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As Maquiavelianas de Sérgio Cardoso — Uma interpretação exemplar

Maquiavelianas — povo e poder popular, Maria Spector

A publicação do livro de Sérgio Cardoso atesta a consolidação da leitura republicana da obra de Maquiavel no Brasil, ao mesmo tempo em que contribui decisivamente para seu aprofundamento. Com efeito, a interpretação aí avançada no que concerne, sobretudo, ao lugar do povo na vida política possui grande força teórica e amplo apoio textual. Com rara acuidade, é explicitado o sentido político do “desejo de não ser dominado”, isto é, seu papel determinante no processo de elaboração das leis e na construção da liberdade. Mas não apenas isso: a luz que Sérgio Cardoso lança sobre essa personagem permite ao leitor compreender a inovação maquiaveliana em toda sua envergadura. Em outras palavras, é por referência ao povo e sua função no conflito político que se evidencia para nós a profundidade da ruptura que Maquiavel operou no campo do pensamento político. De nosso ponto de vista, isso já é suficiente para inserir o trabalho de Sérgio Cardoso na lista daquilo que Claude Lefort denominou de “interpretações exemplares”, sem esquecer que essas interpretações interrogam não somente o sentido da obra de pensamento, mas também a experiência política em que ela (a interpretação) tem sua origem. Nesse sentido, o pensamento de Sérgio Cardoso se constrói a partir de um tríplice balizamento: o primeiro, o pensamento de Maquiavel; o segundo as interpretações acerca de sua obra; o terceiro, aquele que subjaz à toda e qualquer reflexão política, isto é, a experiência1. Nesses breves comentários que se seguem, preferimos nos ater às duas primeira referências, vale dizer, a relação reflexiva de Sérgio Cardoso com a obra de Maquiavel e sua apropriação de algumas interpretações. Privilegiaremos, inicialmente, o segundo aspecto, isto é, a relação com a tradição interpretativa, pois é onde o livro começa. Em seguida, tentaremos entender como a figura do povo se desenha no livro de Sérgio Cardoso, pois este é o núcleo de sua teoria política e embasa o que poderíamos chamar de um republicanismo conflitivo e popular.

O primeiro capítulo do livro é dedicado à retomada das interpretações republicanas (ou que lançaram as bases para uma interpretação republicana) da obra de Maquiavel, em especial, os livros de Claude Lefort, John Pocock e Quentin Skinner, todos publicados nos anos 1970. Começando pelo último, Sérgio Cardoso mostra como sua interpretação ainda está presa a um paradigma “liberal”, cujo inconveniente maior é a incapacidade de apreender em toda sua radicalidade a teoria maquiaveliana dos conflitos políticos. A ênfase de Skinner, nos diz Sérgio, recai sobre a “vigilância mútua” entre os cidadãos (Grandes e povo) e, por conseguinte, restitui, mesmo sem abertamente reconhecê-lo a teoria do regime misto. E a interpretação skinneriana ainda encontra continuidade naquela de Viroli, mas em uma formulação ligeiramente distinta: no lugar da “vigilância mútua” encontramos a ideia da “necessária moderação” dos apetites (p. 35) como o fio condutor de sua compreensão da liberdade política resultante da divisão social. Viroli, portanto, pertenceria àquilo que Sérgio denomina de “matriz skinneriana”, que define da seguinte maneira: “a exigência de uma composição constitucional sábia capaz de equilibrar forças sociais movidas por pulsões contrárias (e também contrárias, ambas, ao ‘vivere politico e civile’) e a ideia de que estas ‘buone ordini’ permitem a produção de leis que servem aos interesses comuns” (p. 37). Que se compreenda bem, porém, que Sérgio não descarta essas interpretações em sua totalidade. Na verdade, como leituras “republicanas”, elas têm vários elementos em comum com aquela que o próprio Sérgio avançará, quer dizer, a necessidade de estabelecimento do governo das leis, o enaltecimento da participação popular, o caráter central da liberdade no âmbito das disputas políticas, etc. Mas Sérgio não pode acompanhar esses autores em sua inclinação “irenista”, em sua confiança demasiada no poder das leis e das instituições, sobretudo no que diz respeito a uma suposta integração dos interesses em um interesse comum da cidade atrelada à convicção de que os apetites políticos devem sofrer, por via institucional, uma moderação, um direcionamento de modo a produzir os bons efeitos políticos. Este último ponto merece nossa atenção porque a partir dele podemos perceber o verdadeiro teor das críticas de Sérgio a essa matriz “skinneriana”: ela padeceria de uma concepção excessivamente racionalista, mais afeita à tradição liberal, uma concepção que teria como pressuposto a crença na racionalidade das instituições como um elemento forte o bastante para absorver as paixões humanas por meio de um arranjo constitucional. Em suma, essa matriz ainda se colocaria sob a égide da teoria do bom regime e evocaria o fantasma daquilo que Claude Lefort chamava de “boa sociedade”, ou seja, a sociedade totalmente transparente a si mesma, mestre do enigma de sua fundação.

No que diz respeito propriamente aos objetivos teóricos de Sérgio Cardoso, essa matriz skinneriana é também incapaz de compreender a força produtiva do desejo popular, dissolvendo-a — ou mesmo anulando-a — nos apetites humanos que, ao se manifestarem circunstancialmente como ódio aos grandes ou uma forma desenfreada de rebeldia, eclipsam a potência política do desejo. A redução do desejo do povo à empiricidade das paixões humanas o aproxima da licença e o afasta da liberdade. Para Sérgio, trata-se de fazer justamente o contrário. E o autor que melhor compreendeu essa necessidade teórica foi Claude Lefort, a ponto de ser necessário atribuir-lhe uma outra matriz interpretativa, aquela que colocará o desejo popular sob o signo da negatividade.

Esse ponto é central nas análises de Sérgio. A via que conduzirá ao núcleo da produtividade política do desejo popular, isto é, sua capacidade de gerar uma ordem política, é aquela da negatividade. A ideia da negatividade, em primeiro lugar, aponta para a dessubstancialização das categorias de Grandes e povo, isto é, ela revela que um e outro não são “realidade substantivas, a serem apreendidas por si mesmas, seja enquanto entidades imediatamente — empiricamente — apreensíveis seja enquanto definidas por determinações psicológicas ou sociológicas” (p. 55). Essas categorias se deixam definir somente em sua “atividade”, quer dizer, em seu antagonismo político fundamental que opõe de forma irredutível um desejo de dominar e um desejo de não ser dominado. Sérgio pode então dizer que “o essencial é o ‘desejo — o apetite, a demanda — que move forças antagônicas, constituindo-as como classes políticas” (p. 56).

De nosso ponto de vista, é importante reter a ideia de que a negatividade do desejo popular não se confunde em absoluto com um “interesse de classe” — tomando essa expressão em sua acepção tradicional. O povo somente se constitui como classe na dinâmica política que envolvem quem deseja dominar e quem resiste a esse desejo. Resta inviabilizada qualquer tentativa de deduzir a existência do povo das condições históricas que o determinariam: o povo tal qual se configura em uma determinada realidade social e política não pode jamais realizar plenamente o desejo popular de não opressão. Esse desejo está sempre em excesso com relação às reivindicações de liberdade que presidem a luta política em contextos singulares. Mas como apreender de modo mais preciso essa capacidade política do povo ou, o que dá no mesmo, como entender sua potência de instituição da ordem política? Como resolver o aparente mistério de que justamente aqueles que são, por definição, “sem poder”, possam ao mesmo tempo estar na origem do poder político? Para responder a essas questões, Sérgio acredita ser imprescindível colocar às claras o mecanismo pelo qual as leis são geradas.

Ele inicia sua explanação colocando a seguinte pergunta: “como passar deste desejo indeterminado, ilimitado e insaciável, da Lei para as leis particulares que governam a vida dos homens nas cidades?” (p. 59). Para elucidar o problema é preciso manter em mente a dinâmica do conflito político. O desejo de não dominação — ou desejo de liberdade —, embora seja irredutível a suas manifestação histórica, opera politicamente no enfrentamento a um desejo particular de dominação. Se, em um primeiro momento, devemos tomar o desejo de liberdade como universal e indeterminado, em um segundo momento essa universalidade adquire efetividade política na negação da forma particular de dominação. Por essa via as leis particulares — as ordini e leggi de uma república — são produzidas. O exemplo dado por Sérgio é claro: frente a uma imposição determinada daqueles que desejam dominar — estender a propriedade na direção da floresta — cabe ao povo opor o desejo contrário, mas sob uma formulação universal que deve valer como lei: “ninguém poderá estender sua propriedade na direção da floresta” (p. 66). O enunciado de uma lei, sustentada pelo desejo do povo, é sempre de extensão universal, que visa coibir o desejo particular de dominação que não pode se expressar a não ser sob a forma da particularidade. Sérgio sintetiza esse argumento na seguinte passagem:

a negação politicamente produtiva se manifesta na forma da contradição do desejo (político) popular relativamente à afirmação dos interesses particulares, “econômicos”, dos grandes, e que ela se manifesta diretamente na forma de leis, em universais políticos

(p. 65)

Nesse sentido preciso, o povo aparece nas análises de Sérgio, que reivindica sua inscrição na “matriz interpretativa lefortiana”, como o “sujeito da produção histórica das leis” (p. 66). Ora, se lembrarmos que a definição de república, amparada pelos textos de Maquiavel, é precisamente aquela do governo das leis, se descortina para nós o verdadeiro teor político do desejo popular. Produtor das leis, é sobre o desejo do povo que se assenta a liberdade política.


Acreditamos que esse seja o núcleo da leitura que Sérgio realiza da obra de Maquiavel. Os capítulos seguintes demonstram como ela é confirmada pelos textos maquiavelianos de natureza “histórica”, em especial, as Histórias de Florença. Não pretendemos acompanhar esses desdobramentos das análises de Sérgio Cardoso. Para nós, é mais interessante discutir algumas implicações teóricas dessa interpretação no âmbito da filosofia política, mas apenas o faremos sob a forma de breves apontamentos. Poderíamos dizer que a leitura de Sérgio nos oferece dois ganhos teóricos no que concerne ao papel do povo na cena política e sua relação com o poder político. Em primeiro lugar, a definição do povo como sujeito produtor das leis favorece a construção de um ângulo de abordagem da experiência política moderna que passa ao largo do conceito de soberania. Em segundo lugar, essas reflexões contribuem de modo decisivo, a nosso ver, para resolver algumas das dificuldades e paradoxos que o conceito de povo produz no âmbito do pensamento político.

A propósito da soberania, não faltam comentadores que pretendem enxergar em Maquiavel um de seus precursores.2 Via de regra, esse tipo de leitura coloca o foco sobre a figura do príncipe, deixando de lado as condições de possibilidade de sua constituição como agente político. O trabalho de Claude Lefort já havia nos dados vários elementos para colocar em xeque essa perspectiva, pois enfatizava, como já vimos, a divisão social como o princípio gerador da dimensão política, o que vai na direção oposta das teorias políticas, em especial as de cunho contratualista, que viam no contrato o fundamento da autoridade. No cerne das teorias contratualistas está a noção de vontade coletiva, a partir da qual é possível compreender a origem e a legitimidade do poder. Ora, se fizermos como Lefort e Sérgio Cardoso, reconhecendo na origem do poder o conflito, nos colocaremos em uma linhagem reflexiva muito distinta. Como Sérgio nos mostra, a “subjetividade política” do povo nada tem a ver com uma suposta unidade. O povo não é, em absoluto, uma unidade (natural ou artificial) que poderia reivindicar o lugar de titular do poder. A universalidade que ele configura é sempre negativa, deduzida de seu desejo de liberdade; jamais ela se realiza no nível histórico nem pode ser reconduzida a uma abstração jurídica que lhe garantiria alguma positividade.

É claro que estamos nos referindo aqui a uma concepção moderna de soberania. Mas o conceito de povo, que Sérgio Cardoso destila dos textos maquiavelianos, mostra-se totalmente refratário ao conceito de soberania medieval, que pressupunha também a unidade, angariada não por meio do assentimento da vontade, mas graças ao fenômeno da incorporação, isto é, a unificação do corpo político no corpo do rei. Se essa concepção teológica de soberania caduca frente à nova forma de soberania nacional, o fantasma da unificação jamais abandonará o campo da experiência política moderna, como bem demonstrou Claude Lefort, justamente a propósito da miragem do Povo-uno, que ultrapassa o domínio do imaginário político em direção à sua realização no contexto totalitário. E talvez não seja excessivo lembrar, com La Boétie, que o fascínio exercido pelo Nome de Um está na origem dos regimes tirânicos, ameaça velada e inerradicável mesmo nos Estados modernos.

Em suma, o que pretendemos dizer é que ao conceito de povo como produtor da lei, tão construído por Sérgio a partir de Maquiavel, nos introduz a outra concepção de poder, distinta da soberania — tanto em sua matriz teológico-política quanto em sua matriz jurídico-política. O poder apenas se deixa elucidar plenamente quando referido à divisão social que o engendra. Da mesma forma que a lei não é compreendida como a expressão de uma inteligência ou prudência superior do legislador, mas uma construção política que tem no desejo do povo seu sustentáculo, o poder não tem dono: seu lugar e seu exercício são delimitados pelo confronto originário que estrutura a vida política. Quando temos isso em mente, graças ao livro de Sérgio, descobrimos a possibilidade de inscrever no horizonte do pensamento político um pensamento profundamente inovador, de matriz republicana. Ou, em outras palavras, nos deparamos com um republicanismo diferente daquele preconizado por Pocock ou por Skinner, embora tenha com ele pontos em comum. A ideia de governo das leis, de cidadania, de virtude cívica e de liberdade, estão presentes no pensamento de Sérgio, assim como naquele dos conhecidos autores. Porém, esse termos ganham uma novo significado uma nova intensidade, por causa da explicitação do desejo do povo como irredutível ao interesse de uma parte. Sérgio, sempre seguindo de perto Lefort, nos ensina que o desejo do povo é uma força motriz indispensável para a construção do político, mas somente pode cumprir essa função porque é essencialmente refratária a qualquer tipo de representação. Esse é, acreditamos, o termo-chave porque tanto a matriz teológica quanto a jurídica são por ele presididas. O desejo negativo do povo não anuncia uma conciliação, uma síntese que viria superar e manter seu contrário, como vemos no conceito hegeliano de suprassunção. O universal para o qual ele se abre não recolhe as contradições do real em favor de uma nova unidade, como já vimos. O movimento do negativo não encontra seu repouso no ente soberano que viria restituir a promessa de um corpo político apaziguado, mas, trabalhando no interior desse corpo e denunciando que a ameaça da dominação nunca cessa, restitui as condições de possibilidade do político.

Assim, trata-se menos de colocar em xeque o modelo da soberania, mas apontar suas limitações quando está em jogo o entendimento da natureza do político. E não apenas isso. Vista sob esse prisma a dinâmica política, quer dizer, a experiência política muda de sentido. Ela não se encaixa inteiramente no esquema da disputa pelo poder: ela é sobretudo o trabalho incessante de construção e destruição da liberdade. É exatamente isso que Sérgio vai colocar diante de nossos olhos quando examinar os textos “históricos” de Maquiavel, ao quê já aludimos.

Parece-nos, então, que o livro de Sérgio dá um passo importante em direção à elaboração de uma outra linhagem do pensamento republicano, cujo ponto de partida remete, sem sombra de dúvida, aos trabalhos de Claude Lefort. Mas vai além deste, na medida em que investiga a fundo em que consiste esse trabalho do negativo e como ele produz seus efeitos sobre o corpo político.

Outro ponto de discussão para o qual o livro oferece um aporte maior concerne aos impasses com os quais a noção de povo se depara. Desde sua emergência definitiva na cena política, em especial, após as revoluções do século XVIII, o conceito de povo, como é bem sabido, não deixa de levantar uma série de dificuldades. Se sua vontade passa a ser reconhecida como o fundamento da soberania, como lembramos mais acima, a clara identificação de quem é seu portador sempre foi objeto de disputa política e envolvida em grande obscuridade teórica. Temos a impressão de que no núcleo dessa disputa e dessa obscuridade está o fato de que o povo é redimensionado com o advento das democracias modernas: como fonte do poder e fundamento da legitimidade política ele não é mais uma parte da cidade, mas o lugar onde de circunscrição do universal. Basta lembrarmos que para Rousseau — para evocarmos apenas um exemplo do redimensionamento teórico do povo — a vontade popular, em sua expressão política, é “vontade geral”. Ela é geral em sua expressão, sob a forma da lei, mas ela corresponde ainda à vontade política presente em todas as vontades particulares. Dessa maneira, é possível promover a sobreposição, como efetivamente o faz Rousseau, entre o povo e os cidadãos: o povo é composto por todos os cidadãos, não por uma parte da cidade.

Também é sabido que esse novo status do povo estará na origem de grandes desafios, práticos e teóricos, aos quais, parece-nos, estamos longe de resolver. No contexto mesmo da Revolução Francesa, a entrada em cena da vontade popular colocará a questão sobre quem seria seu porta-voz, seu representante. Além disso, ao longo do século XIX, quando a universalidade do sufrágio for trazida para o centro dos debates políticos, será mais aguda a consciência da diferença entre a figura política e a figura sociológica do povo. Mas todas as tensões resultantes seja do dispositivo de representação seja do aparecimento da assim chamada “questão social” apontam para a universalidade do povo. O representante se depara com a aparentemente insolúvel dificuldade de, sendo um, suportar a vontade dos muitos; e na base das reivindicações sociais está o desejo de que todos sejam reconhecidos como cidadãos. O povo se apresenta como esse polo que deve unificar a irredutível multiplicidade daqueles que o constituem. Certamente, essa unificação não pode ser real, mas simbólica, sobre o quê Claude Lefort não se cansou de insistir, lembrando que somente no regime totalitário o fantasma do Povo-uno preside as ações políticas concretas. Todavia, continuamos no registro do universal com essa concepção de povo, mesmo que seja, repetimos, um universal simbólico.

O livro de Sérgio oferece outra perspectiva. Insistindo sobre sua natureza de parte portadora de um desejo potencialmente universal, ele parece integrar duas concepções de povo, a clássica e a moderna. A concepção clássica, grega, de povo, como sabemos, lhe reconhece um lugar na cidade. São os muitos, hoi plethoi, sempre vistos com desconfianças pela elite e, Aristóteles sendo a honrosa exceção (ao menos em certas passagens), pelos pensadores. Como vimos, Sérgio, apoiando-se em Maquiavel, ressalta sua natureza de parte. Mas suas análises não o fazem recuar até a concepção grega porque essa parte ultrapassa, por meio de seu desejo negativo, sua condição originária, assegurando simultaneamente a instauração do político e a produção da lei. Para deixar mais claro o que estamos dizendo, hoi plethoi, na democracia ateniense, constitui uma força política plenamente positiva frente ao poucos, disputando com eles o exercício do poder. Como pudemos ver, a partir das minuciosas análises de Sérgio, o povo em Maquiavel não disputa diretamente o poder, mas sem ele, sem o desejo de não ser dominado, não há lugar para o surgimento do poder político como tal, isto é, aquele que concerne à cidade como um todo e governa por meio da lei.

Conservada sua condição de parte e o caráter negativo de seu desejo, o povo tem seu papel político definido em contraste com aquele que conheceremos na época moderna, fundamento da autoridade e fonte da legitimidade, um universal, portanto, sobre o qual se assenta o poder político e de cuja vontade a lei deve ser a expressão. Mantendo o olhar fixo sobre sua “parcialidade”, Sérgio o transforma em uma categoria eminentemente política, depurando-o de sua dimensão histórica e sociológica. Poderíamos dizer que o povo é uma função política, ou um lugar, em que o desejo de liberdade vem encontrar expressão. Sem os entraves de sua caracterização sociológica e com uma definição precisa de seu lugar na cena política, é possível fazer a economia das aporias a que nos referíamos mais cedo, a saber, aquelas decorrentes da dificuldade de se identificar quem é o povo, como produzir sua unidade e como traduzir sua vontade sem que ela seja distorcida. Em uma passagem, ainda do primeiro capítulo, Sérgio afirma o seguinte: “Enfim, o grande número dos ‘sem poder’, ou mesmo um grupo social determinado submetido à opressão, se faz povo, classe política, ao se manifestar como portador do ‘humor popular’, ao afrontar o desejo de opressão dos Grandes” (p. 56). Como lugar em que pulsa o desejo de liberdade, o povo, na leitura de Sérgio Cardoso, faz-se. Logo, não cabe colocar nenhuma questão que pressuponha a anterioridade de sua aparição na cena pública. E se ele faz-se ele pode também não se fazer:

O desejo popular pode não se manifestar, seja pela incapacidade dos muitos (a massa ou um grupo social determinado) para se aglutinar na oposição à opressão dos grandes (produzindo a própria passividade), seja pelo investimento, e dispersão, do rancor dos oprimidos no campo das lutas facciosas (não políticas) dos grandes, seja ainda pela corrupção da pulsão negativa em desejo de poder

(p. 56)

Não resta, portanto, qualquer ambiguidade do povo nessa conceitualização; nenhuma contradição inerente que arriscaria lançar sobre esse personagem uma nova opacidade. A manifestação dessa pulsão sem objeto determinado, desse desejo de liberdade, dependerá, claro, das circunstâncias históricas e políticas, que podem ou não favorecê-la. Mas o povo, como tal, como garante da liberdade, não é afetado por essa contingência.

São grandes as vantagens dessa conceitualização, como já indicamos. Convém frisar que para exauri-las devemos nos colocar no registro certo em que as análises de Sérgio são levadas a cabo, aquele da filosofia política ou, poderíamos ainda dizer, de uma ontologia do político. Que não se confunda essa filosofia do político com uma mera formalização teórica, pois ela nos dá a ver não somente a cena originária do político, mas também revela aspectos essenciais de seu dinamismo. Em outras palavras, por meio dessa categorização nos tornamos capazes de compreender tanto a lógica da instauração do político quanto seus desdobramentos na realidade. Mais uma vez, temos de indicar a parte do livro em que Sérgio se debruça sobre as História de Florença como o local onde é construída a passagem da ontologia para a história. E o princípio que parece presidi-la é o de que o desejo do povo pode não pode ser reduzido ao interesse de nenhuma classe social, mas se atualiza quando os muitos se batem contra a opressão. Sendo assim, as categorias sociais nada acrescentam à definição do povo, o mesmo valendo para as categorias jurídicas, o que não impede de compreender que a ação do povo encontra, via de regra, seus executores entre aqueles que são vítimas da ambição, dos interesses econômicos e que possa gerar direitos. Esse é o ponto crucial a que queríamos chegar: a conceitualização do povo como o portador de um desejo político é capaz de fazer comunicar o político com as dimensões sociológica e jurídica, evitando o ônus que decorreria de sua “substancialização”, isto é, a pressuposição de sua existência prévia, seja como estrato social seja como sujeito de direito.

Se dirigirmos contra Sérgio a crítica de que sua categorização é por demais rarefeita, por demais abstrata, um subterfúgio para evitar a questão dramática de que o povo é, simultaneamente, “impossível de se encontrar” e aquilo a que não podemos deixar de nos referir na democracia moderna (como se ele deixasse de contemplar o problema em sua complexidade), estaremos cometendo uma injustiça. Pois ele avança na direção do problema mais agudo da democracia moderna, a saber, aquele da dominação política (em uma sociedade de iguais), mostrando que o povo não se define pela obediência, mas pela recusa da opressão. Essa circunscrição precisa do lugar político do povo explicita, na verdade, um parti pris republicano, ou seja, a convicção de que a vida política gravita em torno da liberdade.