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O que acontece no Peru? — Lima, a neoliberal

Para meus primos, todos

Laila Terra

O que está acontecendo no Peru? Essa pergunta me foi feita, nestes últimos meses, em minha atividade profissional e em minha vida pessoal, por colegas e colaboradores, de um lado, e por amigos, familiares e vizinhos, de outro. Imagino também que seja uma pergunta que todos, absolutamente todos, que tenham algum vínculo com o país, sua cultura e sua história se façam. Ocorre que é uma questão complexa, pois exige compreender tanto os acontecimentos atuais como também, crucialmente, a história e a sociedade que contextualizam esses acontecimentos. A resposta não é, pois, nem poderia ser, simples.

Primeiro, o que aconteceu? Como se sabe, em 7 de dezembro de 2022 o então presidente Castillo, diante de um terceiro pedido de impeachment, tentou dissolver o Congresso no que seria quase correta e imediatamente caracterizado como uma tentativa de autogolpe. Tentativa fracassada, aparentemente desde a sua concepção. O desenlace foi rápido: apenas poucas horas depois, Castillo havia sido detido e destituído de seu cargo presidencial. Na sequência, evitando um vácuo no poder, a primeira presidenta da história peruana, Dina Boluarte, assumiria o cargo. Os protestos começaram nesse mesmo dia, mas, sendo relativamente pequenos, não davam sinais do que estava por vir. E veio: desde a primeira semana de dezembro até o dia de hoje, os protestos se intensificaram e, sobretudo, persistiram até se tornarem parte da vida nacional. Já são mais de quatro meses. No final dessa primeira semana, em 14 de dezembro foi declarado estado de emergência nacional. Quem visse os protestos no começo poderia ficar tentado a falar de caos. Foi assim que grande parte da imprensa nacional e estrangeira os representou inicialmente, usando termos qualificativos como “fúria” para descrever a resposta popular. Tampouco tardaram os que — muitos — tachariam os protestos de terrorismo. Infelizmente, a perda de vidas nas mãos de um estado que reagiu de forma desmedida era de se esperar. No Peru, dificilmente se invoca o terrorismo sem que se ameace a vida humana. As palavras, lá como em todos os lugares, têm grande poder. “Terruquear” tornou-se uma das armas mais eficazes contra políticas, sobretudo de esquerda, que se têm como indesejáveis. Neste caso, e lamentavelmente, essa eficácia pode ser medida pela meia centena de mortes nas mãos do estado. De qualquer forma, os peruanos que encorajam o protesto social e político não dão sinais de se render nem de desistir de suas reivindicações.

Mas a grande questão que se coloca gira em torno de “por quê”? Suspeito que, para muitos, uma ideia do Peru como “tigre andino” subjaz a essa pergunta, pois tanto o governo quanto a mídia difundiram, ao longo dos últimos anos, a ideia do sucesso do país, como evidenciado, segundo essas fontes, pelo crescimento econômico e pelo aumento do investimento estrangeiro. Para alguns, o que se viveu é nada menos que uma “maravilha” econômica. Essa avaliação, deve ser dito, baseia-se em grande parte no extrativismo que tem sido, há séculos, uma atividade básica no país.

Diante desse suposto bem-estar econômico, indaga-se: como pode ocorrer o que se está vendo no Peru, a partir de qual perspectiva, com que critérios? Parece impossível que o autogolpe fracassado de um presidente considerado, mesmo por boa parte de seus partidários, inexperiente e incapaz tenha resultado no estado atual. Como entender, para ser mais preciso, a “fúria” popular e as diversas, porém relacionadas, reivindicações dos manifestantes? Por que o fazem agora e por que não as abandonam?

Seria preciso começar considerando as próprias reivindicações, tal como foram articuladas nestes últimos meses. Todas giram em torno do estado, sua classe dirigente e suas políticas atuais e recentes. E embora certamente tenha havido dissonâncias em sua formulação, parece-me que, essencialmente, são quatro:

  1. a renúncia da presidenta Dina Boluarte. Especialmente desde as mortes precoces de manifestantes e outras pelas mãos do exército e da polícia, pelas quais ela foi responsabilizada, exige-se sua renúncia;
  2. novas eleições imediatas e, portanto, a renúncia de todos os parlamentares;
  3. a convocação de uma assembleia constituinte com o objetivo não apenas de elaborar uma nova constituição, mas também para acabar com constituição a atual; e
  4. a liberdade do ex-presidente Castillo.

Esta última, a meu ver, vem diminuindo com o passar dos dias.

Em uma recente mesa redonda do Overseas Press Club, vários jornalistas estrangeiros relataram suas impressões e experiências sobre o que está acontecendo no Peru nestes últimos meses. Foi uma conversa que enfatizou uma diferença fundamental, segundo os jornalistas, em relação à parte majoritária da cobertura internacional até o momento: eles teriam se aventurado terra adentro e principalmente no sul do país, desde Cusco até Puno. Como se sabe, trata-se de uma parte do país impregnada de história e cultura indígenas, política contestatória e riqueza econômica. A seu ver, a maioria das notícias internacionais se baseava em relatos feitos a partir de Lima e, entende-se, de alguma forma marcados pela perspectiva da capital. Essa é uma observação importante que comentarei em breve. Entre os muitos detalhes e intercâmbios que ofereceram, fiquei com o consenso deles de que entre os peruanos com quem conversaram, embora naturalmente houvesse diferenças, a renúncia de Dina Boluarte era vista como absolutamente necessária. Ainda de acordo com os jornalistas, com menos ênfase pediam o fechamento imediato do Congresso, uma assembleia constituinte e a liberdade de Castillo.

O fato de que a vontade popular se concentre em Boluarte deve nos dizer muito, mas muito, sobre o que está acontecendo na sociedade civil peruana hoje e o porquê dos protestos. Como grande parte da população limenha e peruana, Boluarte é serrana, de Chalhuanca, e é de se supor que tenha, portanto, raízes nessa cultura, tão comentada no século XX. Como estudioso da literatura me é impossível ignorar que ela é originária da mesma província do renomado escritor e herói nacional José María Arguedas, cujas reflexões sobre o lugar da cultura andina no Peru moderno continuam estimulando nossas considerações a esse respeito. Penso compreender agora que essa circunstância — que a atual presidenta, responsável pela morte de numerosos rebeldes serranos, venha do mesmo lugar onde se enraíza o protesto social — não passou despercebida nas manifestações nem na resposta popular, muito pelo contrário. Entendo que, em certa medida, Boluarte representa uma traição, embora não uma que se possa limitar a suas ações pessoais na qualidade de presidenta.

Explico. Um detalhe biográfico não deve passar sem comentário: Boluarte é também presidenta do Clube Apurímac de Lima. Há mais de um século, organizações como essa existem representantes de todos os rincões do Peru. Os clubes regionais têm sido, assim, a principal maneira pela qual os provincianos navegaram uma Lima por vezes hostil e desconhecida. Essa Lima é, deve-se dizer, o ponto fulcral de uma sociedade desigual e injusta. Eles têm sido, portanto, um abrigo e uma orientação. Mas tampouco, pelo menos nos casos que conheço, estiveram isentos de reproduzir e às vezes intensificar as divisões que, certamente, também caracterizam a sociedade serrana. Para alguns, o fato de Boluarte “ser quéchua”, como se disse, implica que os manifestantes, especialmente os que vêm da serra sulista, deveriam identificar-se com ela como uma paisana, alguém que, como a filiação a um clube regional implicaria, está lá para estender a mão a seu semelhante. Deveriam confiar nela e em sua liderança. Mas suspeito que esses manifestantes, esses dissidentes, veem outra coisa: Boluarte é também uma figura típica na história peruana, o migrante que triunfa na cidade. O triunfo do provinciano em Lima é um discurso que, de forma direta, tem sido utilizado para indicar a justiça do país, a possibilidade que todo peruano tem nela. Essa possibilidade é, sobretudo, uma de mercado, como indicam campanhas publicitárias ao estilo “Cholo soy” [“Eu sou cholo”]. E é essa justiça que agora, precisamente, é denunciada como falsa ou ao menos grosseiramente insuficiente.

O discurso do migrante que se supera e melhora tem outra faceta, que críticos como José Carlos Mariátegui já conheciam: para vencer é preciso fazer concessões. O custo pode ser alto, e essa circunstância tampouco passou despercebida pelos manifestantes. Segundo as poucas fontes, Boluarte chegou a Lima muito jovem e, assim, faria parte dessa onda de migração serrana que Arguedas notoriamente anunciou em seu poema, escrito em quéchua, “Tupac Amaru kamaq taytanchisman (haylli-taki)” (1972) [Ao nosso pai criador Tupac Amaru (Hino-canção)]. Mas nesse texto a proposta é de um migrante que deve reformular a lógica de Lima para que esta siga a sua própria, andina:

Ao imenso povoado dos senhores chegamos e o estamos remexendo. Com nosso coração alcançamo-lo, penetramo-lo; com nosso regozijo não extinto, com a alegria relampejante do homem sofredor que tem o poder de todos os céus, com nossos hinos antigos e novos, estamos envolvendo-o. Temos que lavar [com] algo as culpas por séculos sedimentadas nesta cabeça corrompida dos falsos wiraqochas, com lágrimas, amor ou fogo. Com o que for!

O perfil da presidenta é outro. Boluarte seria o exemplo que os serranos deveriam seguir de acordo com a lógica do estado atual. Pace Arguedas, deveriam adaptar-se à cultura da cidade, a Lima em toda sua glória e aos seus costumes. Além disso, deveriam aplaudir os gestos, por mínimos ou efetivos que tenham sido, que fez no sentido da inclusão em seus 500 anos de história (vide a campanha “Cholo soy” acima, por exemplo). É inegável que a cidade, pela qual me refiro a suas manifestações físicas e culturais, sofreu mudanças notáveis ​​desde que Arguedas escrevia, tornando-se, por exemplo, a cidade de língua quéchua mais populosa do mundo. Um lugar para todos os sangues, em suma. Mas Boluarte não personifica essa esperança em outra Lima que Arguedas vislumbrava, mas sim a união de uma Lima antiga e poderosa com a governamentalidade neoliberal de nossos dias. Tal como Boluarte excede sua biografia e suas ações para se tornar um símbolo, assim também Lima se tornou uma poderosa figura simbólica. É uma Lima onde o que resta da colônia anda de mãos dadas com um mercado que busca dar lugar a tudo, absolutamente tudo. É a Lima que oferece dívida, poluição e engarrafamentos de trânsito àqueles que nela habitam, novamente se distanciando daquilo que sonhava Arguedas nos anos 1960 nesse mesmo local. Essa cidade simbólica é a mesma que recebe tantos migrantes que sobrevivem dia após dia, sem sucesso ou fracasso.

Lima então, e apesar dos muitos outros que a habitam, tornou-se não somente o cenário, mas a representação da vida econômica do país nas últimas três décadas. É uma cidade cara: moradia é quase inacessível para a maioria, e pelo que entendo está entre as mais altas da América Latina. É por isso que a tentativa de anular a constituição de 1993 e a substituir por outra nos diz muito: rejeita-se com esse gesto, como muitos já disseram, a lógica do mercado que ocupa um papel central nesse documento. No Peru, a consagração do país ao mercado resultou, para os manifestantes, em ainda mais desigualdade e opressão, menos esperança e futuro. O problema deve ser chamado por seu nome: neoliberalismo. Mas, claro, tem contornos particulares nesse contexto que a longa tradição crítica peruana pode nos ajudar a elucidar.

Em uma intervenção lúcida há cerca de 15 anos, a crítica peruana Silvia Spitta já havia percebido o poder das propostas do escritor peruano Sebastián Salazar Bondy para analisar os hábitos e a mentalidade coloniais que persistem em Lima e no Peru. Agora, chamaríamos isso de “colonialidade”. Em 1964, Salazar Bondy publica seu ensaio mais polêmico, Lima la horrible [Lima, a horrível], sobre a cultura limenha como proposta nacional, que ele denominaria “criollismo”. Para Salazar Bondy, a desigualdade e a exclusão que caracterizam o Peru dependem de um dispositivo cultural que está em jogo desde a Colônia e que organiza, até os dias republicanos, a sociedade nacional e as interações entre seus participantes [“sujetos”]. O ensaio nos dá uma visão detalhada e complexa desse racismo poderoso que, para Salazar Bondy, informa a cultura criolla da capital e, sobretudo, mantém uma ordem injusta. A dinâmica que o crítico descreve é reveladora para os nossos dias, pois organizações internacionais como a Anistia Internacional têm denunciado o racismo violento que orienta a resposta do governo diante dos protestos. E embora o racismo anti-indígena e antisserrano seja evidente, é preciso notar que o poder que o exerce mudou, ao menos na aparência, desde as propostas do crítico. A força dessa Lima reside, assim, também em sua qualidade proteica.

Essa Lima é forte e resistente. E tem peruanos que a apoiam. Acontece que a polarização entre os cidadãos não é simplesmente uma invenção do governo ou dos supostamente poucos que querem ver todo protesto desaparecer. Não. Se há uma prova da força de Lima e de sua cultura colonial é o número de limenhos que não apenas discordam dos protestos, mas antes os repudiam (46% segundo uma pesquisa do Instituto de Estudos Peruanos). E não é que sejam provenientes dessa linhagem criolla que talvez ainda exista, apesar de tanta mudança no Peru. Talvez sejam em sua maioria serranos e filhos de serranos e outros provincianos, ou seja, assemelham-se a Boluarte na medida em que aceitaram a lógica neoliberal e o que ela lhes promete: a vida boa, o trabalho respeitado, o bem-estar econômico. Não importa o que sofra o povo ou os cidadãos, menos ainda essa gente labiríntica da montanha, contanto que o mercado continue sem ser interrompido. Esses partidários da Lima neoliberal insistem em não ver como legítimos nem os sofrimentos nem as queixas de seu próximo.

Deve-se perguntar por que continua tendo apoio um status quo tão violento, tão destrutivo e tão excludente. Isto é, diante de tanto protesto, por que não houve uma mudança mais rápida? A classe política e seus interesses próprios, mas também a estrutura política que habitam, são sem dúvida uma parte fundamental do problema. Mas o mencionado neoliberalismo também tem outras armas. Quem diz neoliberalismo também diz: dívida. Dívida por geladeiras, carros, casas, comidas, pela menor compra que se faça, onde e como quer que seja. E Lima, como cidade, é uma cidade endividada. É, portanto, uma cidade de endividados. E os endividados, como me dizia um amigo citando sabe-se lá que economista inglês, são gentis, submissos, com seus credores. E ferozes com aqueles que, com seus protestos, reivindicações e determinação, ameaçam não somente um governo que os maltrata e menospreza, mas também o mercado e sua lógica que tantos peruanos internalizaram. Quem é que não quer sua casinha, seu carrinho, suas coisas, mesmo que os tenha que pagar por toda a vida? É para além dessa lógica de mercado, e do racismo e exclusão que a defendem, que se deve pensar e agir agora. Repito: para além de Lima, a neoliberal.