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Cem dias e além

Mão esquerda e mão direita 3, Maurício Adinolfi,
óleo sobre madeira maciça, 2022.

No dia 12 de junho de 1933, em entrevista radiofônica, Franklin Roosevelt fez um balanço dos “cem primeiros dias” de seu governo. A expressão entrou para a linguagem política. O começo de todo governo é marcado por esses dias iniciais, período no qual ele está sob os olhos de todos, cercado de expectativas. Esse é o momento em que ele se mostra capaz, ou não, de se organizar para tornar efetivos seus projetos e promessas. Essa característica transicional do momento, de uma plataforma política para outra, exige um governo capaz de despertar confiança no conjunto do povo, ainda mais se o pleito eleitoral foi altamente divisivo. Para ser bem-sucedido nessa empreitada, é preciso se mostrar operacional, o que exige que ministérios se alinhem e as relações com o povo e os demais poderes comecem a ficar mais claras. É isso que vai apontar para muito daquilo que serão as virtudes e também as dificuldades do novo governo.

Se não tomarmos a ideia ao pé da letra, os cem primeiros dias do terceiro governo de Lula não correspondem exatamente ao sentido cronológico da expressão, ou seja, aos cem dias transcorridos desde a posse. Esse marco na verdade se encerrou no dia 23 de maio, com a aprovação em primeiro turno do arcabouço fiscal na Câmara. É verdade que até esse dia, o governo cumpriu bem sua missão política fundamental de reorganizar a administração pública, frear as investidas golpistas, interromper a crise humanitária dos Yanomami, reativar os órgãos ambientais, enfim, de reestabelecer um governo, limpando a terra arrasada legada pelo governo anterior. Contudo, todo esse período inicial transcorreu sob o signo do arcabouço, da expectativa que o mercado, além de parte dos centristas e liberais que apoiaram o governo, tinha em relação às metas econômicas do governo. Sem dúvida, outros assuntos também foram de grande importância, mas a pauta foi dominada especialmente pela questão da fórmula de gastos que deveria substituir o teto draconiano implementado pelo governo Temer.

Quanto ao arcabouço, a vitória do governo pode ter sido de Pirro. Pois o projeto que chegou ao parlamento já desidratava consideravelmente as possibilidades do investimento público. No entanto, para a casa, isso não foi o suficiente. O Fundeb e o Piso Nacional de Enfermagem foram também incorporados no arcabouço, restringindo ainda mais o crescimento do gasto em duas áreas cruciais: a educação e a saúde. Isto, mais as derrotas sofridas pelo governo nos campos do saneamento básico e do meio ambiente, mostram que a chamada “base aliada” está longe de ser um apoio sólido para os projetos do Poder Executivo no Congresso Nacional. Ao que tudo indica, a antiga regra não-escrita do presidencialismo de coalizão já não funciona mais, uma vez que, agora, a distância ideológica entre um governo progressista e um Congresso majoritariamente conservador tornou-se tão relevante a ponto de neutralizar os esquemas tradicionais de cooptação para a base governista. O problema é que se não conseguir pôr em andamento a metas econômicas e sociais que o elegeram, em vista dos bloqueios que a pregação conservadora da contenção fiscal podem produzir — exceto quando se trata de garantir os esquemas particularistas das emendas parlamentares —, o governo do presidente Lula corre o risco de ver sua popularidade despencar.

Para contornar esse formidável obstáculo, a equipe econômica liderada pelo ministro Fernando Haddad prepara sua bala de prata — vale dizer, a reforma tributária, por meio da qual o governo espera viabilizar a regra fiscal através de um aumento da arrecadação. Também por conta da necessidade de ver a economia decolar o quanto antes, Lula promoveu uma investida severa contra o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, dando eco aos protestos de diversos setores do comércio e da indústria: afinal, a inflação dá sinais claros de arrefecimento, enquanto os juros se mantêm em patamares muito acima do razoável e travam a retomada da economia.

Na política externa, outra área sensível que gerou intensos debates, o governo se equilibra em corda bamba. De um lado, tenta se apresentar como um possível mediador da paz; por outro, pretende se alinhar com a geopolítica dos Brics. Acontece que, para ser fiador da paz, seria necessário que o país conseguisse de fato se mostrar equidistante de ambas as partes do conflito, o que não parece ser o caso. É necessário reconhecer a coragem de Lula em tornar novamente o Brasil um ator internacional de respeito e, apesar disso, também reconhecer que as declarações desencontradas do presidente fazem com que sua iniciativa dê com os burros n’água.

Nesse tema, o governo Lula até começou bem, com o voto favorável na Assembleia Geral da ONU à condenação da Rússia pela invasão da Ucrânia. Entretanto, a partir da viagem de Lula à China, parece que tudo mudou. É preciso que se diga que não há dúvida de que a viagem à China para tratar de interesses econômicos brasileiros é totalmente legítima. Contudo, nesta viagem, Lula tratou de criticar enfaticamente o papel de EUA e Europa na guerra e de sugerir um alinhamento geopolítico com os Brics, aparentemente contradizendo a determinação da diplomacia brasileira de não tomar partido na nova guerra fria que se avizinha.

Há de fato toda uma avenida para o Brasil ocupar, propondo esforços imediatos e urgentes para a construção de uma paz justa. No entanto, tais esforços, para serem eficazes, devem partir de uma base de legitimidade aceita. Tal base não pode ser senão a do Direito Internacional, em prol do qual a diplomacia brasileira sempre empenhou os seus melhores esforços. E, segundo o Direito Internacional, na Guerra da Urânia, a Rússia é o país agressor. Não há como contornar este fato. Para além disso, o envio, pelo PT, de altos representantes à Rússia, com o intuito de participar de um seminário organizado pelo partido de Putin, e a visita do ministro das relações exteriores da Rússia, Lavrov, ao Brasil, em meados de abril, minam ainda mais a credibilidade do país no sentido de estabelecer a paz. Também não há como classificar de outra forma, além de vergonhosa, a recente tentativa de Lula de reabilitar o regime chavista na Venezuela, classificando como meras “narrativas” os fatos bem conhecidos e documentados de repressão política e desrespeito aos direitos humanos que tornam esse regime nada mais do que uma autocracia eleitoral. Com essa contradição entre o apoio interno à democracia e o apoio externo a ditaduras, Lula solapa não apenas sua credibilidade internacional, mas também a própria credibilidade da democracia em nosso país, fornecendo perigosamente argumentos à extrema-direita brasileira.

Mas é em outra área que começam a aparecer os desgastes talvez mais significativos do governo. A adoção da nova política de preços de combustíveis é um ponto positivo, acabando com a injustificável paridade de importação. O PPI encarecia toda a cadeia ao repassar imediatamente os reajustes internacionais do preço de petróleo para o mercado interno, fazendo a inflação flutuar de forma inesperada até em produtos de necessidade básica. No entanto, justamente na Petrobrás é que se desenha uma crise mais séria no interior do próprio governo, crise aliás reeditada do primeiro mandato de Lula. As fissuras emergem do conflito entre as exigências econômicas e a luta ecológica, entre os interesses imediatos de desenvolvimento econômico e os ideais de médio prazo — mas que se tornam cada vez mais urgentes — de preservação ambiental.

Esse conflito possivelmente anuncia cenas dos próximos capítulos, nos quais a frente governamental terá que encontrar um arranjo que se sustente tanto diante das ofensivas de rapina do Centrão, quanto do ímpeto de sabotagem que anima a extrema-direita. Diante dessas ameaças, o recém-começado governo não pode se dar ao luxo de errar, pois, caso se desestabilize, o perigo de sua queda repentina é mais real do que hoje se imagina.