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Temor humor

Sobre Retratos fantasmas, de Kleber Mendonça Filho

Díptico, Daura Campos

A primeira vez que eu vi o Exorcista foi numa televisão de 14 polegadas, e eu devia ter uns 9 ou 10 anos. Não sei por que motivo eu acreditava que o filme era uma comédia. Lembro de rir em voz alta, enquanto por dentro eu estava apavorado. Eu nunca me esqueci dessa reação que eu tive ao Exorcista. Meus pais na sala, eu gargalhando no quarto, feliz e aliviado porque eles ainda estavam acordados.

Eu nasci em 1987, o filme é de 1973, e começou a ser exibido pelo SBT em 1989. Ou seja, ele se tornou uma novidade na televisão brasileira quando não enganava mais ninguém. Quando digo isso, quero dizer que os efeitos especiais já eram nitidamente efeitos especiais, e não mais um ilusionismo realista. O que é interessante na reação que eu tive é que o riso não apagava o terror. Ele só ficava mais escondido, soterrado sob uma camada de humor. Por quê? Porque o trunfo dos filmes de terror não é o que eles mostram, mas o que eles não mostram.


Retratos fantasmas, de Kleber Mendonça Filho, se parece com um bolo de terror com duas coberturas, uma mais grossa, carinhosa, e outra mais fina, de humor. Por outro lado, quando lembramos que o filme é uma carta de amor — não apenas a Recife e ao cinema, como também à mãe de Kleber — podemos reconsiderar o sabor do filme: seu recheio é romântico, com uma camada mais grossa de humor e uma pequena cobertura de terror meio amargo. E se passamos o filme em retrospectiva, desde a última cena até a primeira, temos um filme mais parecido com os bolos de Tom Zé (que abre e fecha o filme com “Happy end”): recheio de humor, uma grossa camada de terror e aquela crostinha de amor que dá para ver por fora. Ouçam de novo a música “São são Paulo”, de 1968. Está num disco-ensaio que em alguns pontos se encontra com o filme-ensaio de Kleber.

Eu estou falando de bolo porque o filme de Kleber tem um sabor muito característico. Ele é doce-amargo. Ao mesmo tempo. E é essa ambivalência que você experimenta enquanto acredita que está vendo um filme entre a ficção e o documentário.


Retratos fantasmas trabalha com um extenso material de arquivo, pessoal e público, procedimento típico da tradição do filme-ensaio na qual esse longa se inscreve. Kleber alterna sem hesitação entre as imagens que foram captadas com diferentes técnicas. Amadorismo e profissionalismo se mesclam (como na própria história do cinema, aliás, também composta pela longa trajetória dos filmes familiares, e como a história da poesia, composta por livros não publicados que apodreceram nas gavetas das adolescências apaixonadas).

Fotografias com pequenos pontos de luz, trechos de filme VHS, em super-8, outros filmados em boa qualidade para os seus filmes, fragmentos de longas e curtas de outras pessoas, tudo isso se intercala enquanto a voz em off de Kleber comenta as imagens.

A seleção do que entra no filme é organizada num eixo triplo, que é também o eixo narrativo do filme: a história de Kleber como cineasta e produtor de imagens; a história de Recife; e a história do cinema. É como se História(s) do cinema de Jean Luc-Godard se encontrasse com Daguerreótipos de Agnès Varda. E com um toque de amadorismo, no melhor sentido da palavra. No sentido de uma atividade que é feita com amor, fora do lugar do especialista. Esse eixo triplo é o critério de seleção de um arquivo a um só tempo público e sentimental.

Quanto ao amadorismo, podemos percebê-lo em certas escolhas de Kleber. Não apenas na exibição de suas filmagens amadoras — como no pequeno retrato que faz de Alexandre, o projecionista que amarra o filme com uma “chave de lágrimas” (a expressão é dele) — mas também nas declarações de amor. E a escolha mais significativa do amadorismo de Kleber é a inserção de “Meu sangue ferve por você” para introduzir suas meditações sobre os cinemas de rua de Recife.


Retratos fantasma tem uma hipótese de fundo: “os filmes de ficção são os melhores documentários”. A frase é sussurrada por cima de uma cena de Eisenstein, um curta pernambucano de Leonardo Lacca, Raul Luna e Tião, que Kleber recupera em seu filme. Parece que Kleber revelou, em algum debate recentemente, que a frase não está no curta original.

A hipótese é boa, mas ela esconde uma tese mais poderosa do filme: a de que a história pode ser escrita como um filme de terror. O que é importante nos filmes de terror não é o que eles mostram, mas o que eles não mostram. É o que não vemos que nos assombra.

Eu queria explicar isso melhor, mas, como não consigo, vou contar de quando encontrei o amigo e poeta Gabriel Gonzalez há umas duas semanas em Botafogo. Ele estava animado porque tinha assistido à mostra sobre os filmes do Kleber no cinema Estação Botafogo, bem ao lado do metrô. Àquela altura eu não tinha visto o filme. E ele me disse: vá rever toda a filmografia do Kleber, mas faça isso depois de ver Retratos fantasmas. Tudo poderia ser reorganizado em torno da ideia de assombração. Bem, o Gabriel escreveu esse ensaio, sobre Kleber e a assombração, vá ler quando sair.

O que apreendi da conversa com o Gabriel também foi o seguinte. Olhe bem Retratos fantasmas. Reveja a filmografia de Kleber. O som ao redor e Bacurau são menos distantes um do outro do que você pensa.


Considere um poema de Augusto de Campos de 1970.

Um poema feito de duas palavras. “Amor” e “morte”. Essas palavras se chocam e de seus estilhaços surgem outras. Uma corrente de ar vaza por fora do triângulo. Dentro cresce a morte. A morte-mor. Quando falta ar, aparece o aglomerado amortemor.

O poema cita e se contrapõe a outro poema minimalista de nossa tradição, de 1927:

Amor
humor

A morte-mor de Augusto de Campos evoca o fragmento das palavras “a-mor” e “hu-mor”, que compõem o título e o único verso do poema de Oswald de Andrade. A primeira e a última vogal se alternam na transformação alquímica da palavra. O amor é algo menor. Essa é a graça da manutenção do fragmento “mor” que acompanha os vocábulos.

Você não pode ocupar esses dois poemas ao mesmo tempo. Mas o filme de Kleber pode. Sidney Magal também. Você já reparou como a introdução da música “Meu sangue ferve por você” é de suspense?


O que a escrita do ensaio, a escrita da história e a escrita de um romance policial têm em comum? Eles fazem você ver mais coisa onde você achou que não tinha nada. Olhe esse fragmento de azulejo rachado, mas olhe bem; agora escuta que eu vou te contar uma história sobre isso.


O que me fez chorar no filme de Kleber, no entanto, foi seu amor por sua mãe e pelas ruas de Recife, corporificadas no carnaval das ruas abandonadas do centro, de onde a grana foi embora, segundo ele.

O Aldous Huxley propõe que todo ensaio se articula numa tríade composta por três pontos fundamentais de escrita: a biográfica, do eu; a da experiência pública, isto é, sobre o que o ensaio fala; e a abstrata-conceitual, o pensamento mobilizado nessa escrita propriamente dito. A divisão é arbitrária, mas é divertida o suficiente para testarmos aqui.

Depois de pensar bastante sobre o filme de Kleber eu não tenho tanta certeza ao afirmar que ele é sobre isto ou aquilo. Mas se ele fosse um filme de amor, eu diria que no polo biográfico lemos sua escrita sobre a mãe; no polo da experiência pública, um texto sobre os cinemas de rua de Recife, sua desaparição e suas saudosas personagens amorosas (como o projecionista Alexandre); e na dimensão abstrata-conceitual, uma teoria do cinema como a arte-fantasma. Quer dizer, o cinema não produziria imagens, mas presenças. Essas presenças se dirigiriam ao futuro. E deixariam muita saudade. Isso explicaria o melodrama que Kleber parece abraçar. O cinema como arte da saudade. Pense nos filmes caseiros, amadores.

Mas tenho a nítida sensação de que estou deixando muita coisa de fora, de que não dá pra ver direito sobre o que esse filme é. Quando você pensa que está vendo a coisa, a coisa está bem atrás de você.