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Um lugar para EO

Comentário ao filme EO, de Jerzy Skolimowski

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F = ma, Daniel S. DeLuca

O céu é vermelho intenso. Em ângulo baixo, a contraluz desenha a figura de um jumento diante de um aerogerador. Espíritos modernos decerto se recordarão de Dom Quixote, ainda que o cavaleiro da triste figura não possa ser divisado no quadro. No chão, uma poça de água vermelha, em um mundo todo vermelho, reflete o catavento afiado da turbina eólica, que gira. Um pássaro cai morto em cima da água escarlate. Definitivamente não estamos em 1605. Mas também não estamos em 1966, ano do lançamento de A grande testemunha (Au hasard Balthazar, Robert Bresson). O calendário marca 2023, o Relatório Síntese da 6ª Avaliação do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (AR6) foi divulgado em março e os pássaros não cessam de cair sobre poças de sangue.

EO, assim nomeado por causa de seu relincho-articulado, “iiiiii-óoooo”, o protagonista do filme de Jerzy Skolimowski, foi interpretado por um coletivo asinino, a saber, Hola, Takko, Marietta, Ettore, Rocco e Mela. Eles passam, um para o outro, o fardo e o papel de serem um povo-voz quase sem voz, tornando-se atores e atrizes de rosto (a proporção de tela mudou de 2,39:1 para 1,5:1, esta mais apta a enquadrar uma cabeça de jumento) e corpo inteiro que não se permitem, contudo, capturar. Seu relincho diz também “io”, “eu” em italiano, onde o filme termina. Hola, Takko, Marietta, Ettore, Rocco e Mela tornam-se indiscerníveis mas não homogêneos, jamais idênticos, tornam-se EO, um enunciado-mais-que-humano, porque algo passa de um a outro. E vem passando há muito tempo. “Um rosto é um conto de terror”, disseram Deleuze e Guattari, mas o rosto era o rosto do Cristo e os animais não fazem parte dessa estória a não ser como possíveis devires. Esse mesmo Cristo, como se sabe, adentrou Jerusalém dias antes de ser crucificado montado em um corpóreo jumento de profecia (paradeiro desconhecido). À deriva nos olhos oceânicos de EO, um conto de terror narra uma história muito mais antiga.

Segundo estudos recentes realizados em Toulouse, na França,1 o Equus asinus, diferentemente de diversas espécies auto ou codomesticadas, teria passado pelo processo de co ou domesticação apenas uma vez, por volta de 5.000 AEC, no que hoje chamamos de Quênia e Chifre de África. Isso significa que, pelo menos 3 mil anos antes de os humanos cavalgarem, os jumentos já conheciam a cangalha no lombo. Humanos e jumentos caminham, literalmente caminham, juntos — ou, muitas vezes, um, sempre o mesmo, transporta o outro — há milênios, possivelmente desde que o Saara se tornou maior e mais árido. Dali, espalharam-se para o mundo inteiro. Asnos são capazes de carregar até dois terços de seu peso, embora a autoridade asinina não tenha podido fiscalizar esse limite; conseguem passar de dois a três dias sem beber água, chegando a perder até 25% de seu peso para a desidratação mas, uma vez podendo se hidratar, recuperam-se rapidamente.2 São resilientes, dóceis, conhecidos pela simplicidade na alimentação (“comedor de molambo e papel velho”,3 como cantou Gonzagão) e, por causa disso, profundamente abusados.

W = Fd, Daniel S. DeLuca

Não existe um nome para alguém do povo de EO ou de seus híbridos induzidos — quando deixados à sua própria vontade, Equus caballus e asinus não costumam entrar em comércio carnal, segundo criadores que ouvi — que não seja também um xingamento. No mundo grego antigo, figuravam na escala mais baixa entre as montarias, sendo considerados estúpidos, glutões, de segunda categoria social e comparados a escravizados e mulheres.4 Nas Metamorfoses ou Pele de asno, de Apuleio, romance romano do século 2 EC, o tratamento dispensado ao protagonista Lúcio quando, por um feitiço desditoso, ele vira-se em asno, é o mais cruel possível. E, ainda que a jumenta de Balãao tenha visto um anjo e falado língua humana, ainda que o jegue seja o único animal não kasher cujo primogênito deve ser redimido, ainda que outro tenha dado refúgio andante em suas costas a Maria até o Egito, ainda que o Cristo, o próprio rosto, tenha sido carregado em triunfo montado em um deles e ainda que Balthazar, até Balthazar, tenha sido batizado, martirizado e tornado santo pastor em meio a ovelhas, nenhum desses feitos jamais impediu que seu povo, que somou um sem número de raças e foi fundamental na construção dos assentamentos e nas inúmeras peregrinações humanas, siga desprezado.

Onze minutos (11 minut, 2015), filme anterior de Skolimowski, continha breves momentos em que o ponto de vista era o de um cão, um dos personagens que a câmera acompanhava e que se reuniam na grande catástrofe final. Em EO, o enredo é muito simples: um jumento de circo, extremamente ligado à sua companheira de cena, uma jovem chamada Kasandra, que o ama de volta, é separado dela devido a uma lei que proíbe animais em espetáculos do tipo. A partir daí, EO passa por diversos donos mas, sobretudo, por diversas situações, à procura de Kasandra. A fotografia é ousada: não procura ocupar o ponto de vista de EO “vendo como um asno vê”. A câmera se aproxima de EO e observa o mundo com ele sem substituir seu olhar, contudo revelando algo que jaz entre seu estado emocional e o de quem olha. Trata-se de um atrevimento — tanto mais quanto consideramos que Skolimowski conta 84 anos — capaz de criar uma estranheza quase disforme que revela não simplesmente a crueldade humana, como já se disse, mas instaura momentos complexos nos quais a coabitação está em jogo.

W = Fd, Daniel S. DeLuca

Um estrobo vermelho feérico abre EO: o espetáculo é uma iteração do antigo vínculo entre mulheres e jumentos, que causou ciúme nos homens no mundo grego antigo e no francês do século XX. Uma caminhada noturna, liberdade e fuga, herdeira direta de Charles Laughton, em que os animais velam as trevas, sentinelas noturnas ao largo de um rio que fascinam e atemorizam EO — ou seria a espectadora? Todo esse esplendor é interrompido por fulgurantes raios verdes, raios lasers que cortam a mais profunda escuridão, prenúncio da Night of the Hunter. Uma raposa é atingida. “É um mundo duro para os pequeninos”, as palavras de Lilian Gish ecoam em algum lugar da história do cinema. EO segue em frente, resoluto. Um voo de drone por entre uma floresta vermelha, em filtro, pós-produção antropocênica de chamas, um círculo do inferno do que já foi vida, EO teme e prossegue. Ele sonha, sonha com Kasandra, com a grama e suas ternuras. Com bolinhos de cenoura. Ângulos tortos de ligeiros quebra-cabeças mais-que-humanos capazes de desestabilizar uma cena corriqueira. A visão do mundo imenso reduzida ao que se entrevê por fissuras. O encontro com os de pior sorte, com quem se demora ou que apenas passam. Enjaulados, barulhentos, desesperados, a respeito de quem o silêncio basta para inferir a origem do medo e o destino. Acompanhar os jumentos no seu ritmo, olhar com olhos de câmera nos olhos dos jumentos, que gentilmente devolvem o gesto, de modo profundo, profundamente trágico e belo.

EO diante de uma barragem, o fluxo de água feroz e controlada (controlada?) assemelhando-se a um céu ora escuro, ora cheio de nuvens. Há ainda eixos que garantam o que está embaixo e o que está em cima? E o que faz um jumento ali? Mas a pergunta não seria, antes: por que há uma barragem ali? Em 1951, Albert Lamorisse que, seis anos depois viria a realizar o clássico O balão vermelho (Le ballon rouge), dirigiu um filme protagonizado por um jumento, um filhote, com muitos jumentos no elenco. Bim (Bim le petit âne), portador de orientalismo extremo, conta a estória de uma ilha indiana (ou oriental) na qual cada menino possuía um pequeno asno, a quem amava e era amado. No clímax do filme, é preciso salvar Bim, o mais belo de todos, de açougueiros que já o haviam embarcado com a intenção de levá-lo ao continente e matá-lo para fazer salame. Toda a ação final se dá no mar, Bim é salvo e meninos e jumentinhos vivem felizes em seu idílio. Como se sabe, os açougueiros do filme não cometeriam nenhum ato incomum: a carne de equinos é consumida há muito tempo por animais humanos. O tema de seu abuso, transformação em salsicha, morte por exaustão, assassinato a pancadas e outros tipos de crueldade figura em uma série de filmes nos quais os jumentos são personagens proeminentes ou protagonistas. O tema de seu abuso, transformação em salsicha, morte por exaustão, assassinato a pancadas e outros tipos de crueldade figura em uma série de filmes nos quais os jumentos são personagens proeminentes ou protagonistas. Uma exceção: O pagador de promessas (Anselmo Duarte, 1962), no qual a amizade entre o humano-Zé-do-Burro e o asno-Nicolau — que não aparece em cena — é capaz de borrar as sacras fronteiras entre animais e humanos, cristianismo e candomblé e, transgressão das transgressões, fazer um homem se martirizar por um bicho em vez de sacrificá-lo a Deus. Não é à toa que, ao fim, a polícia se envolve e Zé só consiga pagar sua promessa quando sua alma é arrancada do corpo; ele então torna-se pura carne e, assim, troca de lugar com Nicolau. Já no soviético O asno de Magdana (Magdanas Iurja, 1956), de Revaz Chkheidze e Tengiz Abuladze, uma família composta por mãe solo e duas crianças cuida de um jumento abandonado à beira da morte apenas para perdê-lo, por ordem de um juiz, para seu dono rico e perverso. Magdana, a viúva do título, vende iogurte na cidade e Iurja chega como uma bênção para a família; o produto comercializado por Magdana, contudo, não é feito com leite de jumenta, presume-se, ainda que este seja o mais próximo em composição, junto com o leite da égua, ao leite das fêmeas de Homo sapiens. Conta-se que Cleópatra banhava-se em leite de jumenta e mantinha uma criação de 300 delas para ordenha; Plínio, o velho, prescrevia esse leite para uma série de males, de envenenamento à asma a problemas ginecológicos, passando de tudo pelo meio. O mercado de leite de jumenta segue saudável, tendo movimentado US$ 22 milhões em 2022, com estimativa de crescimento nos próximos anos; isso não é nada perto do leite de vaca (US$ 2 bilhões), mas não se pode ganhar o troféu de espécie mais explorada em todos os aspectos.

W = Fd, Daniel S. DeLuca

O destino de EO e de seus colegas bovinos cruza-se ao fim do longa de Skolimowski. Uma cartela anuncia que “o filme foi feito de nosso amor pelos animais e pela natureza.” Muito se fala sobre EO ser uma atualização de Balthazar, sobretudo diante de algumas declarações tocantes do diretor sobre o filme de Bresson — teria sido a única vez em que um filme o comoveu a ponto de o fazer chorar no cinema. Skolimowski também tem falado sobre o modo como os humanos torturam os outros-que-humanos e denunciou o complexo industrial da carne como bárbaro. Essas são questões que causam mal-estar em grande parte das rodinhas de conversa bem-educadas. São questões que costumam causar eczema na crítica, que não encontra chão nem céu quando animais deixam de ser alegoria ou a catástrofe ambiental emerge em densidade. Em Sanctuary (2017), de David Redmon e Ashley Sabin, acompanhamos o cotidiano da rede de Santuários de Jumentos no Reino Unido, na Irlanda, no Canadá e nos Estados Unidos. A palavra “tortura” não é um exagero de Skolimowski, embora em EO fique claro o quanto ele poupa não apenas seus atores, mas o espectador de assistir a brutalidades. Nos santuários, ficamos sabendo, há jumentos surrados, deixados para morrer por não conseguirem mais trabalhar ou que chegaram depois de terem sido esfaqueados mais de 100 vezes em uma brincadeira de crianças. Asnos com todo o tipo de cicatriz, conhecida e desconhecida, que sua pelagem esconde mas que a tentativa de um carinho humano faz com que a lembrança da ferida, marcada no tecido, retorne, e o animal se retraia.

Em um dos momentos mais impressionantes de EO, ele é brutalmente espancado por um grupo de torcedores embriagados. Qualquer contato com a literatura sobre jumentos, seja científica ou artística, qualquer filme com jumentos, qualquer noção a respeito da realidade dos jumentos revela que não se trata de nenhum exagero. A agressão se dá fora do quadro. Na sequência seguinte, uma espécie de pequeno cão robô, mais uma vez em intensa luz vermelha, se esforça para ficar de pé e, uma vez que consegue, corre desesperado em seu sopro maquínico, por um gramado, o mesmo gramado em que EO fora deixado para morrer. Esse robô é EO, com as últimas forças que lhe restaram. Mas não no sentido pobre de uma inteligência artificial ou de algum conceito mistificante de instinto. É simplesmente a besta-máquina, e a besta-máquina é animada; herdeiros de Descartes, escutem bem: é impossível arrancar a alma de um bicho, mesmo que dele só tenha sobrado a carcaça.

No chamado mundo desenvolvido, o jumento perdeu seu emprego. Ele sobrevive fazendo trabalho pesado e, via de regra, sofrendo abusos, em regiões do planeta, digamos, menos abastadas. No Brasil, onde foi “o maior desenvolvimentista do sertão”,5 como cantou, mais uma vez, Luiz Gonzaga, o asno perdeu para o desenvolvimentismo. Primeiro foram as bicicletas. Depois as motos. Os jegues foram sendo ultrapassados, entrando em obsolescência e sendo abandonados à beira de estradas para tentar a própria sorte — ou morrer. No Ceará, o Detran local os recolhe aos milhares, nas piores condições.6 Alguns poucos santuários os recebem, mas o dinheiro, o interesse da sociedade e a influência são poucos — afinal, trata-se de um animal de segunda categoria. Depois de alguns imbróglios que envolveram decisões judiciais desrespeitadas,7 debate-se atualmente8 no Congresso um projeto de lei que proibiria o abate de jumentos em todo o território nacional. Enquanto isso, sem que haja reposição, o Brasil segue com o abate (em grande parte, ilegal) e exportou, entre 2002 e 2019, asnos para países como Itália, destino final de EO, Portugal, Hong Kong e China.9 Restrições impostas pela União Europeia, entretanto, deram o posto de primeiro lugar à China, ávida por um tipo de gelatina chamada ejiao, que se extrai do couro dos jumentos e que teria propriedades medicinais,10 entre 2015 e 2019, cerca de 100 mil animais foram abatidos, o que coloca em risco a população brasileira de jegues, estimada em 400 mil.11

F = ma, Daniel S. DeLuca

EO não perdeu seu Dom Quixote, tampouco sua Dulcineia. Ele não está diante de um moinho de catavento, esperando seu mestre. EO caminha só a passo firme. Viu o aerogerador matar pássaros. Viu a floresta em chamas, os tiros no meio da noite, transformou-se em máquina e fez renascer carne na alma. Viu humanos em êxtase, delirantes, loucos e com fome. Conhece o Antropoceno e sonha com Kasandra, sua Kasandra imperfeita vedete do circo que o olha nos olhos e não vaticina o pior, mas o ama e o mima com bolinhos de cenoura.

Ele nunca mais vai encontrá-la.

No nosso país, são 400 mil.