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Machado de Assis está gagá

Resenha de A vida futura, de Sérgio Rodrigues

Lia Ballak

Não é a primeira vez nem será a última que escritores ressuscitam colegas na tentativa de dialogar com eles, de pensar por eles, de falar por eles ou como eles. Só para citar alguns exemplos de escritores contemporâneos, o dramaturgo romeno Matéi Visniec colocou Samuel Beckett no palco em O último Godot; o dramaturgo inglês de origem tcheca Tom Stoppard fez James Joyce e Tristan Tzara dialogarem na peça Pastiches. Aqui no Brasil, Mario Prata ressuscitou Aleijadinho, Castro Alves, entre outros personagens históricos e ficcionais, como Dom Casmurro, em Mario Prata entrevista uns brasileiros; Deborah Goldemberg e colegas transformaram Mario de Andrade em personagem da peça Makunaimã: o mito através do tempo. Eu mesma caí nessa tentação e trouxe à vida Virginia Woolf, Sylvia Plath, Ferreira Gullar, etc. no meu último livro de contos, Cem encontros ilustrados.

Agora foi a vez de Sérgio Rodrigues dar nova chance a Machado de Assis em seu mais recente romance, A vida futura, título que remete a um canto do Inferno, de A divina comédia, de Dante Alighieri, o qual serve de epígrafe para o livro. Vale lembrar que o poeta Virgílio é ressuscitado por Dante Alighieri e transformado em personagem de A divina comédia.

Em A vida futura, o Bruxo do Cosme Velho e um amigo escritor, o bem-nascido José de Alencar, retornam ao Rio de Janeiro nesta segunda década do século XXI para investigar por que razão as suas obras estavam sendo recontadas ou, mais especificamente, simplificadas, por adaptadores “mais ingênuos que o habitual”, que teriam por objetivo acomodá-las dentro de um conceito politicamente correto. Sobre outras adaptações, esse Machado de Assis ficcional nem cogita discutir: “reescrevam-me à vontade! Cancelem palavras raras e chistes eruditos; amputem cisnes de Leda, hidras de Lerna e asas de Ícaro; aplainem sem piedade as ordens inversas, as ousadias sintáticas, as cousas grandes e miúdas. Depois de tudo o que vi no mundo — nos mundos —, creio poder afirmar que já nada me fará mossa”.

Duas discussões parecem importantes na leitura do livro. A primeira é a da “morte do autor”, no sentido dado por Roland Barthes, Maurice Blanchot etc., ou seja, o autor escreve e simbolicamente morre, ou seja, depois de “pronta” a obra, ele próprio vira leitor de seu texto, podendo elaborar leituras diferentes daquelas que havia cogitado ao escrevê-lo. A segunda discussão, conectada à primeira, diz respeito ao conceito de adaptação, com destaque à sua acomodação dentro da definição do politicamente correto e da inclusão social.

Já nas páginas iniciais de A vida futura, o leitor vai conhecendo melhor esse Machado de Assis repaginado e percebendo que as discussões acima tenderão a tomar outro rumo e não serão aprofundadas, uma vez que, no além, o escritor se tornou um homem frívolo e superficial, dado a platitudes e trocadilhos constrangedores.

No mundo dos mortos, Machado de Assis vive rodeado de escritores (homens), em sua maioria europeus e brancos. Poucos colegas brasileiros são citados; Gonçalves Dias (“mestiço” como Machado de Assis) é rapidamente mencionado. O grande interlocutor do protagonista de A vida futura é Nelson Rodrigues, chamado no livro de “dramaturgo” apenas. Sabe-se que Nelson Rodrigues é conhecido por suas ideias reacionárias e pelo machismo desavergonhado, como quando, em uma entrevista, declarou: “as feministas querem reduzir a mulher a um macho mal-acabado”. Diga-me com quem andas…

O número de artistas ou escritoras citadas pelo Machado de Sérgio Rodrigues pode ser contado nos dedos de um pé de galinha, para me valer de uma brincadeira como as muitas que o escritor coloca na boca do autor de Memórias póstumas de Brás Cubas. Ao falar dos leitores, por exemplo, Machado de Assis teme que alguns sejam “incapazes de distinguir um pastiche de um pistache”, embora, prossegue, “prefiro castanha-de-caju”.

Tivesse Machado escolhido como interlocutor o autor de “Canção do exílio”, pesquisador das línguas indígenas e do folclore brasileiro, ou Lima Barreto, também mestiço e recusado pela Academia Brasileira de Letras, sob a alegação de não ter cuidado com a língua, certamente o livro teria seguido outro caminho e Machado de Assis pensaria duas vezes ao se referir aos efeitos negativos de mudanças no português brasileiro como um “insulto” à “nossa língua-mãe”.

O fato é que a discussão em torno da morte do autor e da adaptação é natimorta. De volta ao Rio do século XXI, o que ganha destaque são as pautas de costume. Aliás, o Machado de Assis de Sérgio Rodrigues é um burguês nostálgico da “confeitaria alegre, frequentada por donzelas elegantes e rapazes que as cortejavam”, que agora tinha à frente “um numeroso grupo de pessoas de todas as idades — dezenas delas, de velhos a crianças —, todas vestindo andrajos e dormindo amontoadas”.

O escritor relata aturdido “quadros de miséria humana capazes de transformar o adjetivo ‘indizível’ em pálido eufemismo” que os fizeram (ele e seu amigo) se sentirem, misturando alhos e bugalhos, “alternadamente numa masmorra medieval, no porão de um navio negreiro, numa caverna pré-histórica […]”.

O leitor de Machado de Assis não reconhecerá, em A vida futura, o autor de pelo menos dois contos cruciais para entender a herança escravagista que recebemos: “O caso da vara” e “Pai contra mãe”, este último um relato contundente de uma sociedade paradoxal na qual pobres exploram pobres e outras minorias, todos abandonados à própria sorte (ou azar). Nesses contos, Machado de Assis relata misérias humanas tão indizíveis quanto as que ora se veem tanto no Rio como no resto do país. Talvez no outro mundo ele tenha ficado gagá, para empregar um termo, de antigamente, para se referir à perda de memória.

Não faço aqui uma crítica ao breve romance, pois acredito (ou quero acreditar) que esse Machado de Assis abobalhado tem o objetivo de provocar um mal-estar, um desconforto no leitor e talvez um riso nervoso e constrangido. Como personagem de ficção, figura adaptada, Machado pode se transformar em qualquer coisa, segundo a vontade do seu criador/adaptador. Sérgio Rodrigues é o melhor exemplo. Como diz Linda Hutcheon, “qualquer que seja o motivo, a adaptação, do ponto de vista do adaptador, é um ato de apropriação ou recuperação, e isso sempre envolve um processo duplo de interpretação e criação de algo novo”.

No século XXI, esse Machado de Assis não se mostra interessado em discutir raça nem se dispõe, na condição de maior escritor, a representar também uma “minoria” que sempre foi considerada inculta e inferior. Ao contrário, em A vida futura, o fundador da Academia Brasileira de Letras afirma que “é fato notório que negro eu nunca quis ser […]” e, diante de uma garota negra em uma universidade pública, age e pensa como homem branco, sexista e escravagista. Imagino que essa tenha sido também a intenção de Sérgio Rodrigues. Machado descreve a personagem como uma “moça forte” de “lábios carnudos” e “dentes graúdos e muito brancos”, e ao tocar “de leve seus braços nus”, acha “até que eles se arrepiaram um pouco”. Mais um pouco e eu já vislumbraria o Machado de Sérgio comprando a escrava numa das feiras do Rio de Janeiro. O autor de “A negrinha” parece despertar de seu delírio quando ouve o amigo dizer: “Que mulher incrivelmente feia […]. De que tribo terá vindo?”.

A vida universitária ganha destaque, nem poderia ser diferente em se tratando de Machado de Assis. Mas não pense o leitor que encontrará algum elogio a ela. No livro, são os clichês bolsonaristas que descrevem o cotidiano na academia, abrangendo a doutrinação política e social dos alunos por professores fumantes e de inteligência mediana e mesquinha, sem contar certas promiscuidades na instituição de ensino superior.

Nesse contexto, chama a atenção uma professora branca cujo projeto é adaptar a obra do autor negro, como ela vê Machado de Assis, para que seus livros se tornem acessíveis aos leitores menos experientes. Aqui, sim, a figura feminina ganha protagonismo. Ela é descrita como “intelectual suburbana”, “moça de dotes intelectuais e físicos” que “tinha desde a infância o plano de sair correndo de Marechal Hermes na primeira oportunidade. Esta surgiu quando, estudante de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, se apaixonou no terceiro período por um professor mais velho”, que lhe fez passar no concurso para professora efetiva na mesma instituição.

O resto é orgia: numa armação, a professora é pega na cama com o filho da empregada do marido, que a abandona. Ela passa a viver com o amante, um salafrário, e a partir daí suas escolhas e convicções acadêmicas não são guiadas pela pesquisa, mas pelo sentimento de vingança do ex-marido, que acreditava que a arte era para alguns: “Quanto menos gente tiver capacidade de compreender uma obra, melhor ela será”.

A professora também tem um caso com a “garota negra”, sua orientanda. Traições, casos amorosos, alcova ganham tanto destaque que o leitor do romance poderá se perguntar, em algum momento, se, em vez de Machado de Assis, não seria Nelson Rodrigues o autor ressuscitado por Sérgio Rodrigues.

A última cena do livro, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, não poderia, portanto, ser outra: em uma reunião numa das salas da Escola de Comunicação, depois de um acalorado debate, a garota negra “voltou. Estava nua e trazia sobre o ombro direito um pano de prato bordado, numa mão uma tesoura enorme e na outra um galão de querosene, líquido que se pôs a aspergir pela sala como água benta […]”. Ah, esses rituais contemporâneos em universidades públicas….

Por sorte esse Machado de Assis voltou para o além. Tivesse ele permanecido por aqui, não me surpreenderia vê-lo defendendo pautas da extrema direita.