10 anos de junho de 2013
Introdução

Passados dez anos, junho de 2013 definitivamente se consolidou como um momento imprescindível para pensar o Brasil. Aquela série caótica de acontecimentos, protestos, encontros e desencontros entre vários agentes sociais se tornou de fato o que já parecia ser desde o começo: um novo marco para se pensar os problemas brasileiros. Porque de algum modo todos esses problemas se encontraram naquela encruzilhada inesperada: (i)mobilidade urbana, inflação, descaminhos econômicos, corrupção, letargia do sistema político, má qualidade dos serviços públicos. Esses foram apenas algumas das palavras de ordem que ocuparam as ruas e que parecem ter motivado as manifestações que começaram pequenas e logo passaram à ordem das milhares e, então, milhões de pessoas.
Por certo, a década que antecedeu esse mês fatídico foi de avanços sociais nada desprezíveis. No entanto, o que as manifestações demonstraram, inicialmente, era uma vontade de ir além de um avanço que parecia ainda tímido diante de todas as necessidades da população. Especialmente quando pensamos no direito à cidade, o cenário era dos mais piores. Inundadas por veículos e sem nenhuma alternativa à lógica automotiva, os centros urbanos eram tomados por trânsitos assustadores enquanto muitos, sem a possibilidade do carro, iam e vinham do trabalho enlatados nos ônibus e gastavam boa parte de seu dia na trajetória casa-trabalho-casa. Daí que a primeira bandeira do movimento tenha sido aquela que foi empunhado contra o aumento de 20 centavos nas passagens. Aumento que, para o poder público fazia parte dos reajustes automáticos e necessários para fechar as contas, mas que, no bolso dos que dependiam do transporte público, faria uma diferença nada desprezível.
Depois de junho, a sociedade brasileira entrou em um período de vários anos de manifestações intensas e que atravessaram todas as dimensões da vida social. Protestos contra a corrupção, contra a Copa de 2014, contra as Olimpíadas, a greve dos garis no RJ, a ocupação dos secundaristas, as passeatas a favor e contra o impeachment, as greves dos caminhoneiros, os protestos pela prisão de Lula, a favor da queda de Temer, pela mobilização pró e contra Bolsonaro. Mesmo durante a pandemia, houve protesto contra a desfaçatez de um presidente que não apoiou sequer o isolamento e a vacina que poderiam ter salvado parte expressiva da população.
Nessa efeméride dos dez anos, parece que se consolidaram três campos de interpretação sobre os acontecimentos. O campo dos autonomistas enxergam os acontecimentos ligados a junho como a possibilidade de uma reviravolta absoluta, uma chance perdida que poderia ter levado o país para outra direção, bem mais à esquerda, caso o governo tivesse sido mais habilidoso no trato e nas negociações com os manifestantes, sem apelar para acusações infundadas, repressões violentíssimas e prisões. Já os governistas compreendem o momento, em menor ou maior grau, como um levante golpista. Feitas as devidas ressalvas, sobretudo aquela de lembrar que o movimento não foi, em sua origem, nada ligado à direita, os governistas acentuam que ele foi fundamental para a ascensão da direita e da extrema-direita e que teve papel crucial na desestabilização de Dilma, sendo uma antessala para o golpe.
Por fim, temos um tipo de interpretação que nos parece mais independente. Nela, 2013 aparece como uma mobilização fundamental de determinados movimentos sociais, mobilização que logo se tornaria uma revolta generalizada em quase todo o país. Essa revolta essencialmente justa teve momentos perigosos e imprevisíveis, como a depredação do Palácio do Governo, mas, de forma geral, esteve longe de ser uma sublevação ou uma revolução, tampouco parece ter sido fruto de uma ingerência externa. Ao longo dos anos, a força liberada por essas manifestações foi mais capturada pela direita do que pela esquerda, dando origem a uma série de mobilizações fundamentais para tirar o PT do poder. Dito isso, o partido também foi responsável por não compreender e não ter tido a visão correta para lidar o momento.
Sem tomar parte nessas interpretações maiores, esse dossiê que apresentamos foi pensado como uma tentativa de um balanço desses dez anos. Propusemos lançar novos olhares sobre junho e ao mesmo tempo refletir em que sentido aquele momento ainda reflete no presente. De partida, esse dossiê seria maior, ao todo contaria com dez textos. No entanto, após alguns percalços, além de ficar menor do que o esperado, não conseguimos contemplar o desejado nem em termos de representatividade regional, nem em termos de identidade. Esses critérios surgiram das próprias questões que formulamos e que, até agora, nos parecem ou de todo sem resposta, ou ao menos mal exploradas: o que aconteceu em junho nos estados do Nordeste? De que forma o movimento por lá tomou formas diferentes do que se passou no Sudeste? O que se passou no Norte e em quê sentido a votação expressiva da extrema-direita pode ter alguma relação com esse decênio transcorrido desde 2013? De que forma o movimento negro se reorganizou a partir de junho de 2013? Qual o reflexo que as manifestações tiveram no cenário da música brasileira? Como as manifestações foram afetadas por certa lógica algorítmica que viria a pautar a política nos anos seguintes? De que forma a direita e depois a extrema-direita usaram as manifestações para aprender a se articular nas redes e nas ruas? Qual foi o impacto que as manifestações tiveram na gestão e nas políticas públicas?
O dossiê conseguiu apresentar possíveis respostas para algumas dessas questões, mas todas essas perguntas continuam no ar, suspensas, esperando que mais pessoas levantem hipóteses, pesquisas e novas respostas. E todas elas nos parecem essenciais para entender qual é o papel que uma política progressista pode e deve ter no Brasil dos dias atuais.