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O Junho de 2013 e a luta pelo direito à cidade em São Paulo

Mariana Guardani

Ao contrário de muitos, é a primeira vez que escrevo especificamente sobre Junho de 2013, apesar de ter acompanhado de perto, como vereador e relator do Plano Diretor, as manifestações de rua e seus efeitos sobre os governos do PT, especialmente na gestão de Fernando Haddad na prefeitura de São Paulo, epicentro inicial dos protestos. Embora tenha escrito mais de trezentos artigos nesses dez anos sobre diferentes temas de política, urbanismo, cultura e meio ambiente, que muitas vezes citam 2013 como um importante ponto de inflexão da política brasileira e em aspectos importantes do urbanismo em São Paulo, nunca escrevi uma análise sobre esse marco da política brasileira recente.

Esse artigo é, portanto, bastante tardio e parece difícil falar algo original sobre as rebeliões de Junho de 2013, depois das centenas de reflexões, análises e estudos, feitas por autores de diferentes campos políticos, alguns resultantes de extensas e aprofundadas pesquisas, como as realizadas, entre outros, por Ângela Alonso (2023) e Roberto Andrés (2023).

A contribuição nova que posso dar à reflexão sobre 2013 relaciona-se com a experiência concreta de quem acompanhou contexto, as manifestações e sobretudo seus desdobramentos sobre a gestão urbana em São Paulo, particularmente sobre sua influência sobre as opções tomadas pelo governo Haddad em relação a temas sobre urbanismo, mobilidade urbana, espaço público e cultura, e na mudança do relacionamento com as grandes empreiteiras que, historicamente, tiveram papel central na definição das obras públicas em todo o país. E que, infelizmente, também exerceram influência sobre os governos petistas, até a derrocada provocada pela Lava Jato.

Embora essa abordagem possa parecer localizada e excessivamente focada em São Paulo, ressalto que a cidade foi o ponto de partida das manifestações, pois o próprio Movimento do Passe Livre (MPL) entendia que “uma intensa mobilização em São Paulo tenderia a desencadear manifestações em todo o país” (Monteiro, 2023), foi o locus das maiores manifestações e palco onde ficou mais visível a polarização entre as forças dos diferentes campos políticos, sobretudo após o 17 de junho, quando as ruas passaram a ser disputadas por campos políticos opostos, com uma presença majoritária da oposição à direita dos governos do PT.

Mesmo focado nesse recorte regional, que não é de maneira nenhuma generalizável, pois Junho foi diverso em cada cidade, não deixo de apresentar e comentar, na primeira parte desse artigo, algumas reflexões que estão sendo feitas sobre Junho, pois a contribuição que farei insere-se nesse debate, trazendo um outro olhar sobre os desdobramentos de 2013.

1. Os vários olhares sobre 2013

O avanço das forças antipetistas pós-2013 fez com que muitos, particularmente os analistas que compartilham a visão oficiosa do PT, passassem a considerar Junho como um evento planejado que deflagrou um processo que levou ao avanço da extrema direita no país. Considerado por alguns como uma “armação conspiratória da direita neoliberal e do imperialismo” (Mendes, 2023), nessa visão, a rebelião visava desgastar e, se possível derrubar o governo de “esquerda” no Brasil, como ocorreu em outras revoluções coloridas. Articulado com o lawfare, Junho teria sido o ponto de partida das grandes manifestações contra o governo Dilma (2014–6), do golpe parlamentar de 2016, da prisão de Lula, da ascensão da extrema direita como ator político relevante e, finalmente, da eleição de Bolsonaro (2018).

Não há dúvida de que Junho de 2013 mostrou às organizações de direita, que buscavam desde o primeiro governo Lula incidir sobre a política brasileira, que existia um clima político favorável para ela crescer nas ruas e serviu como ensaio para sua militância extremista, o que contribuiu para gerar, a partir do clima eleitoral de 2014, a sequência desses conhecidos desdobramentos.

No entanto, as análises que maximizam essa perspectiva conspiratória acabam por minimizar as múltiplas causas de Junho de 2013, os conflitos programáticos e o progressivo desgaste e divisão do campo da centro esquerda, que cresceram desde os anos de Lula e se acentuam sob Dilma, as mobilizações que ocorreram no período entre Junho de 2013 e novembro de 2014, grande parte das quais ainda tiveram predomínio do campo progressista e, ainda, outros desdobramentos de Junho de 2013, como os que iremos abordar nesse artigo, relacionadas a gestão urbana de São Paulo.

É óbvio que Junho tem seu lugar na história do avanço da extrema direita no Brasil, que levou à desastrosa eleição de Bolsonaro, mas seria exagero vincular diretamente, como causa e efeitos, esses dois momentos marcantes da vida política brasileira da 2ª década do século XXI.

A história pós 2013 poderia ter tomado outro rumo se o PT e a gestão Dilma tivessem compreendido o que estava ocorrendo, promovido alterações programáticas relevantes, revisto a articulação política que sustentava o governo e criasse outras formas de participação para além dos conselhos e conferências que já davam sinal de esgotamento. Não seria fácil, mas era o que a conjuntura exigia.

Junho de 2013 como resultado de insatisfações difusas com os governos do PT

Sem pretender, nesse breve artigo, fazer uma análise integral daquele turbilhão popular, está claro que, como mostrou a socióloga Ângela Alonso (2023), Junho de 2013 condensou um amplo conjunto de insatisfações, à esquerda e à direita, contra os governos nacionais do PT. Nesse sentido, Junho seria um ponto de chegada de um processo que já vinha em curso e que revelava as limitações e contradições do presidencialismo de coalisão liderado pelo PT.

As gestões petistas, buscando apoio parlamentar e conciliação de um amplo espectro social e político (dos trabalhadores ao capital financeiro, da esquerda ao Centrão), conseguiu gerar contra si uma oposição de diferentes campos, entre os quais os críticos da cultura e do sistema político brasileiro, que a autora sintetizou em três grupos: neossocialistas, autonomistas e patriotas.

Com dados e números, Alonso revela que esse descontentamento (presente até mesmo em segmentos sociais beneficiados pelas políticas de inclusão social do governo) já estava consolidado em 2013, após ter sido gestado dos governos Lula e entregue a Dilma, junto com as altas taxas de aprovação, como uma bomba de efeito retardado. Esse sentimento de desconforto, fermentado nos anos anteriores, encontrou em junho de 2013 uma conjuntura favorável para sua explosão.

Os conflitos em torno de três temas — redistributivo (que além de econômico, envolve as políticas urbanas, como transporte e moradia); moral (privada, vinculada aos costumes, e pública, à corrupção) e violência legítima — polarizavam a sociedade no período e o governo, na tentativa de agradar a todos, acabava por desagradar muitos.

Mergulhado em contradições, o governo ao mesmo tempo em que tolerava a corrupção, fortalecia as instituições de controle e a legislação de combate aos crimes de colarinho branco; propunha um avançado plano nacional de direitos humanos, mas não conseguia implementá-lo em sua totalidade, por oposição de integrante da própria base governamental; ampliava as vagas e o acesso aos pobres no ensino superior sem garantir empregos e salários compatíveis aos formados; propunha colocar os pobres no orçamento, mas financiava a construção de megaobras superfaturadas e não prioritárias, como os estádios para a Copa e alguns dos projetos do PAC.

Essas contradições geraram um descontentamento difuso à esquerda e à direita do governo, que se expressou nas ruas de Junho, como uma rebelião contra o sistema político. O PT, que estava há dez anos no governo federal, e, secundariamente, o PSDB, que governava vários estados importantes, tornaram-se os alvos principais dessa rebelião antissistema e suas principais vítimas.

A questão urbana no centro do questionamento

O urbanista Roberto Andrés (2023) traz outros componentes que ajudam a montar, sem equacionar, esse quebra-cabeça. Em A razão dos centavos, argumenta que a revolta de 2013 ocorreu, entre outras razões pela colisão de tendências conflitantes, que extravaram as disputas entre capital e trabalho e podem ser melhor compreendidas na chave da disputa entre formas de vida e práticas que moldam o cotidiano e que se estruturam pela organização territorial. Entre as quais a questão da mobilidade nas grandes cidades.

Nessa perspectiva, dá destaque para as lutas urbanas e, para tanto, mostra como o modelo de desenvolvimento das cidades brasileiras do século XX — baseado na prioridade para o automóvel, na segregação sócio-territorial, no padrão periférico de crescimento urbano, na corrupção em obras públicas e na subordinação dos governos aos interesses empresariais — tem gerado, periodicamente, rebeliões em torno do custo e qualidade do transporte coletivo. Essas revoltas populares, frequentes ao longo de todo o século XX, ocorreram quase sempre de forma espontânea, como uma explosão, provocada por um gatilho, como elevação das tarifas.

Andrés, no entanto, ressalta diferenças relevantes entre a mobilização de 2013 e as rebeliões anteriores. Após repassar várias políticas públicas inclusivas dos governos petistas (“inclusão econômica, educacional, digital e cultural”) que ampliaram o horizonte de uma parcela do segmento social antes excluído, com destaque para os jovens, mostra os limites dessas políticas, que podem ser sintetizadas em “piso alto e teto baixo”.

Ou seja, após promover uma elevação do acesso a bens e serviços, em um patamar acima do anteriormente existente, o governo gerou expectativas mais elevadas, como o direito à mobilidade, apenas acessíveis com a gratuidade do transporte público, que, sem mudanças políticas, econômicas e urbanas estruturais (difíceis de serem feitas em um governo de conciliação), não podiam ser atendidas.

Essa análise explica a reivindicação das ruas pela melhoria da qualidade dos serviços de educação, saúde e transporte coletivo, ao mesmo tempo em que questiona investimentos menos prioritários e a permanência da corrupção em obras públicas. Pela visibilidade que tiveram, os estádios da Copa do Mundo acabaram por sintetizar essa insatisfação e esse desencontro entre as expectativas dessa geração e as ações do governo.

Por outro lado, o autor mostra que os governos Lua e Dilma não conseguiram enfrentar e dar uma resposta consistente para os problemas urbanos, entre as quais a da mobilidade. Entre outras fatores, a inanição do governo federal nas cidades decorria do fato do Ministério das Cidades ter sido entregue ao loteamento político em 2005, para garantir a governabilidade no Congresso durante a crise do mensalão, perdendo a capacidade de formulação e de articular uma política de desenvolvimento urbano.

Por outro lado, os governos do PT foram incapazes de romper com o tradicional esquema de corrupção montado pelas grandes empreiteiras, que continuaram a ter um papel decisivo na definição dos investimentos nas cidades.

Andrés defende a tese de que as pautas de Junho, assim como a posição ideológica dos manifestantes não corroboram a interpretação de que haveria uma linha direta e inevitável entre Junho de 2013, a mobilizações pelo impeachment de Dilma, a partir do final de 2014, e o avanço da direita no Brasil. Em defesa dessa ideia, o autor argumenta que a pauta da corrupção (que foi abraçada pela direita), tinha sido protagonizada pelo PT até 2003 e que, em tese, era uma agenda da esquerda. E que a capacidade de mobilização dos grupos organizados de direita nas manifestações era reduzida, mesmo na 2ª quinzena de junho, quando a mobilização tomou dimensões inéditas.

O pesquisador fez um levantamento de mais de 6183 cartazes portadas pelos manifestantes em inúmeras cidades brasileiras, e sistematizou os temas abordados, mostrando que mesmo a partir de 17/6, dia que marca a inflexão das manifestações, as pautas continuaram a ser progressistas. Argumenta ainda que o uso do verde amarelo, até aquele momento, não era considerado símbolo da direita, pois as cores da bandeira foram utilizados à exaustão em grandes manifestações progressistas, como o movimento das diretas (1984) e dos caras pintadas pelo afastamento de Collor (1992).

Cita, ainda, pesquisa com os participantes da manifestação do dia 20 de Junho, a maior realizada em São Paulo, quando as bandeiras de todos os partidos, sobretudo, os de esquerda foram atacadas, que revelou que 37% dos presentes colocava a questão do transporte publico como a principal razão de estarem ali.

O pesquisador ressalta, entretanto, que junto com o enorme crescimento inimaginável das manifestações chegou uma “multidão de avulsos”, pessoas que os movimentos de esquerda chamavam de “gente esquisita (…) manifestantes de uma cepa diferente. Muitos exibiam o verde e amarelo nas camisetas ou pinturas no rosto.” (Andrés, 2023:265).

Segundo ele, esses “avulsos” não estavam ali por qualquer vínculo ideológico, mas por ter encontrado um espaço para protestar contra alguma coisa. O clima estava propício para demonstrar insatisfação. Embora esses “avulsos”, sem coloração partidária e política definida, tenham acabado por se aproximar, nos anos seguintes, dos “patriotas” ou da “direita”, Andrés argumenta que poderia ter ocorrido o contrário, caso os movimentos (de esquerda) das ruas não tivesse sofrido uma repressão tão pesada do governo federal e das polícias estaduais.

Interpretação é totalmente diversa da de Andrés é a adotada por Mendes (2023): “o fato efetivamente histórico de Junho de 2013, ocorreu no período de 17 a 20 de junho, que difere de tudo o que veio antes” e (…) “tudo o que veio depois é consequência direta ou indireta do que neles teve lugar”. Para ele, a esquerda teve a hegemonia nos protestos até o dia 13, “que foram pequenos ou normais”, enquanto que no dia 17 a direita assumiu o domínio, “restando a uma parcela da esquerda lutar para fazer parte dos protestos da direita”.

A interpretação de Mendes é taxativa. No calor do momento,

é compreensível que alguns tenham nutrido a esperança de que aqueles protestos podiam levar a um Brasil melhor (um governo mais inclusivo, alteração em seus critérios de tomada de decisão, novas formas de atuação dos movimentos populares). Afinal, as revoluções coloridas, apesar de retrogradas, vendem-se como progressistas. (…) Hoje, com seus resultados e evidências disponíveis, fica claro que se manifestações massivas de Junho de 2013 foram fruto de uma ação coordenada da direita brasileira e do imperialismo.

(Mendes, 2013:50)

Sobre a erupção das manifestações, o depoimento de Monteiro (2023), militante do Movimento Passe Livre (MPL), mostra que elas nada tiveram de espontâneas. O movimento, que vinha se estruturando, desde 2005 em todo o país em torno da pauta da mobilidade. Após uma série manifestações em várias cidades brasileiras, conhecidas como as Revoltas do Busão, o movimento estava preparado para uma ação mais incisiva, tendo formulado previamente uma estratégia para impedir o aumento das tarifas, baseada em cinco diretrizes:

  1. A necessidade de uma luta de rua, rejeitando as mesas de negociação que caracterizaram os governos petistas. (…);
  2. Não se intimidar perante a repressão policial, manter-se radical, paralisando as vias da cidade. (…);
  3. A vitória dependeria da expansão dos limites de participação, (…) ultrapassando as capacidades de mobilização do MPL e da própria esquerda. (…);
  4. Uma intensa mobilização em São Paulo para desencadear manifestações em todo o país. (…);
  5. A dispersão das pautas (devia ser evitada pois) era um risco à lutas contra o aumento da tarifa.

(Monteiro, 2023:30)

Como se viu, as diretrizes foram seguidas à risca e foram bem sucedidas (inclusive a ampliação para além de esquerda), com exceção da última (evitar a dispersão das pautas) que gerou o inimaginável crescimento da multidão e, por outro lado, que levou à perda de controle do movimento sobre as manifestações.

Mas é importante ressaltar que o movimento foi amplamente vitorioso em sua reivindicação específica, independentemente dos desdobramentos políticos posteriores, que levou ao enfraquecimento do MPL, dividido sobre os rumos a tomar após conquistar uma espécie de congelamento informal da tarifa.

Não só São Paulo e Rio de Janeiro cancelaram o aumento, como mais de cem cidades fizeram o mesmo, algo inédito no país. O Passe livre estudantil tornou-se uma realidade no Brasil e o debate sobre a universalização do Passe Livre, ou seja, do direito universal à mobilidade urbana entrou na agenda das cidades, com gestores buscando alternativas para financiar esse direito.

No caso de São Paulo, o impacto de Junho de 2013 foi muito mais expressivo. É o que vamos tratar na segunda parte desse artigo.

2. Como Junho de 2013 influenciou a gestão Haddad em São Paulo

O castelo desabou

Fernando Haddad adentra a sala de reunião ao lado do seu gabinete, no segundo semestre de 2013, onde seria apresentada a versão final das metas de sua gestão, após um amplo processo participativo e consistente trabalho técnico da equipe da Secretaria Municipal de Planejamento. Na tela, o título do Powerpoint: Plano de Metas 2013–2016. O relato é de uma das participantes da reunião: “O prefeito entrou e parecia exasperado, com mais cabelos brancos do que tem hoje, dez anos depois. Desalentado, ele olha para a tela e diz: ‘tira o 2016, o meu governo acabou agora’.”

O próprio prefeito relatou esse período em depoimento à revista Piauí:

Num final de tarde melancólico, sozinho na sala do meu apartamento no Paraíso, anoiteceu sem que eu me desse conta. “Pai, o que você está fazendo aí no escuro?”, perguntou meu filho Frederico ao chegar da rua. Disse a ele que estava pensando naquela situação toda e na dor de ver doze anos de dedicação à vida pública serem liquidados em seis meses de gestão à frente da prefeitura. Ele disse: “Mas, pai, ainda faltam três anos e meio de governo.” Respondi: “Eu sei, filho, mas aconteceu uma coisa muito séria e não há como não viver o luto”

(Haddad, 2017).

As Jornadas de Junho abalaram fortemente o prefeito da maior cidade brasileira, que viria a ser o candidato a presidente da República em 2018 e hoje é o ministro da Fazenda. Após as Jornadas de Junho, ele viu um castelo (que era de cartas, mas ele não sabia) desmoronando.

A utopia do prefeito

Haddad tinha formulado um bem elaborado programa de governo — no qual eu pude contribuir coordenando a área de política urbana — que objetivava alterar o modelo de desenvolvimento urbano da cidade, articulado com um ambicioso plano de obras, que requeria vultuosos investimentos em corredores de ônibus, habitação, saúde e educação. O programa propunha reestruturar completamente a cidade, mudando a lógica que prevaleceu desde o Plano de Avenida, com a prioridade para o automóvel, expansão periférica ilimitada, assentamentos precários e segregação sócio-territorial. Entre os urbanistas, entre comentários maldosos e bem-humorados, se dizia que ele pretendia ser o novo Prestes Maia, um prefeito que queria deixar sua marca na cidade, alterando a estrutura urbana herdada do século XX.

Para tanto, o prefeito precisaria de um plano diretor que se propusesse reestruturar a cidade, tanto estimulando o setor privado a investir na perspectiva dessa mudança, como para definir um programa de obras reformador; de recursos para implementar as intervenções necessárias; e de dois mandatos, pois como ele próprio afirmou: “Pela experiência no MEC, sabia das vantagens do ciclo de oito anos na gestão pública. Muitas políticas só se estabilizam com o tempo” (Haddad, 2017).

Quando aceitou ser candidato à prefeitura, Haddad tinha a promessa de contar com um forte apoio do governo federal que, no início do governo Dilma (2011–2), contava com forte apoio popular, baixo desemprego e economia crescendo, em parte impulsionada pelos vultuosos investimentos em infraestrutura do Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC. O programa de investimento elaborado pela gestão da presidenta Dilma (PAC2, 2011–2014), previa inversões de cerca de R$ 955 bilhões.

Por não desejar ver o PT, através do governo federal, se fortalecendo no município e, ainda, por não ter uma estratégia de desenvolvimento urbano, a prefeitura de São Paulo, governada durante o PAC pela oposição (Gestão Gilberto Kassab, aliado do PSDB, até 2012), não apresentou projetos compatíveis com a dimensão propiciada por essa conjuntura, não beneficiando a cidade, na medida em que faria jus por ser a principal metrópole do país, dessa onda de investimentos. Em 2011, São Paulo recebeu a menor transferência per capita do governo federal entre as capitais dos estados do Sul e do Sudeste, menos da metade da média. Em sua campanha de 2012, Haddad criticava a situação urbana do município: “a vida das pessoas melhorou muito da porta para dentro (com as políticas distributivas do governo Lula), mas piorou da porta para fora”.

O contraponto vinha do Rio de Janeiro. A capital carioca, governada pelo PMDB, o principal partido aliado ao PT no governo federal, recebeu a maior transferência de recursos da União, em valor absoluto, destinado a um município brasileiro. Além de ser a principal cidade-sede da Copa das Federações (2013) e da Copa do Mundo (2014), o Rio também havia sido escolhida, com forte apoio do presidente Lula, para ser a sede das Olimpíadas de 2016.

Esperava-se deixar um vistoso legado urbano, com investimentos federais de grande dimensão em mobilidade, habitação e infraestrutura urbana, que possibilitou a implantação de uma grande rede de BRT, a expansão do metrô, a urbanização de grandes favelas, a maior quantidade de moradias do Programa Minha Casa Minha Vida, a reestruturação urbana da área portuária (Porto Maravilha) e a criação do Parque Olímpico, além de concentrar grandes inversões, com recursos públicos, na Petrobrás e em empresas privadas de gás e óleo.

Sem avaliar a natureza dessas obras (que daria outro artigo), é bom lembrar no âmbito da presente análise, que esse investimento não evitou (ou melhor, impulsionou) imensas manifestações na cidade em Junho de 2013 e meses seguintes, em boa parte turbinadas pela corrupção identificada nessas obras e no impacto social por elas geradas, como as remoções de favelas. As mobilizações contra a Copa no Rio de Janeiro em 2013 foram das maiores do país.

Olhando para o Rio, Fernando Haddad acreditava que, com sua eleição, São Paulo teria um apoio semelhante, como ele mesmo afirmou: “Na época em que fui ministro da Educação, eu sempre disse ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva que, desde 1932, o Brasil nunca havia se reconciliado de fato com São Paulo, nem São Paulo com o país. (…) Quando ganhei a eleição para a Prefeitura de São Paulo, pensei: ‘Quem sabe podemos começar nosso acerto de contas com 1932?’”. (Haddad, 2017).

A questão da tarifa no centro da decepção de Haddad com Dilma

Essa impressão começou a se desfazer no dia seguinte à sua eleição:

Em um contato rápido que havíamos tido na manhã seguinte ao segundo turno, eu já havia insinuado à presidenta (Dilma) que entendia que o governo federal deveria tratar São Paulo de maneira singular, em função de sua importância. Ela então me olhou com um sorriso irônico, como quem diz: “Não me venha querer levar vantagem”. Pensando em retrospecto, creio que a relação de Dilma com São Paulo nunca se resolveu completamente.

(Haddad, 2017)

O depoimento do ex-prefeito continua demonstrando decepção:

Em dezembro de 2012, fui a Brasília para nossa primeira audiência de trabalho após minha eleição como prefeito de São Paulo. Dilma me recebeu ao lado dos ministros Guido Mantega, da Fazenda, e Miriam Belchior, do Planejamento, Orçamento e Gestão. Minha expectativa era realizar um primeiro encontro com ministérios estratégicos para definir o que Brasília poderia fazer para mudar a cara de São Paulo. Mas o que ouvi foi a demanda exatamente oposta: ‘o que São Paulo faria para ajudar o governo federal?’ Sem muitos preâmbulos, a audiência passou direto a uma questão bastante específica: o reajuste da tarifa de ônibus no município. Percebi na hora que o clima de celebração pela minha vitória tinha passado e que aquilo era um balde de água fria.

(Haddad, 2017)

A decepção inicial não arrefeceu os planos do prefeito. De olho nos investimentos do PAC, o prefeito, do mesmo partido da presidenta, atendeu ao pedido da equipe econômica e adiou o reajuste da tarifa de ônibus, embora isso sangrasse o já debilitado caixa da prefeitura e ele entendesse que era uma medida equivocada para controlar a inflação:

Argumentei que o represamento do preço da tarifa não seria um bom expediente para combater a inflação. (…) O tamanho do esforço que terei de fazer no plano local, com um impacto de 600 a 700 milhões de reais por ano, é desproporcional ao benefício que vocês terão. É um sacrifício enorme para um primeiro ano de mandato e não vai ter o efeito que vocês imaginam. Não se produz estabilidade macroeconômica por intervencionismo microeconômico.

(Haddad, 2017)

Consciente do custo político da mexer na tarifa e como alternativa ao seu congelamento demandada por Dilma, Haddad tinha levado à equipe econômica uma alternativa: a municipalização da Cide — um tributo de competência federal que incide sobre a importação e a comercialização de gasolina, diesel e derivados — como fonte de financiamento do transporte público. A ideia seria a municipalização desses recursos de modo que o transporte individual motorizado subsidiasse o transporte público.

A ideia de Haddad poderia ter evitado o estopim das Jornadas de Junho e, sobretudo, ter estimulado uma alteração estrutural na lógica de mobilidade.

Apresentamos os números do estudo da FGV (sobre a municipalização da Cide, que ele havia solicitado a professores da instituição), provando que o resultado que se teria optando por aumentar a gasolina em vez da tarifa dos transportes coletivos, seria deflacionário. O que oferecíamos ao governo federal, portanto, era uma alternativa que ia ao encontro daquilo que eles pretendiam, com um ganho de política pública indiscutível. Criava-se uma espécie de pedágio urbano, desestimulando o uso do carro e estimulando o do transporte coletivo, mais barato.

(Haddad, 2017)

A proposta se encaixava como uma luva na estratégia de mudança do modelo de desenvolvimento urbano de São Paulo que estávamos propondo no Programa de Política Urbana (e que, depois, foi incluída no Plano Diretor estratégico de 2014), que tinha no estímulo ao transporte coletivo e na racionalização do uso do automóvel um pilar fundamental.

Mas essa perspectiva passava longe do governo federal. Desde a entrega do Ministério das Cidades ao Partido Progressista (Centrão), perdeu-se a perspectiva transformadora na política urbana que originou sua criação. Focado exclusivamente na suposta capacidade de indústria automobilista em gerar empregos e crescimento econômico, os governo do PT estimularam o uso do automóvel nas cidades, seja subsidiando a produção, a comercialização e o financiamento seja subsidiando a gasolina. Por isso, como o próprio prefeito afirmou “A proposta de municipalização da Cide foi liminarmente descartada e o debate morreu, com a assertiva final de que ‘não era hora de mexer com o preço da gasolina’.” (Haddad, 2017).

A precária situação financeira da prefeitura

Ao mesmo tempo em que mantinha a tarifa congelada, durante o primeiro semestre de 2013, a prefeitura iniciou o desenvolvimento de um grande número projetos previstos no programa de governo, que requeriam recursos de grande monta. Mesmo com as esperadas transferências do governo federal, seriam necessários recursos municipais para as contrapartidas. Abrir espaço orçamentário e fiscal para os investimentos era impositivo para colocar em prática o programa de governo e o Plano de Metas da gestão Haddad.

A situação financeira da prefeitura era muito difícil. O serviço da dívida municipal consumia anualmente 13% do orçamento. Contraída na gestão Maluf (1993–6) para realizar obras viárias superfaturadas e negociada com o governo federal, em péssimas condições, pela gestão Pitta (1997–2000), ela atingiu, em 2013, R$ 54 bilhões, cerca de 150% da arrecadação municipal. E os problemas não paravam por aí.

Nada menos de 90% da arrecadação do município estava comprometida com despesas obrigatórias e serviços básicos. O congelamento da tarifa de ônibus, que não sofria reajuste desde 2011, período em que a inflação acumulada alcançava 17%, consumia entre R$ 600 milhões e R$ 700 milhões por ano do orçamento. A Planta Genérica de Valores (PGV), base de cálculo para o IPTU, estava tremendamente defasada e não tinha acompanhado a enorme valorização imobiliária dos anos anteriores. E, finalmente, o STF havia estabelecido o pagamento, em curto prazo, da totalidade dos precários do município, que alcançavam R$ 16 bilhões.

A estratégia da gestão para recuperar a capacidade de investimento da prefeitura passava por, pelo menos, quatro pontos: a renegociação da dívida com o governo federal, reduzindo retroativamente os juros; o reajuste da PGV, ampliando a arrecadação com o IPTU; diminuir a sangria representada pelo congelamento da tarifa; e ampliar as transferências do governo federal para viabilizar os investimentos. Ao longo de 2013, essas alternativas foram caindo, uma atrás da outra.

A municipalização da Cide para subsidiar o transporte coletivo sequer foi considerada pelo governo federal. A renegociação da dívida exigiu uma longa negociação com a União e com o Congresso Nacional, só finalizada em 2016, no final do mandato, deixando esse legado para seus sucessores.

Ao longo do ano foi ficando visível que a transferência de recursos federais não teria a dimensão esperada, seja porque a disponibilidade de recursos do orçamento da União já estava esgotada (São Paulo tinha chegado tarde à “festa” do PAC), seja porque o tempo de elaboração dos projetos, obtenção de licenças e tramitação na burocracia federal era demorada.

Por 20 centavos, Haddad enfrenta o MPL e seus próprios conselheiros

Nesse contexto, o reajuste da tarifa era uma alternativa que podia ser decidida pela gestão municipal e que daria algum fôlego ao caixa da prefeitura. Haddad não esperava uma forte resistência, por um lado, porque o reajuste em R$0,20 era (racionalmente) pequeno, de apenas 6% enquanto a inflação somava 17% desde o reajuste anterior, e por outro, porque estava mal informado (assim como o governo federal) sobre a força, a articulação e a estratégia do movimento Passe Livre.

Embora pequeno e sem capacidade de sozinho levar grandes multidões às ruas, o movimento tinha acumulado uma significativa experiência na luta pelo direito à mobilidade, desde as Revolta do Busão em várias cidades, a última das quais em abril de 2013, em Porto Alegre, um espécie de ensaio para o Junho de 2013.

Como mostrou Alonso (2023), apesar da aparente calmaria, da alta aprovação do governo federal e do bom desempenho da economia, “Lula transmitiu a sua sucessora um caldeirão fervente”. Á esquerda e à direita do PT surgiram inúmeras organizações, coletivos e movimentos que se mobilizavam por um leque de pautas.

O MPL era um deles. Ele se enquadrava no campo autonomista (ou neoanarquista) e tinha uma estratégia (apresentada no item 1 desse artigo) para se contrapor a qualquer aumento de tarifa, mesmo que pequeno. Formado predominantemente por jovens, secundaristas e universitários, que não tinham vivência política anterior aos governos do PT, o movimento tinha uma estrutura horizontal, descentralizada e se valia de uso de tecnologia digital.

Era avesso ao tipo de negociação (sindical ou dos movimentos sociais mais tradicionais) ao que o PT estava acostumado a lidar e, como outras organizações de linha semelhante, tinha uma estratégia de manifestação que incluía o uso de violência, tanto simbólica como física.

A tática black bloc era entendida como parte da proteção contra a violência policial, porque, com afirma Monteiro (2013), “a mobilização não deveria se intimidar perante a repressão policial”. Nessa estratégia, mesmo manifestações com um número relativamente pequeno de pessoas podiam ter uma grande repercussão midiática, como ocorreu no dia 13 de Junho, com a brutal e desproporcional violência policial. E era isso que importava, amplificar a visibilidade do movimento e de suas pautas.

Nada atentos para essas características do MPL, o PT e o governo Haddad deram pouca atenção às primeiras manifestações. Para o padrão tradicional, eram pequenas e o prefeito, nas suas próprias palavras, “imaginava que conseguiria estabelecer um diálogo com os manifestantes” (Haddad, 2013). Mas o movimento não queria conversa, racionalidade e explicações; queria a revogação do aumento!

Sem atentar para o crescimento das manifestações, o prefeito e o governador viajaram para Paris, para apresentar a candidatura de São Paulo à Expo 2020 (um megaevento, em um momento que megaeventos estavam sendo questionados nas ruas), após os atos dos 6, 7 e 8 de junho, quando vias importantes, como a Rebouças e a Marginal foram bloqueadas. A passeata do dia 7 começou com duzentos manifestantes e terminou na Paulista com 4 mil, gritando “Se a tarifa não baixar, São Paulo vai parar”.

Haddad e Alckmin estavam na capital francesa no dia 11, quando os protestos ocorreram por um lado na Ponte Estaiada e, por outro, em uma passeata que saiu da Paulista, desceu a Consolação, bloqueou a entrada da Radial Leste e terminou sob ataque e bombas da tropa de choque no Terminal Dom Pedro. Um ônibus e lixeiras foram incendiadas e vidraças foram quebradas, uma cena que se repetiria por todo o mês.

De volta a cidade, Haddad estava convencido a manter o reajuste, frente ao custo que seu cancelamento traria para a cidade. No dia 13, afirmou que não era possível rever o aumento: “Vou repetir para deixar bem claro. Não pretendo, porque o esforço que foi feito ao longo do ano para que o reajuste da tarifa fosse muito abaixo da inflação foi enorme. E o aumento vai significar investir mais de R$ 600 milhões em subsídio”.

Enquanto a mobilização crescia nas ruas e a situação começava a ficar insustentável, Haddad convocou reunião do Conselho de Cidade para debater o problema. O órgão tido sido criado por ele, que escolheu seus membros, representantes da sociedade civil.

Após ouvir as explicações do secretário de Transportes, Jilmar Tatto e do prefeito, sobre a situação das finanças municipais e a necessidade de manter o reajuste, todos os 36 conselheiros que tomaram a palavra, de diferentes segmentos da sociedade, defenderam o cancelamento do aumento.

Esperava-se que o prefeito mudasse de ideia, afinal eram seus conselheiros, mas se decepcionaram: Haddad estava convencido que o reajuste era correto, pois era muito inferior à inflação e indispensável para o esforço de abrir espaço orçamentário para investimentos. Desistir significaria abrir mão de receitas necessárias para implementar seu programa do governo, já bastante comprometido.

A capitulação e o luto

A partir do dia 17 de Junho, com o apoio massivo da mídia, a situação ficou fora de controle. Quando o prefeito e o governador de São Paulo anunciaram o cancelamento do reajuste, no dia 19, o leite estava derramado: as ruas já estavam gritando “não é por 20 centavos, é por direitos”.

Uma miscelânea de pautas, de diferentes campos políticos, que até então se manifestavam de forma atomizada, se encontraram em grandes protestos, cujos desdobramento já foram bastante debatidos.

No final de semana entre o dia 13 e o dia 17, foi dado o pontapé inicial da Copa das Confederações, no estádio Mané Garrincha, em Brasília. Fora do estádio, rolou cavalaria, spray de pimenta e tiros de borracha. Dentro, a presidenta Dilma foi vaiada. O espetáculo que foi pensado para ser o apogeu de um projeto desenvolvimentista estava virando um tiro pela culatra.

Os desdobramentos políticos gerais das Jornadas de Junho são controversos. Tratamos disso superficialmente na primeira parte desse artigo e não iremos nos aprofundar aqui. O que nos interessa é analisar as consequências dos protestos nas políticas urbanas em São Paulo, nesse contexto já delineado. Na minha opinião, teve um lado positivo, que em geral tem sido ignorado pelos analistas.

Haddad terminou o mês de junho na lona. No dia 18, a sede da prefeitura tinha sido atacada e depredada e ele teve que deixar o prédio pelo teto, de helicóptero. Defendeu o quanto pode o reajuste da tarifa, de olho na recomposição das finanças municipais e em seu Plano de Metas, e teve que capitular, em cena patética no palácio dos Bandeirantes, junto o governador do PSDB, a quem a polícia militar, que reprimia com violência as manifestações, estava subordinada.

A popularidade do prefeito despencou. O índice de aprovação do governo, que era de 32% no início de junho, caiu para 18% em julho. A esquerda se decepcionou por sua suposta falta de sensibilidade com um clamor popular e a direita vislumbrou uma grande oportunidade de desgastar ao extremo os governos petistas.

E as más notícias não pararam por aí.

Em setembro, o prefeito enviou para a Câmara Municipal a proposta de orçamento para 2014 e o Projeto de Lei do IPTU, com uma significativa, ainda que moderada, atualização da Planta Genérica de Valores, base para o cálculo do imposto. A proposta possibilitava um aumento da arrecadação, mas estava baseada em uma redução significativa do imposto nas periferias e aumento no centro expandido, local de moradia, comercio e serviços dos segmentos sociais mais privilegiados da cidade, onde os imóveis experimentaram uma brutal valorização.

A revisão do IPTU era uma iniciativa que promovia justiça social, mas deu origem a uma brutal campanha de mídia, destinada a criar a oposição da opinião pública contra a proposta e o prefeito. A campanha foi tal que mesmo os setores sociais que seriam beneficiados com a revisão, com a isenção do imposto foram induzidos a se posicionar contrariamente a ela.

Buscando se antecipar aos protestos, o governo votou o Projeto de Lei antes do previsto, e o aprovou com o número mínimo de votos. Mas a campanha contra a revisão teve continuidade, associada à judicialização da votação. O Ministério Público ajuizou uma ação civil pública contra a aprovação do PL que foi acolhida, em decisão liminar, por um juiz de 1ª instancia e confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

O evento colocou mais uma pedra na tentativa do prefeito de recuperar as finanças municipais. Segundo suas próprias palavras: “além do impacto do represamento da tarifa de ônibus no orçamento municipal, outro evento (…) fez com que eu rebaixasse ainda mais as expectativas sobre minhas possibilidades de êxito. Um erro da Justiça (gerou) a perda do equivalente na época a 850 milhões de reais de arrecadação, valor suficiente para a construção de vinte CEUs.” (Haddad, 2017).

Com mais essa porta fechada, a capacidade de investimento da prefeitura para “mudar a cara de São Paulo”, dentro de um modelo baseado em grandes obras, parecia travada.

Nesse contexto, dá para entender a cena de luto, no início da noite, na sala escura de seu apartamento…

A ressurreição

“Minha intenção de ficar oito anos à frente da prefeitura provavelmente não se viabilizaria. Agarrei-me àquilo que se mostrava a única vantagem. Tinha esses três anos e meio de mandato e poderia governar como se não houvesse outro.” (Haddad, 2017)

Os percalços de 2013 tinham feito o “castelo desabar”, mas abriu novas perspectivas para a gestão. A conjuntura criada por Junho, o congelamento da tarifa, o cancelamento da revisão do IPTU, a dificuldade de obter recursos federais para as grandes obras previstas e a demora na renegociação da dívida municipal obrigaram a prefeito a apoiar a adotar ideias e propostas ousadas, enfrentando questões estruturais da cidade, como a “cultura do automóvel” e o lobby das empreiteiras, mesmo que isso significasse contrariar interesses e tomar medidas impopulares. Afinal, ele entendia que, após 2013 “se a reeleição da Dilma não estava mais assegurada mesmo depois de dez anos de prosperidade, a minha reeleição parecia ainda mais distante.”. Assim, ele pode, de fato, com era o lema de sua gestão, “fazer o que precisa ser feito!”.

Junho de 2013 foi essencial para a gestão Haddad tomar uma decisão estratégica, que até então estava em debate no seio do governo: suspender o caríssimo e desnecessário túnel ligando a Avenida Roberto Marinho à Rodovia dos Imigrantes, contratado por Kassab, contrariando o interesse das oito maiores empreiteiras do país.

O túnel havia sido idealizado pela gestão Kassab. O projeto original, elaborado na gestão Marta (2002), previa um túnel de 400 metros; ele foi ampliado para longos 2,3 quilômetros na versão final, cujo custo alcançava mais de R$ 3 bilhões. Kassab deixou a obra licitada em 2012, faltando apenas a prefeitura dar a ordem de início serviço.

Com em outros períodos da história de São Paulo, realizar essa megaobra comprometeria as já debilitadas finanças do município. As obras viárias sempre representaram o filé mignon das empreiteiras de obras públicas que, através de lobby e propinas, acabavam por impor sua própria lógica aos gestores, deixando o planejamento urbano e o interesse público em segundo plano.

Durante o 1º semestre de 2013, o tema era polêmico dentro da gestão Haddad, fortemente pressionado pelas oito maiores empreiteiras do país para dar início às obras.

Implantar um túnel destinado aos automóveis, ao custo de R$ 3 bilhões que a prefeitura não tinha, contrariava integralmente o programa de desenvolvimento urbano que havia sido elaborado, pois dava continuidade à lógica de mobilidade da cidade, que se pretendia alterar. Ainda assim, existiam membros do governo que defendiam iniciar a obra, enquanto outros se opunham.

Junho deu ao prefeito os argumentos definitivos para encerrar esse debate e suspender para sempre esse túnel. Por um lado, o congelamento da tarifa reduzia ainda mais a capacidade de investimento da prefeitura e, por outro, a mensagem das ruas apontava para a priorização do direito à mobilidade e da melhoria nos serviços de transporte coletivo, saúde e educação e denunciava as obras superfaturadas que eram a marca registrada dessas empreiteiras.

O cancelamento desse túnel foi emblemático e outras obras que estavam sendo projetadas também se inviabilizaram. Por exemplo, os projetos de corredores de ônibus (BRT) que estavam sendo formulados no primeiro semestre de 2013 eram intervenções complexas, que previam muitas obras de arte, como mergulhões e viadutos e a desapropriação de milhares de imóveis para o alargamento de avenidas, seguindo o modelo de obras do PAC de Mobilidade realizadas em outras cidades.

O prefeito chegou a enviar para a Câmara Municipal, em 2013, um Projeto de Lei baseado nesses projetos, com os novos alinhamentos das avenidas onde seriam implantados os corredores de ônibus. Se as intervenções fossem realizadas, a estimativa era a desapropriação de 20 mil imóveis. Além do custo financeiro, esse tipo de intervenção teria um custo político imenso, inviável na conjuntura de 2013.

Como relator do Plano Diretor Estratégico (PDE) na Câmara Municipal, cujo Projeto de Lei tramitou, com um amplo processo participativo, entre setembro de 2013 e julho de 2014, pude testemunhar como o clima de Junho de 2013 influenciou o debate sobre política urbana em São Paulo, em uma perspectiva progressista.

Ao contrário de impressão que se tem hoje, de que Junho desembocou no avanço da direita, o que pude vivenciar nesse período, que se situa entre as Jornadas de Junho e as eleições de 2014, foi uma grande mobilização das forças progressistas vinculadas à questão urbana, incluindo movimentos de moradia, coletivos, cicloativistas, ambientalistas, ativistas culturais e muitos jovens (que, com certeza, estavam nas ruas em Junho), defendendo a função social da propriedade, o direito à cidade e à mobilidade, a cidadania cultural, o meio ambiente, a proteção das terras indígenas, a agricultura urbana e a valorização do espaço público.

O campo da direita, ou aqueles que Alonso denomina de “patriotas”, não apareceram nem tiveram nenhuma participação nas 114 audiências públicas que debateram o Plano Diretor, embora ali tenha se debatido temas caros a esse campo, como o direito à propriedade.

No polo oposto, ativistas do campo progressista, como os movimentos de moradia, com destaque para o MTST, promoveram manifestações com milhares de pessoas, participaram intensamente das audiências públicas e atos e, nas duas últimas semanas, acamparam em frente à Câmara para exigir a aprovação do texto substitutivo que elaboramos a partir desse intenso debate. Essa presença massiva de movimentos deu uma enorme visibilidade e força para propostas avançadas no Plano Diretor, que foi debatido no calor do momento.

Essa conjuntura de mobilização popular foi fundamental para incluir e aprovar inúmeros instrumentos avançados no PDE, com o apoio do prefeito, independentemente de contrariar interesses.

Ao mesmo tempo, na área de mobilidade, que esteve no centro da eclosão das Jornadas de Junho, a prefeitura colocou em prática intervenções de baixíssimo custo para democratizar o espaço viário da cidade, dando prioridade para os ônibus, bicicletas e para as pessoas. Indiretamente, foi uma resposta às vozes das ruas, que clamavam pelo direito à mobilidade e criticavam as grandes obras superfaturadas.

A gestão promoveu uma outra estratégia para mudar a cara de cidade, que era a intensão inicial do prefeito, sem necessitar de vultuosos investimentos. Em um curto espaço de tempo, foram implantados 600 quilômetros de faixas de ônibus e 400 quilômetros de ciclovias, retirando espaço dos automóveis, em uma intervenção inédita.

A proposta de uma cidade para as pessoas foi impulsionada, seja através da regulamentação dos parklet, que permitiu a substituindo de vagas de estacionamento em vias públicas por área de uso público, seja através do Programa Ruas Abertas, cujo exemplo mais expressivo foi a Paulista Aberta, arena cultural urbana, onde a diversidade pode se manifestar livremente.

A transformação definitiva do Minhocão em área de lazer e sociabilidade ganhou força, com a ampliação do horário em que ele está aberto para os pedestres, na perspectiva de fechamento total aos automóveis, previsto no Plano Diretor.

A redução dos limites de velocidade nas vias públicas, outra medida impopular, mas necessária para racionalizar o uso do automóvel, gerou uma significativa redução do número de mortos e feridos no trânsito.

A abertura do espaço público para as pessoas foi acompanhada da sua ocupação cultural, cuja expressão mais visível e de maior impacto foi o Carnaval de Rua, entre tanto outros exemplos de eventos e manifestações de cidadania cultural que passaram a fazer parte do cotidiano da cidade.

“Depois da execução sumária de 2013, o que aconteceu era quase uma ressurreição”, comemorou o prefeito.

O que a ocupação cultural do espaço público tem a ver com Junho de 2013. Na minha interpretação tem tudo a ver. As Jornadas foram uma expressão cultural, combinada com um múltiplo desejo de se manifestar, uma mistura de militância política com cortejos artísticos, uma livre expressão dos corpos e de identidades, de revolta contra o sistema, contra a opressão e contra a corrupção.

No final de 2014, foi aprovada a lei de gratuidade do transporte coletivo para estudantes de escolas públicas ou de baixa renda, uma resposta direta ao clamor das ruas de Junho. Mas diria que os desdobramentos dessas jornadas na política urbana de São Paulo foi muito além disso. É uma tese a ser explorada, frente a tantas interpretações que as Jornadas de Junho têm suscitado.