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Violeta, de Alberto Martins

Violeta, de Alberto Martins, é a terceira e última parte da trilogia iniciada em A história dos ossos (Editora 34, 2005). A novela estabelece uma montagem possível de uma história familiar fragmentária, comida pelo tempo e pela memória. O leitor que acompanha a ficção de Alberto vai identificar que o enredo principal do livro é mencionado no segundo volume da trilogia, Lívia e o cemitério africano, pelo personagem “menino” que afirmava que seu avô, “antes de tornar-se negociante de imóveis, trabalhara no teatro ou no circo pintando painéis”. Em Violeta, o avô ganha nome, Raul, e trabalha como iluminador e cenógrafo da peça A pulga, de Vladímir Maiakovski, no teatro do Grêmio Recreativo dos Portuários de Santos, em 1946. Nesse contexto, ele conhece então Violeta, atriz e sobrinha do diretor da peça.

Diferentemente dos livros anteriores, são dois os narradores que contam a história de Violeta. O primeiro, que finalmente é entendido como o mesmo narrador dos volumes anteriores, vai até Santos em busca de material e testemunhas para escrever sobre o passado heroico de seu pai. O segundo emula o próprio pai atuando no período de sua vida investigado pelo filho. A ficção do segundo narrador complementa e confere veracidade à documentação levantada pelo primeiro e o mesmo ocorre de forma inversa. Por conta desse jogo, percebe-se finalmente em Violeta que, na trilogia de Alberto Martins, assim como nos mitos gregos, as memórias mais profundas são as menos factuais e as mais arquetípicas.

Ao mesmo tempo em que essa “mitografia familiar” é apresentada ao leitor em episódios gloriosos — como a montagem da peça de Maiakovski (em mais uma tentativa do narrador da trilogia em querer apresentar uma desmentida vanguarda artística modernista da cidade de Santos) —, o que resta ao texto não é o falhanço em estabelecer a plenitude de sua mitografia, mas a intenção bastante everemista (à moda do filósofo alexandrino Evêmero, do século IV a.C.) de que os mitos ancestrais são tão-somente reminiscências confusas de humanos nada heróis e suas façanhas na terra.

Outro gesto distinto que apura a forma concisa de Violeta é o trato estabelecido com o leitor de que a onisciência do narrador é uma falácia. A fragmentariedade do depoimento dos dois narradores que contam a história do romance em diferentes épocas não perturba (no mal sentido) o leitor, pelo contrário. A apoteose dos personagens da novela é constantemente sufocada por eventos extraordinários. Suas memórias se degeneram à mercê de seus esforços em montar os cacos que restaram delas. Dada a limitação de reminiscências dos eventos, os narradores acabam por apresentar integralmente todos os destroços da história, numa ordem eficaz para a leitura, deixando claro que as lacunas em Violeta não foram fabricadas por eles. As lacunas, afinal, são as reais antagonistas da narrativa, o problema a ser atenuado ao longo do livro. As trajetórias e as miradas para as ruínas dessa história, exercidas pelos dois narradores e seus personagens são também grandes colaboradores do preenchimento deste espaço antes ocupado pela desmemória. Conforme Sofia Nestrovski afirma já na orelha, Violeta apresenta-se como um quebra-cabeça que não se monta. Uma imagem que remete diretamente aos princípios da arqueologia, a arte suprema de contar histórias a partir de suas ausências.

Violeta é um romance arqueológico. Seu grande mérito é exercer a fluidez de sua narrativa contando com fontes extremamente limitadas. Diante de tudo isso, o talento de Alberto Martins dá mais uma prova da soberania de sua ficção, ao inventar sua própria arqueologia sentimental sobreposta, como nos livros anteriores, à história social da cidade de Santos. Curiosamente, a trilogia foi oferecida aos leitores num espaço estendido de quase vinte anos. O que condiz, em seus longos hiatos de continuidade, com os episódios fragmentados dos três volumes e seus respectivos signos: sótãos, fósseis, incêndios, personagens desmemoriados, amores perdidos, etc., sempre contrapostos pela profissão de seus personagens, cada uma a seu modo (bem-sucedida contrabandista de fósseis, arquiteto desencaminhado, artistas malogrados) servindo de arquivista de um passado que insiste em ser efêmero.