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Facas esfoladoras, correram, escamaram, retalharam1

São 1.300 peças de cerâmica, moldadas em formas cilíndricas com pontas, ou formas achatadas com chanfros, em tons terrosos e azul-acinzentados, ordenadas no chão, agrupadas em jogos por semelhanças na forma e na cor. O olhar baixa para observar, enquanto o corpo se move para favorecer diversos pontos de vista. Impossível não prolongar a visão em tamanha diversidade de formas, cores e gestos, justapostas e oscilando entre a ordem e o caos. Muito difícil não maximizar a perceção no trabalho, que é oferecido como visão do semelhante, mas não como reconhecimento.

O trabalho Facas foi executado durante uma residência de três meses no European Ceramic Workcentre, na Holanda, onde Carmela Gross experimentou com muitos modos de manipulação da matéria disponíveis nas oficinas, tais como as extrusoras, os cilindros mecânicos, os rolos manuais, diversificando também as cores das massas, a quantidade de chamote, a temperatura da queima, a redução do oxigênio. Uma exploração técnica de um meio artístico — habitualmente associado às artes aplicadas.

As artes aplicadas são trazidas à conversa para sugerir uma reconciliação entre a arte e o trabalho industrial. A sociedade industrial moderna produziu uma ruptura histórica em relação à função da arte: permitiu que se pensasse uma oposição entre a produção de objetos estéticos e a de objetos úteis, ou seja, objetos que possuem um valor de uso.

Esta oposição, ocorre no momento em que a arte e a técnica são constituídas em dois domínios separados da prática social.

As experimentações de Carmela também se apresentam no limiar entre objetos estéticos e objetos úteis, suas formas oscilam entre artefactos da “pedra lascada” e inúmeros testes dos recursos materiais e mecânicos de um ateliê de cerâmica. Testes, porque a intenção não é o aprimoramento técnico, mas um meio de experimentar o devir do objeto, a repetição de um mesmo gesto até o esgotamento, quando então a artista parte para outro procedimento.

Para acrescentar mais uma camada à dialética entre “objetos estéticos” e “objetos de uso”, o título da obra, Facas, intensifica essa contradição: ao mesmo tempo que implica um valor de uso aos artefactos, contradiz este estado pelo arranjo poético. No museu — “museu, galeria, todo e qualquer lugar cultural artístico definido”2 — o objeto se transfigura, é extraído de contexto, da prática social, assume o papel de representante de uma cultura. Não há como subtrair, dessa pulsante instalação, peças para fatiar, cortar, picar e filetar. No entanto, essas ações permanecem latentes, pairam no ar, evocam fortes impressões e associações.

Tais impressões e associações estão na origem do trabalho, no “fundo de olho” da artista, que encontra em trechos de uma obra literária, Ulisses de James Joyce, as facas que lhe interessam. Ulisses é uma paródia de A Odisseia, de Homero, mas nos termos modernos desse gênero literário, no qual predomina a autorreflexividade, uma inversão irônica da “imitação ridicularizante mencionadas nas definições padrões dos dicionários”.3

A paródia moderna, além de reativar o passado em um novo contexto irônico, exige do leitor uma atualização desse passado que, em sua inversão, torna-se uma repetição prolongada com diferença crítica, uma confrontação que ressalta a diferença em relação ao original — frente ao qual se estabelece um corte preciso. Carmela reitera a paródia joyciana, incorporando a crítica na própria estrutura do trabalho, além de criar um curto-circuito entre objetos estético e de uso.

A paródia como uma forma de imitação caracterizada pela inversão irônica está presente na modelagem de Facas, que se assemelham a artefactos “primitivos”, mas que são recodificados, criando diferenças na similitude. A integração da forma em um novo contexto altera o significado e também o valor. O vaivém entre valor de uso e valor de troca reverbera, desde a apropriação pela arte moderna dos aspectos estéticos dos objetos de uso dos povos “primitivos”, passando pelos sucessivos saques desses mesmos objetos para conversão em bens patrimoniais, no sentido benjaminiano,4 até a prolongada barbárie empreendida nos corpos colonizados e objetificados, tanto para o uso quanto para a troca.

Na multiplicidade de códigos, as facas são repetidas 1.300 vezes — à exaustão. Facas que arregaçam as bordas da perceção, que pulsam entre o concreto e o abstrato, numa Odisseia infindável do “mundo moderno”. A navalha na carne, a brutalidade, a barbárie, numa repetição absurda, diversificada na forma, mas repetida no gesto. Uma violência que nunca se esgota, sempre se reinventa. Para Carmela, é na repetição e diferença que paira a transgressão do ritmo, a relação negativa com o objeto. É a sua maneira de dar a ver a obscenidade da violência perpétua