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Como se sustenta uma revolta?

Entrevista com Javiera Manzi (Chile)

Apresentação

Laila Terra

Todas, todos e todes esperávamos o 4 de setembro. Acordamos cedo e, de forma massiva, fomos votar. Éramos uma massa de 4 milhões e 800 mil pessoas depositando toda a nossa esperança em um voto. E perdermos, é verdade, é um dado objetivo e nos dói. Ficamos sem palavras e com todas as emoções removidas porque, apesar de sermos milhões, foram maioria as pessoas que preferiram recusar o projeto de Constituição.

São múltiplas as razões, talvez nunca chegaremos a conhecer todas e sempre poderemos debater sobre isso. Mas como seguimos? Sabemos que a proposta era de máxima urgência, tinha como características ser a primeira Constituição feminista do mundo, era uma Constituição que reconhecia as tarefas de cuidado ou que estabelecia a plurinacionalidade e constitucionalizava o direito consuetudinário dos povos indígenas, entre outros direitos e princípios materializados no texto. Esse projeto de Constituição fascinou milhões de mulheres, homens, diversidades e dissidências, e ouso dizer que temos a profunda convicção de que esse é o caminho que o nosso país espera.

Em sua entrevista, Javiera fala de ilusão, de um projeto, de um objetivo coletivo, democrático e com uma profunda perspectiva de direitos. Estamos dispostas e dispostos a abandoná-lo? Espero que não. Hoje #Seguimos, e obviamente o caminho será mais longo, à custa de raivas e tristezas que marcaram nossas corpas, tal como nos marcou esse 18 de outubro, quando Chile despertou, e esse 4 de setembro quando Chile recusou. Não gostaria de dizer que, de alguma forma, ganhamos, como se fosse um prêmio de consolação. Mas, sim, ouso dizer que aprendemos. Aprendemos da maneira mais miserável, com uma direita que, aproveitando-se dos meios de comunicação hegemônicos e dos editoriais favoráveis às suas convicções, ativaram um simulador de realidade fundamentado em mentiras, em relatos falsos e pregaram possíveis consequências que não eram coerentes juridicamente com a proposta do texto. A direita apelou ao espírito mais reacionário e antipolítico da nossa sociedade e, com isso, aprendemos que a cultura neoliberal é mais potente, e que derrubá-la requer mais trabalho de cada uma e cada um de nós, coletivos militantes e ativistas.

Contudo, 4 milhões e 800 mil pessoas votaram por uma proposta de máxima importância, e isso nos dá esperança porque somos muitas e muitos que acreditamos em um projeto que mude radicalmente o nosso Chile. Com essas milhões de pessoas, somos a base para lutar, para disputar ideias, para transformar tudo.

Hoje estamos na expectativa de como se resolverá uma nova Constituição, porque não pode ser colocado em dúvida o fato de que o Chile não mereça uma carta magna redigida em uma ditadura. Amanhã, com certeza, voltaremos a nos encontrar para garantir que os nossos direitos como mulheres, gays, lésbicas, travestis e transexuais etc. estejam consolidados em um texto constitucional. Porque não há democracia sem nós-outras [nosotras] e nós-outres [nosotres], e é com nós-outras e nós-outres que esse país será mais livre, mais alegre e mais justo.


Entrevista

Como é que se configura isto, de sustentar uma revolta? Parece-me que essa noção de sustentação é muito clara, porque também fala muito da forma como construímos a nossa leitura feminista de como se sustenta a vida, mas também de como se sustenta esse desejo de outra vida. […] esse sentido de greve como temos apoiado, como greve feminista, o chamado para colocar no centro a questão da socialização do cuidado como condição para garantir a participação de todos e de todas.

Javiera Manzi é socióloga e arquivista (Universidad de Chile), educadora e pesquisadora independente. Em seu trabalho, ela se concentra nas interseções entre arte, política e movimentos sociais e integra o Coordinadora Feminista 8M.

Javiera realiza com destreza conexões entre lutas passadas, presentes e futuras desde o Chile, que também encontram aproximações e distanciamentos em relação a processos em territórios por toda nossa Abya Yala. Além da narrativa sob um ponto de vista privilegiado, isto é, experimentado de dentro do processo político chileno recente, Javiera nos coloca em contato com um feminismo antineoliberal e antifascista, capaz de transformar profundamente os modos de se auto-organizar e de fazer política, em escalas micro e macro, e que se mostrou decisivo para a última eleição presidencial chilena. Aqui, falamos de um feminismo que reconhece a importância de ocupar espaços e da urgência de derrotar a extrema direita fascista em âmbito institucional, mas que não se ilude com a ideia de um governo feminista ou de um Estado maternal, como diria Rita Segato, porque, para Javiera, a luta feminista requer essa “abertura permanente: sempre afirmamos que o feminismo está nos processos de construção, é como um processo constituinte, não é como uma constituição final, é como um processo de politização […] e não está encerrado em um governo”. E, por isso, talvez, seja pertinente nos perguntarmos a partir da leitura feminista de Javiera sobre os levantes no Chile: enquanto sustentarmos o desejo de outra vida seremos capazes de sustentarmos a revolta?

Trama Coletiva — Javi, muito obrigada pela disponibilidade de estar conosco. Temos este projeto, que é um esforço de fazer pesquisa, mas também de fazer uma trama, de conhecer as nossas companheiras, de fazer isso para o Brasil. Estamos trabalhando muito com companheiras da América Latina e temos sempre no Brasil um problema com a língua. Por isso, estamos fazendo esse esforço, que são as traduções e o diálogo, para compreender como nos situamos nesses movimentos no Brasil, nessas insurreições. Começando com a tua trajetória, no momento em que começaram as manifestações, o levante em 2019, tu estavas em alguma organização ou em algum coletivo pré-existente? Para sabermos um pouco sobre como esse levante te encontrou, em que momento da organização política tu te encontravas. Tu permaneceste ou mudaste após o levante?

Javiera Manzi — Bom, nós fazíamos parte da Coordenação Feminista 8 de Março no momento do estouro. Eu era porta-voz da coordenadora na época e acabávamos de implementar, em 8 de março daquele ano, o Primeiro Dia da Greve Geral Feminista, que foi também a maior mobilização que havia ocorrido no Chile desde o fim da ditadura, até então. Também fizemos parte desse exercício que convocou de forma tão massiva e também deu um papel muito significativo ao movimento feminista neste século. Foi nessa conjuntura, foi desse lugar onde vivíamos que saiu tudo o que trouxe o levante e a revolta.

T.C. — Então, essa organização, essa coordenação, existia há muitos anos ou era algo recente?

J.M. — A Coordenação Feminista 8 de Março foi formada logo após o dia 8 de março de 2018, depois de ter feito parte de várias causas feministas distintas, em distintos espaços, depois de fazer parte de levantar o que então era a marcha de todo o 8 de março e onde uma história se inaugurou nessa jornada. Essa história é a que começamos a convocar para mobilizar mulheres e dissidências contra a precarização da vida. E aquilo que tem sido central, a luta, a história e o projeto político que temos vindo a canalizar, deu forma em abril a uma das primeiras reuniões e já em maio de 2018 foi constituída a Coordenação Feminista 8M.

Naquela época, havia três objetivos centrais, que eram: primeiro, a inserção do feminismo nos movimentos sociais. Fomos chamadas a desdobrar uma perspectiva que pudesse ativar diferentes espaços, lutas sindicais, comunitárias, socioambientais, de direitos humanos, ir além dessa noção de especificidade feminista, algo como uma agenda particular. Em segundo lugar, fomos chamadas a levantar, a partir daquele momento, um processo rumo a uma greve geral feminista e nos submetermos aos esforços, como percebemos adiante, via Coordenação Nacional de Mulheres, de forma situada, para concluir esse caminho. E, em terceiro lugar, reconhecer que no feminismo havia uma potência, uma força articuladora de lutas sociais, que víamos muito desintegradas naquela época. Assim, foi com essas três orientações que a Coordenação Feminista do 8M se formou em maio de 2018, se construiu e avançou, entre outras coisas, o Encontro Plurianual de Mulheres e Dissidentes que Lutam e uma série de tarefas e processos que entregamos à greve de 2019.

T.C. — Então, nós vemos que começa o levante, e aquele encontro, que é um pouco parecido com o começo das manifestações de 2013 no Brasil, com a questão do transporte público e da evasão estudantil, salvo engano, ocorreu em 18 de outubro de 2019. E nos interessou saber, por essa trajetória que tu mencionas, qual é a relação com a frase que se popularizou nos primeiros momentos do surto, que foi “não são 30 pesos, são 30 anos”. Digamos que há uma ligação com todo esse legado das lutas anteriores que existiram desde o fim do regime até agora, esses 30 anos de transição política. Qual é a relação entre os movimentos do surto de 2019 com as lutas anteriores, as lutas pela democracia ou a transição para a democracia?

J.M. — Sim. Uma das dimensões mais profundas da revolta tem a ver precisamente com esse equilíbrio histórico. Quando dizemos “não são 30 pesos, são 30 anos”, o que está em jogo é um balanço histórico da cidade, o que é uma síntese muito boa porque o que está em jogo é muito evidente, e quando dizemos 30 anos no Chile, estamos falando do pós-ditadura. Estamos falando, então, com muita clareza, que não é mais um desafio exclusivo da ditadura, e vou falar de tudo o que significou sua herança, mas também daqueles que administraram a continuidade do modelo neoliberal, da precariedade que se agrava e se aprofunda nos 30 anos seguintes, décadas com governos de direita e também da concertação dos partidos pela Democracia.1

Então, o que acontece aí é muito significativo porque, de uma forma muito estrutural, surge uma chave política que para nós é fundamental voltar sempre a ela. Porque parece que há uma crítica bastante contundente de algo como uma unidade dessas décadas e que, claro, com todas as diferenças que podemos reconhecer entre governos de direita e governos de centro-esquerda, também reconhecemos nela uma continuidade central, que é a continuidade neoliberal e do quão fundo o país progressivamente foi, não só sustentando uma herança, mas também a continuando e aprofundando. Então, eu digo novamente, é o que sempre dissemos, certo?! É muito interessante como essa conjuntura histórica foi se complexificando, e dizíamos “não são 30 pessoas, são 30 anos” ou “não são 30 anos, são 47” e, claro, reconhecer toda a ditadura aí, ou “não são 47, são 500”, reconhecendo a continuidade colonial do Estado. Então, havia camadas de historicidade e uma temporalidade muito rica nisso. O que surgiu ali, no início da revolta? E junto a isso vem a ideia de que é claro que o levante não vem.

Costumo dizer sempre assim: eclodiu uma revolta para marcar um momento que catalisa ou constitui um acontecimento, mas, ao mesmo tempo, também é importante que não nasça do zero, que haja um longo percurso e um longo processo anterior que o tornou possível. Algumas delas, de forma muito direta e muito próxima, como as Jornadas de Mobilização Feminista daquele 8 de março, que foi a maior mobilização até então e onde também apareceu o que consideramos ser algo que leva o feminismo à revolta, uma ideia muito clara, que é essa ideia de transversalidade. Quando dizemos “a precariedade da vida” é uma forma de dizer “tudo”, uma forma de apontar que essa noção de precariedade, que só é utilizada para se referir ao trabalho, às condições de trabalho em que se é exposto por meio das reformas neoliberais, vimos aqui no Chile, um país onde o neoliberalismo atravessa radicalmente nossa vida, nossa subjetividade e o modo como se constituem nossos espaços mais íntimos e, claro, também o modo como se organiza a vida como um todo, o trabalho, a devastação socioambiental. Enfim, a gente viu ali um precedente bem direto como também foi, meses antes disso, com o assassinato de Camilo Catrillanca,2 que também surge de forma bem espontânea e clara uma resposta ao terrorismo de Estado. E são a essas pessoas que costumamos nos referir quando dizemos diretamente o que aconteceu, mas, também, e de forma mais descontraída, sem dúvida, há longos precedentes, com processos de mobilização geracional, como o Movimento Estudantil, do qual algumas de nós fizemos parte.

Eu fui parte da criação do movimento dos Estudantes Secundários, dos Pinguins,3 assim como do movimento social de 2011, das lutas contra as pensões, do sistema de capitalização individual das AFP,4 que também foi outro ciclo, outra onda de importantes mobilizações que se experimentou no governo de Michelle Bachelet e, assim, no início dos anos 1990, as primeiras formas de rearticulação de um Movimento Mapuche. Então, podemos reconhecer que houve muitas camadas de mobilizações, algumas massivas, outras mais perpendiculares, mas também muito ativas as resistências e as lutas socioambientais ou de diferentes territórios, de modo que, eu diria, o que habilita a revolta é uma possibilidade de conectar tudo isso a nível nacional e de reconhecermos que todos faziam parte, sem dúvida, de algo que queria ser o mesmo, que era uma necessidade de uma mudança estrutural.

T.C. — Bem, estamos com todo esse legado, a conexão com as lutas anteriores que, claramente, também trazem novas questões. E queríamos te perguntar, então, o que seria uma composição do protesto, a composição da explosão, ou seja, quem está ali presente, quem fazia parte daquela explosão e quais são as principais formas de protesto, as diferentes formas de participar ou de se incluir nessas marcas?

J.M. — Também já dissemos, assim como a greve, com a revolta foram muitas coisas, muito em simultâneo e há uma simultaneidade aí que é muito importante voltar sempre, porque, às vezes, aparece um certo enquadramento que se põe à frente. O mais visível, sem dúvida, foram os dias de mobilização massiva que tomou conta das ruas, do shopping, em particular, que fica no centro da cidade de Santiago, mas essa foi uma das expressões em que a revolta aparece. Nós também dissemos assim, como expressão de uma interrupção da vida, basicamente, o que acontece nas cidades desde 18 de outubro, em Santiago, e desde 19 de outubro, no resto do país, é uma quebra na vida cotidiana, e isso implica muitas coisas, como os fechamentos de ruas, as interrupções da possibilidade de sustentar algo como o trânsito diário, mas, ao mesmo tempo, isso é muito impotente, novamente, escalas distintas.

O que começou a acontecer e, no início, foi isso, o levante aparece todos os dias nas jornadas de mobilizações espontâneas, mobilizações que foram convocadas, primeiramente, para a rua, depois, para o boulevard e, finalmente, chega o 25 de outubro, que é a jornada que ocorre espontaneamente, sem que houvesse uma convocatória centralizada, para a Plaza de la Dignidad, e é quando se constitui, nesse momento, a maior mobilização, essa marcha massiva. Depois, também, se sustenta essa continuidade, todo dia era dia de mobilização, todo dia era rua, todo dia era apoio. A gente levanta todo dia e fala assim “isso prossegue ou não prossegue?”. Uma pergunta e ao mesmo tempo uma certeza. E foi assim que começou a acontecer: primeiro, diariamente, e depois, toda sexta-feira.

Como é que se configura isto, de sustentar uma revolta? Parece-me que essa noção de sustentação é muito clara, porque também fala muito da forma como construímos a nossa leitura feminista de como se sustenta a vida, mas também de como se sustenta esse desejo de outra vida. A par disso, vimos muitas formas, vimos como surgiram as assembleias territoriais, que foram as que nós também chamamos a levantar distintos territórios, que se convocam e se articulam com diversos objetivos, não tanto para apoiar a mobilização dos bairros, mas também a discussão de bairro, a deliberação política territorial e, por sua vez, até os termos que poderíamos criticar. Porque rapidamente vimos como um governo declara guerra ao povo, a militarização imediata dos cidadãos e o que isso trouxe em termos de violação sistemática dos direitos humanos. A principal ferramenta com a qual nos reunimos também foi essa, essas assembleias e esses tecidos. Dali, são coordenados grupos de direitos humanos, que também coordenam brigadas de saúde, o que foi outro aspecto muito importante para apoiar e cuidar durante a mobilização. Diferentes áreas também começaram a se articular como formas de coordenação transversal. Nós participamos de uma, que é a Unidade Social, que teve um papel bastante significativo na articulação de vários movimentos, mas também vimos espontaneamente várias outras coisas, que a cidade inteira estava coberta de riscos, de grafites, de todos os slogans. Uma cidade altamente higienizada como Santiago, de uma hora para outra, estava cheia de riscos na rua, e isso também era muito potente.

Alguns dias depois, vimos como, no marco da mesma jornada, aconteceu de se ver algumas comunidades, muitas que avançavam na recuperação territorial, depois, no centro de Santiago, as áreas devastadas pelo extrativismo e também por uma seca que é consequência desse saque, queima de plantas, foram devastadoras em termos de água e, ao mesmo tempo, vimos como caíram alguns dos principais monumentos colonizadores, sobretudo nas cidades do sul e do norte do país. Foi isso, como uma possibilidade radical de imaginar e de ter que explodir de todas essas formas, éramos parte da mesma coisa. Acho que isso foi algo como uma experiência que, talvez, desmantelou de modo tão profundo a forma como se tem organizado essa subjetividade neoliberal, que fragmenta os muitos e dispersos povos, sempre constrói diferenças tão conciliáveis, como entre identidades de setores, obviamente, algo como vozes que não podiam se coordenar e, aqui, sem a necessidade de uma coordenação estabelecida, se construiu essa noção no plural, e renomear os municípios daquela época, o que também já era uma necessidade há muitos anos. Além de renomear os povoados, o que é muito bonito, há algo ali como uma memória profunda que aparece, tanto que ressurge uma das primeiras canções, que é o grito “o povo unido jamais será vencido”, da Unidade Popular, mas, ao mesmo tempo, esse povo se torna plural e é como a afirmação plurinacional.

T.C. — Que lindo, obrigada. É uma aula. É incrível como podes fazer essas conexões. Então, vimos que, como disseste até agora, há uma conexão profunda com lutas históricas ou trajetórias históricas dos movimentos, o passado, a memória dos povos originários, ou seja, questões que são antigas e que são interpretadas e reposicionadas no contexto de 2019. Existe alguma questão que surge em 2019 que não seja uma demanda histórica dos movimentos sociais no Chile? Que papel o feminismo desempenha no contexto de 2019?

J.M. — Bom, creio que há várias coisas. Primeiro, eu disse antes, o que tem a ver com essa experiência é que vivemos uma revolta, um ciclo de mobilizações massivas, o movimento feminista tanto no Chile como no mundo, mas também vivemos com o dia da greve feminista, e além dos movimentos feministas, que também aconteceu nesse mesmo ano com as marchas estudantis, ou seja, houve uma experiência de mulheres e de dissidentes que foi atravessada por esse feminismo, que, ao mesmo tempo, parece-me importante dizê-lo, é uma forma de feminismo que começa a emergir com muita força com chaves para uma demonstração muito ampla de massividade, mas também de uma radicalidade na forma como se estabelecem ligações que me parecem muito significativas, quer dizer, com que rapidez foi feita uma luta feminista que se diz antineoliberal e antifascista, plurinacional. De alguma maneira, é o feminismo que levanta, e isso é muito importante, como uma tradição no Chile, ou seja, como um repertório de lutas que no Chile foi proibido. No Chile foi proibida a greve; tendo direito à greve, quem ia falar em greve ou não, eram as feministas.

Também me parece que o feminismo aparece de formas um tanto inesperadas. Quero dizer com isso: quais foram os temas feministas que apareceram na greve ou na revolta? Essas outras formas também apareceram, essa capacidade de articulação massiva apareceu nas ruas, dizer que a mobilização pode ser muitas coisas, um modo de ser da consciência dos corpos dentro dela. Apareceu com alguns símbolos mais óbvios e, por exemplo, com o lenço verde, ou seja, primeiro se veem lenços verdes nas ruas, é o Wenufoye Mapuche (a bandeira Mapuche). É muito bonito, porque o lenço se tornou uma forma de nos reconhecermos na rua e gerarmos estratégias para nos cuidarmos, inclusive para proteger o rosto do gás lacrimogêneo. Portanto havia uma presença feminista de muitas formas, muitas escalas. E é muito interessante como isso ativa coisas diferentes, quando nós chamávamos, uma das primeiras declarações, um dos primeiros chamados foi para assimilar que depois do 18 de outubro, o que vinha era um chamado à greve articulado, amplamente mobilizado, e que a greve teria que ser isso que nós feministas dissemos, que não é só uma coisa, que não é só a greve reprodutiva, é a greve em um sentido bastante geral, como temos construído. Era dizer que as convocações à mobilização e à realização de assembleias territoriais também foram formas de sustentar, por exemplo, a socialização do cuidado no contexto da mobilização, como as pessoas se mobilizam e se cuidam, como participam dos espaços de revolta quando, por exemplo, nas escolas se fecham os espaços, os jardins, como garantir que esses cuidados estejam também no centro da questão mobilizadora das pessoas e também ao nível das formas políticas que emergem como essas assembleias territoriais. Houve um chamado explícito que fizemos nas declarações para levantar a voz, para não voltar a ceder esses espaços a outros e para ter uma participação ativa e protagonista nesses espaços deliberativos.

Então, eu diria que, pelo menos, essas quatro chaves, ou seja, esse sentido de greve como temos apoiado, como greve feminista, o chamado para colocar no centro a questão da socialização do cuidado como condição para garantir a participação de todos e de todas, a questão de como transformar os termos dessa que vem sendo substituída, ultimamente, a política, as formas de uma deliberação, que não volte a subalternizar a voz, como a participação de mulheres e dissidentes nela, e a presença clara e evidente nas ruas dos nossos próprios slogans, dos nossos gritos, das nossas imagens, dos nossos lenços, como formas de estarmos presentes. Isso tudo também mudou a face histórica das mobilizações de esquerda e a forma como se organizava, de alguma forma, uma certa tradição política anterior, e acho que também há aí algo como uma espécie de nova imagem que também desarma essa coisa mais monolítica e também conservadora de outros contextos de mobilização.

Creio que tem algumas dessas chaves centrais e, sem dúvida, em termos concretos, penso que a última, eu acho que vai ganhar muita força depois, com a ação do Las Tesis,5 uma forma muito profunda de ativar a mobilização como um todo. O que permitiu isso também é muito importante no sentido de como a crítica, a denúncia da violação sistemática dos direitos humanos, a denúncia de formas particulares da violência política sexual, a insurgência ao Estado e à institucionalidade, estava também acompanhada de uma denúncia que atravessou os espaços organizados populares, o que significou também colocar em evidência experiências de violência em diferentes escalas e que não aconteceram historicamente, algo como isso se fala depois. Para poder denunciar ao mesmo tempo o Estado, os responsáveis, a política, mas também o companheiro, os pais, os irmãos, as formas de vivências mais íntimas de abuso e violência, mesmo dentro dos espaços políticos organizados. Foi muito importante, porque mudou os termos da ordem em que se organiza, principalmente, a esquerda.

T.C. — Qual é a relação desses movimentos, do levante, da organização de vocês com o processo eleitoral e, depois, com a recente eleição do Gabriel Boric? Ou seja, como os movimentos sociais que vieram do levante de 2019, também a Coordenação do 8 de março, se relacionam com esse processo eleitoral?

J.M. — Então, creio que haja uma questão muito séria aí. Sobre o segundo ponto, nós nos organizamos para que o Gabriel Boric vencesse, mas nós nos organizamos porque, e digo isso como coordenadora do 8M, como movimento feminista, nos organizamos no segundo turno porque vimos o que significava isso que aconteceu no primeiro turno com Kast, ou seja, o candidato de extrema direita fascista, com a primeira maioria, e nós, de fato, nesse mesmo dia, devo dizer, a primeira volta foi uma campanha que obviamente não convocou movimentos e organizações, não há nenhum movimento que tenha feito uma declaração pública de apoio ou um apelo explícito ao voto, não foi uma batalha que escolhemos, que as organizações decidiram tomar como sua. Foi somente no segundo turno, depois daquele primeiro dia, que nós, como no Brasil, das feministas no Brasil, mostramos que “Ele Não” não era suficiente, e a negação da votação foi bastante clara, então, tivemos que convocar explicitamente para votar em Gabriel Boric. Isso foi na segunda-feira, após o domingo das eleições. Na segunda-feira mesmo tomamos essa resolução como Coordenação e na quarta-feira convocamos o primeiro ato de massas após o primeiro turno, esse ato foi convocado pela Coordenação feminista, mais de 700 mulheres e dissidentes da Universidade de Santiago pessoalmente, mais de mil que se reuniram virtualmente em todo o país e todas as organizações de lá leram justamente palavras sobre o que se havia pensado, as leituras que fizeram, porque são movimentos muitos rápidos. São movimentos que são certezas muito potentes, que se constroem com rapidez e agilidade, mas nem por isso são menos reflexivos; são grupos organizados que nunca tinham defendido diretamente participar de uma eleição nestes termos.

A Coordenação Feminista do 8 de Março fez uma convocação explícita, muitas de nós fomos votar, claro, mas não era algo que havíamos convocado politicamente como bandeira, mas naquele dia dos resultados, nós realizamos uma assembleia extraordinária, naquela mesma noite. Naquela noite decidimos que íamos convocar para mobilizar voto e no segundo dia decidimos que tínhamos que ser explícitas, porque vimos a urgência de derrotar a extrema direita, que representava uma ameaça direta às vidas de mulheres e dissidentes. Desde então, levantamos um processo de campanha muito amplo em autonomia, mas muito claro, explicitamente, uma convocação ao voto, e que depois demonstrou que esse foi justamente o voto de mulheres populares, da periferia da região de Santiago e de diversas regiões do país que gerou a mudança, que ampliou a base de votos de Boric.

T.C. — Na verdade, a gente já viu que foi determinante e nos parece muito boa essa relação que eles têm com os movimentos no Brasil, que tiveram o resultado oposto. Creio que, provavelmente, o fato de o processo eleitoral chileno ter ocorrido depois do levante fez uma certa diferença em relação ao processo eleitoral brasileiro que aconteceu depois, digamos assim, de um impeachment fraudulento ou uma mudança de comando do país, uma estabilidade institucional, ou seja, não uma estabilidade do Estado baseada nos movimentos, mas uma estabilidade baseada nas instituições democráticas em si mesmas, certo?! Uma perversão, uma corrupção de tudo, essa é a minha resposta possível ao modo diferente de como tudo nos aconteceu, com resultados muito diferentes, por azar. Outra coisa que nos interessa muito é o processo constituinte da nova Constituição e a declaração do Chile como Estado plurinacional. Então, qual seria a relação da Coordenação Feminista do 8 de Março com esse processo novo e histórico do país?

J.M. — Bem, hoje fazemos parte da Convenção, aliás, trabalho diretamente na equipe da Alondra Carrillo e foi algo que decidimos participar ativamente, não só apostar com uma ou duas candidaturas, mas fazer listas por todo o país, listas de independentes, de organizações sociais que foram construídas com um movimento feminista articulado. Assim, a primeira coisa seria dizer que a par do movimento de decidir apelar à votação aberta para a aprovação de uma nova Constituição, numa altura em que não foi uma decisão tão fácil porque os termos em que se decidiu e nos termos em que se delimitou o processo constituinte, por meio de um acordo pela paz e pela nova Constituição, em 15 de novembro, foi um momento muito crítico, muito criticado também por setores mobilizados justamente por ter surgido em um contexto de estrondosas mobilizações e também de fortíssima resposta repressiva do governo, que foi também os termos em que, a nosso ver, se construiu uma possibilidade de impunidade que se mantém até hoje, com tudo o que aconteceu impunemente nos casos de violação de direitos humanos, os mais de 600 casos de vítimas do trauma ocular, a repressão política que ainda se sustenta neste país, são coisas que ficam e que, de alguma forma, chega ao fim com o governo Piñera, da forma como aconteceu em seus quatro anos com certa normalidade.

Também é algo que achamos muito importante não deixar de expor, e digo isso porque, no fundo, decidimos assim, e com tudo isso, numa época em que as organizações ainda não haviam tomado essa decisão, decidimos chamar abertamente, fazendo campanha para sua aprovação e depois fazendo campanha para angariar constituintes do movimento social. De dentro da convenção, hoje, conseguimos articular um movimento transversal, um coletivo feminista, que é um grupo de constituintes feministas de diferentes setores políticos, de (se autodenominam de dentro) diferentes coletivos e que conseguiram avançar na construção de normas conjuntas que estão traduzindo de forma muito concreta muitas das nossas reivindicações históricas do movimento em norma constitucional. Então, isso tem demonstrado uma grande eficiência em termos de que, talvez, de todas as coisas que vão acontecer com esta nova Constituição, venceremos muitas grandes batalhas, perderemos outras, mas há uma certeza de que essa é uma Constituição que vai sair com um selo feminista muito forte, será uma Constituição que vai garantir o avanço rumo a uma democracia paritária, ou seja… e assim dissemos, não é uma paridade binária homem-mulher, mas uma paridade que supõe um piso e não um teto na participação das mulheres e, com isso, pelo menos 50% de participação das mulheres e dissidências de gênero em todos os órgãos do Estado. Com isso, também outras, como o reconhecimento do trabalho doméstico e de cuidado, os direitos sociais e reprodutivos, incluindo, claro, a interrupção voluntária da gravidez e isso é algo que será votado amanhã, a educação sexual integral, o direito a uma vida livre de violência, também a perspectiva feminista sobre o direito ao trabalho em termos mais transversais, o direito à autonomia. Também avanços muito significativos em termos de justiça feminista e que, por exemplo, perpassem a abordagem jurisdicional sob uma abordagem de gênero. Então, a gente vê que esse coletivo que se forma lá dentro também conseguiu muito concretamente construir e montar as alianças necessárias para que todas essas propostas sejam votadas e aprovadas. Então, esse também é o caminho de fora para dentro, sempre há um pouco de dentro para fora, no sentido que, para nós, é muito relevante que tudo o que se articula dentro da convenção seja sempre acompanhado de um transbordamento mobilizador do lado de fora e, por isso, foi tão importante o 8 de Março deste ano, porque marca a retomada das mobilizações, do estar de volta às ruas, do reocupar massivamente o espaço público no contexto de um processo constituinte único em muitos aspectos. Por ser o primeiro processo constituinte paritário no mundo, é também o primeiro em que se vive esse tipo de mobilização feminista na América Latina, e também é um processo constituinte que vivemos com uma pandemia, o que também é muito relevante, porque no fundo impediu, de alguma ou outra maneira, talvez, os termos em que gostaríamos que o processo fosse massivamente apoiado. Porque, bem… Estamos vivendo em contextos tão singulares como uma pandemia.

T.C. — Agora estamos nos dias de mudança de comando, o processo constituinte está em pleno andamento, é um novo momento para o Chile, certo?! Queríamos saber quais são as expectativas para o futuro depois de todas essas etapas que tu descreveste tão bem, o levante, as mobilizações, depois a relação com o processo eleitoral, com o plebiscito, com o processo constituinte que segue forte… Quais são as expectativas nesse cenário e quais são os próximos passos?

J.M. — Como vocês já sabem, está chegando o plebiscito de saída. Também estamos muito preocupadas em como vamos conseguir realizar esse processo porque, pela primeira vez desde 2012, vai ser uma eleição com voto obrigatório, e no Chile, hoje, quem tem os recursos e toda a mídia, é claro, é a direita e os setores políticos que têm resistido a esse processo, que também estão crescendo. Então, vamos levantar como campanha feminista de solidariedade internacional, eventualmente, para arrecadar fundos, para poder construir esse processo que vêm crescendo e para poder avançar na implantação territorial necessária requer mídia etc., então, eventualmente, também haverá campanhas. Se vocês puderem nos apoiar, vamos propor estratégias de arrecadação de fundos, porque há muito pouco tempo e é fundamental no terreno, para o Chile, penso que para o mundo e para a América Latina, em particular, que ganhemos e que um processo como esse não fique estagnado no final do seu exercício.

T.C. — Uma questão que se conecta, e que é muito importante dizer, é como manter esse trabalho dentro e fora desse contexto que parece muito novo? Como manter essa colaboração com o processo, mas com autonomia política. Uma questão que nos parece importante é como manter a ocupação das ruas, essa chamada que o Ni Una Menos6 na Argentina também fez, como nos convocar para manter as ruas para nós?

J.M. — Sim. Bem, uma das principais razões pelas quais convocamos o apoio aberto nesse segundo turno e para a campanha foi porque entendemos que havia a condição de possibilidade de continuar afirmando a nossa própria alternativa. Não é que nos sintamos diretamente parte desse governo, aliás, muitas de nós não… algumas companheiras claro que sim, outras não, e a verdade é que essa autonomia nos parece essencial porque constrói a sua própria voz e essa voz pode ser expressa de diferentes maneiras. Uma, claro, é através das mobilizações, e é por meio da organização nas escalas que já estamos envolvidas, para retomar espaços que também foram muito fragilizados, como o movimento estudantil, o movimento sindical, o movimento de povos campesinos, como lutas socioambientais, lutas de migrantes, ou seja, cada um desses espaços que hoje são centrais também está presente. E isso é uma coisa que a gente tem buscado como alternativa dentro da Comissão do Sistema Político, onde estão sendo discutidos os termos da futura representação política, e aí nós construímos uma proposta, que é a de levantar a possibilidade de que não existe apenas a forma partido, mas a forma movimento social, que é algo que existe em outros países, como o Equador, e que dessa maneira garante que os movimentos possam ter uma participação direta e, com isso, uma representação que não está subordinada a um partido político ou a outra estrutura para poder garantir espaço em diferentes escalas, do conselho de bairro ao parlamento regional e, eventualmente, ao congresso.

Assim, nos parece muito importante que, no fundo, as mudanças que hoje avançamos em termos constitucionais não sejam apenas, exclusivamente, em termos de conquista de direitos sociais, mas de forma mais ampla, em mudar os termos do que devem ser as lutas políticas que também estão chegando. E com isso, os termos em que vamos disputar em diferentes espaços. Isso, a meu ver, é muito relevante, por isso, diria que, nesse novo ciclo, uma das tarefas vai ser conseguir garantir essas condições, avançar, fortalecer aqueles espaços organizados que surgiram anteriormente, mas também tiveram muitos no contexto da revolta que abriram uma nova política, que achamos muito importante continuar a afirmar. Também temos uma leitura crítica da ideia de algo como… Não acreditamos que exista um governo feminista ou uma constituição feminista, nem acreditamos em um Estado maternal, como diria Rita Segato na Argentina, porque nos parece central afirmar que não é possível uma constituição como uma Carta Magna contribuir exatamente com o que para nós é central da luta feminista, que é essa abertura permanente, essa chave para construção que não é resolvida exclusivamente de maneira institucional. Demonstrar, também, com isso, a ideia de que é possível resolver ou simplesmente identificar tão claramente como um processo, sem dúvida, de mudança e de transformação. Muitas de nós podem se sentir mais ou menos parte dele, mas também reconhecemos que, hoje, é muito importante a mudança com esse novo governo, assim como o processo constituinte não nos fez perder a necessidade de afirmar que sempre há algo além do que essas alternativas oferecem. Por isso, sempre afirmamos que o feminismo está nos processos de construção, é como um processo constituinte, não é como uma constituição final, é como um processo de politização, esses ciclos políticos, e não está encerrado em um governo. Também não acreditamos que um Estado garanta os termos do cuidado, como diz Rita [Segato], acho que tem aí uma questão muito importante, essa desidentificação, que não é só uma negação desses projetos, mas sim afirmar que tem muito mais e um depois, que é muito relevante politicamente. É como afirmar aquela ideia do transbordamento feminista sempre nos processos, desde que não sejam capturados em uma institucionalidade. Nos parece importante afirmar isso.