Cem dias e além
No dia 12 de junho de 1933, em entrevista radiofônica, Franklin Roosevelt fez um balanço dos “cem primeiros dias” de seu governo. A expressão entrou para a linguagem política. O começo de todo governo é marcado por esses dias iniciais, período no qual ele está sob os olhos de todos, cercado de expectativas. Esse é o momento em que ele se mostra capaz, ou não, de se organizar para tornar efetivos seus projetos e promessas. Essa característica transicional do momento, de uma plataforma política para outra, exige um governo capaz de despertar confiança no conjunto do povo, ainda mais se o pleito eleitoral foi altamente divisivo. Para ser bem-sucedido nessa empreitada, é preciso se mostrar operacional, o que exige que ministérios se alinhem e as relações com o povo e os demais poderes comecem a ficar mais claras. É isso que vai apontar para muito daquilo que serão as virtudes e também as dificuldades do novo governo.
Se não tomarmos a ideia ao pé da letra, os cem primeiros dias do terceiro governo de Lula não correspondem exatamente ao sentido cronológico da expressão, ou seja, aos cem dias transcorridos desde a posse. Esse marco na verdade se encerrou no dia 23 de maio, com a aprovação em primeiro turno do arcabouço fiscal na Câmara. É verdade que até esse dia, o governo cumpriu bem sua missão política fundamental de reorganizar a administração pública, frear as investidas golpistas, interromper a crise humanitária dos Yanomami, reativar os órgãos ambientais, enfim, de reestabelecer um governo, limpando a terra arrasada legada pelo governo anterior. Contudo, todo esse período inicial transcorreu sob o signo do arcabouço, da expectativa que o mercado, além de parte dos centristas e liberais que apoiaram o governo, tinha em relação às metas econômicas do governo. Sem dúvida, outros assuntos também foram de grande importância, mas a pauta foi dominada especialmente pela questão da fórmula de gastos que deveria substituir o teto draconiano implementado pelo governo Temer.
Quanto ao arcabouço, a vitória do governo pode ter sido de Pirro. Pois o projeto que chegou ao parlamento já desidratava consideravelmente as possibilidades do investimento público. No entanto, para a casa, isso não foi o suficiente. O Fundeb e o Piso Nacional de Enfermagem foram também incorporados no arcabouço, restringindo ainda mais o crescimento do gasto em duas áreas cruciais: a educação e a saúde. Isto, mais as derrotas sofridas pelo governo nos campos do saneamento básico e do meio ambiente, mostram que a chamada “base aliada” está longe de ser um apoio sólido para os projetos do Poder Executivo no Congresso Nacional. Ao que tudo indica, a antiga regra não-escrita do presidencialismo de coalizão já não funciona mais, uma vez que, agora, a distância ideológica entre um governo progressista e um Congresso majoritariamente conservador tornou-se tão relevante a ponto de neutralizar os esquemas tradicionais de cooptação para a base governista. O problema é que se não conseguir pôr em andamento a metas econômicas e sociais que o elegeram, em vista dos bloqueios que a pregação conservadora da contenção fiscal podem produzir — exceto quando se trata de garantir os esquemas particularistas das emendas parlamentares —, o governo do presidente Lula corre o risco de ver sua popularidade despencar.
Para contornar esse formidável obstáculo, a equipe econômica liderada pelo ministro Fernando Haddad prepara sua bala de prata — vale dizer, a reforma tributária, por meio da qual o governo espera viabilizar a regra fiscal através de um aumento da arrecadação. Também por conta da necessidade de ver a economia decolar o quanto antes, Lula promoveu uma investida severa contra o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, dando eco aos protestos de diversos setores do comércio e da indústria: afinal, a inflação dá sinais claros de arrefecimento, enquanto os juros se mantêm em patamares muito acima do razoável e travam a retomada da economia.
Na política externa, outra área sensível que gerou intensos debates, o governo se equilibra em corda bamba. De um lado, tenta se apresentar como um possível mediador da paz; por outro, pretende se alinhar com a geopolítica dos Brics. Acontece que, para ser fiador da paz, seria necessário que o país conseguisse de fato se mostrar equidistante de ambas as partes do conflito, o que não parece ser o caso. É necessário reconhecer a coragem de Lula em tornar novamente o Brasil um ator internacional de respeito e, apesar disso, também reconhecer que as declarações desencontradas do presidente fazem com que sua iniciativa dê com os burros n’água.
Nesse tema, o governo Lula até começou bem, com o voto favorável na Assembleia Geral da ONU à condenação da Rússia pela invasão da Ucrânia. Entretanto, a partir da viagem de Lula à China, parece que tudo mudou. É preciso que se diga que não há dúvida de que a viagem à China para tratar de interesses econômicos brasileiros é totalmente legítima. Contudo, nesta viagem, Lula tratou de criticar enfaticamente o papel de EUA e Europa na guerra e de sugerir um alinhamento geopolítico com os Brics, aparentemente contradizendo a determinação da diplomacia brasileira de não tomar partido na nova guerra fria que se avizinha.
Há de fato toda uma avenida para o Brasil ocupar, propondo esforços imediatos e urgentes para a construção de uma paz justa. No entanto, tais esforços, para serem eficazes, devem partir de uma base de legitimidade aceita. Tal base não pode ser senão a do Direito Internacional, em prol do qual a diplomacia brasileira sempre empenhou os seus melhores esforços. E, segundo o Direito Internacional, na Guerra da Urânia, a Rússia é o país agressor. Não há como contornar este fato. Para além disso, o envio, pelo PT, de altos representantes à Rússia, com o intuito de participar de um seminário organizado pelo partido de Putin, e a visita do ministro das relações exteriores da Rússia, Lavrov, ao Brasil, em meados de abril, minam ainda mais a credibilidade do país no sentido de estabelecer a paz. Também não há como classificar de outra forma, além de vergonhosa, a recente tentativa de Lula de reabilitar o regime chavista na Venezuela, classificando como meras “narrativas” os fatos bem conhecidos e documentados de repressão política e desrespeito aos direitos humanos que tornam esse regime nada mais do que uma autocracia eleitoral. Com essa contradição entre o apoio interno à democracia e o apoio externo a ditaduras, Lula solapa não apenas sua credibilidade internacional, mas também a própria credibilidade da democracia em nosso país, fornecendo perigosamente argumentos à extrema-direita brasileira.
Mas é em outra área que começam a aparecer os desgastes talvez mais significativos do governo. A adoção da nova política de preços de combustíveis é um ponto positivo, acabando com a injustificável paridade de importação. O PPI encarecia toda a cadeia ao repassar imediatamente os reajustes internacionais do preço de petróleo para o mercado interno, fazendo a inflação flutuar de forma inesperada até em produtos de necessidade básica. No entanto, justamente na Petrobrás é que se desenha uma crise mais séria no interior do próprio governo, crise aliás reeditada do primeiro mandato de Lula. As fissuras emergem do conflito entre as exigências econômicas e a luta ecológica, entre os interesses imediatos de desenvolvimento econômico e os ideais de médio prazo — mas que se tornam cada vez mais urgentes — de preservação ambiental.
Esse conflito possivelmente anuncia cenas dos próximos capítulos, nos quais a frente governamental terá que encontrar um arranjo que se sustente tanto diante das ofensivas de rapina do Centrão, quanto do ímpeto de sabotagem que anima a extrema-direita. Diante dessas ameaças, o recém-começado governo não pode se dar ao luxo de errar, pois, caso se desestabilize, o perigo de sua queda repentina é mais real do que hoje se imagina.