidelética”, termo tomado do poeta Kamau Brathwaite, como um método que envolve uma ampla gama de experiências e representações do corpo submerso, ao considerar que o oceano pode tanto ser compreendido de forma planetária quanto local. Elaborando a partir de uma produção própria dos estudos acadêmicos pós-coloniais e caribenhos, este artigo se liga a trabalhos dentro do campo das humanidades ambientais, da ecocrítica material e das “ecologias líquidas”, tal como apresentados por Blackmore and Gómez (2020).

A modo de conclusão

Uma pergunta crucial que atravessa este escrito é se os trabalhos de investigação aqui revisados podem renovar epistemologias já estabelecidas, muitas vezes não atualizadas. Os livros examinados aqui abordam o conhecimento como diferentes materializações. No livro de DeLoughrey, por exemplo, o conhecimento é uma produção que se expressa através de um “enraizamento fenomenológico do humano no interior de uma paisagem ativa, de um diálogo com a natureza não humana (e, portanto, com o espaço-tempo)” (2019, p. 46). Hoyos, por outro lado, retoma a advertência de Latour sobre “a incapacidade de pensar juntos o humano e o não-humano, ou de articular preocupações globais e locais”, e sugere que, em face da crise ecológica contemporânea, “precisamos reparar a fratura entre o ‘saber das coisas’ e as ‘políticas de poder e humanas’” (23). Sem dúvida, nenhum dos autores aborda diretamente a questão a respeito do impacto que o trabalho investigativo pode ter para além das instituições acadêmicas/culturais. Em outras palavras, se estas últimas operam como centros de produção de conhecimento e, muito frequentemente, carecem de compromissos reais com a esfera pública, então como podemos nos deslocar para além do âmbito da “cultura” e redistribuir as hierarquias de poder de tal modo que deixemos de reproduzir aqueles mecanismos estruturais que se situam no centro mesmo da disputa?

Em um breve artigo sobre o anonimato, publicado no Posthuman Glossary (editado por Rosi Braidotti e Maria Hlavajova), Matthew Fuller define esta condição como “primordial”, visto que constitui um “extrato submerso da condição do conhecimento” (2018, p. 42). Mesmo que seja um diminuto grão dentro da matéria interna de uma rocha ou as minúsculas “mas mensuráveis quantidades de radionuclídeos artificiais”, como descrito por Jan Zalasiewicz, Mark Williams, Will Steffen e Paul Crutzen, estas partículas anônimas podem ter um efeito em nossas vidas, corpos e entornos (DeLoughrey, 2019, p. 69). Estes últimos, por exemplo, são o subproduto do “impacto global e atmosférico dos testes de armas nucleares”, cujos efeitos têm sido medidos geológica, biológica e socialmente como uma pequena, mas frequente e devastadora mudança “em todos os corpos e espaços do planeta, dos polos até o oceano mais profundo”, analisada por DeLoughrey em sua relação direta com o militarismo, as armas nucleares e o surgimento da ecologia como disciplina acadêmica (2019, p. 69). O anonimato também poderia informar “momentos de articulação em que as propriedades materiais imanentes são traçadas ou codificadas através da linguagem”, como sugere Hoyos (2019, p.223). O anonimato é importante porque encapsula os extratos submersos de maneira anônima, a qual define uma condição de conhecimento indissociável de seu alcance potencial. Para Fuller, o anonimato é também o “espaço em que tem lugar grande parte da vida e onde, historicamente falando, ela se revelou” e, portanto, constitui o espaço de evolução e de “surgimento da vida em meio às interações de milhões de entidades sem nome” (2018, p. 42). Embora possa parecer paradoxal, dentro dos marcos da espacialidade e da temporalidade, o anonimato pode resumir conceitualmente um contradiscurso ao dos hiperobjetos de Tim Morton, uma vez que torna visível a invisibilidade das “entidades sem nome”. Isto é precisamente o que logram estes dois estudos. Eles entendem o ininteligível. Igualmente, ambos atingem a montagem naturezacultura, entendendo este último conceito como uma síntese de natureza e cultura, que reconhece sua “inseparabilidade nas relações ecológicas que se formam tanto biofísica quanto socialmente” (Haraway, 2003, apud Malone & Ovenden, 2016). Partindo da preocupação acadêmica pelos dualismos profundamente arraigados nas tradições intelectuais das ciências e das humanidades (por exemplo, o de humano/animal; natureza/cultura), nós ainda precisamos alcançar uma abordagem avançada, que busque reestruturar o conhecimento e uma “profunda mudança na organização dos conhecimentos e das práticas de conhecimento”, como sugere Emmett & Naye (2017). Além disso, é necessário um deslocamento epistemológico que desestabilize os pontos de referência e os fundamentos institucionais, bem como transforme muitas das proposições ainda arraigadas na forma em que se configura o trabalho acadêmico: um deslocamento no qual floresça um “nós” — mais que um “Eu” (com maiúscula), e onde o anonimato seja equivalente aos esforços e iniciativas comunitárias que desestabilizam as noções de individualidade, masculinidade e patriarcado. Então, talvez, poderá haver uma verdadeira mudança.