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Experiência política e estatuto do povo nas Maquiavelianas de Sérgio Cardoso1

Maquiavelianas — povo e poder popular, Maria Spector

Falar do livro de Sérgio Cardoso — Maquiavelianas: lições de política republicana2 — me é difícil por algumas razões. Em primeiro lugar, pois não sou um leitor de Maquiavel. Ao menos não no sentido forte do termo. Logo, julgar a pertinência da interpretação que Sérgio Cardoso nos apresenta, em cotejo com as demais interpretações contemporâneas do autor florentino, está fora do âmbito de minhas competências — e também de minhas ambições. Em segundo lugar, tenho grande dificuldade em separar a admiração que nutro pela pessoa dos méritos próprios à obra. A tentativa de pôr no papel algumas palavras a respeito de uma tende rapidamente a degenerar em hagiografia da outra — e, no entanto, não hesito em fazê-lo.

Na condição de leitor moderno, estou convencido — ou fui convencido — de que a boa leitura nem sempre é a leitura escorreita. Respeitar a integridade dos textos muitas vezes é reconhecer que há para além de sua estrutura (ou talvez na própria estrutura) certo grau de inerradicável plasticidade. A indeterminação constitutiva do texto, se pudermos nos expressar nesses termos, não é, entretanto, um convite ou uma justificativa para a falta de rigor exegético. Ao contrário, sua constatação nos impõe de saída um dever, muitas vezes de difícil assimilação: respeitar a diferença; reconhecer, dentro de certos limites, a legitimidade da alteridade; e, por fim, fundamentar a leitura do texto no terreno cediço da argumentação — em última instância, produzir um texto para ler outro texto. A boa leitura, portanto, não é, necessariamente, aquela que melhor adere ao cânone, mas aquela que melhor justifica (em relação a ele) seus desvios e particularidades. É isso que Sérgio Cardoso faz, primorosamente, com Maquiavel e seus múltiplos intérpretes — a começar, é claro, por Claude Lefort. É isso que pretendo fazer também com Sérgio, de maneira muito mais modesta e circunscrita, é claro.

Convém assinalar, igualmente, que me aproximo do texto de Sérgio acompanhado, em boa medida, da ingenuidade e do descompromisso do leigo. Seduz-me, para além da densidade do argumento — índice seguro de que há por trás de cada uma de suas palavras muitas horas (ou muitas décadas) de cuidadosa meditação —, o horizonte político do livro, isto é, a direção na qual penso que ele aponta. Em uma conferência recente, Helton Adverse afirmou que “o pensamento de Sérgio Cardoso se constrói a partir de um tríplice balizamento: o primeiro, o pensamento de Maquiavel; o segundo, as interpretações acerca de sua obra; o terceiro, aquele que subjaz a toda e qualquer reflexão política, isto é, a experiência”.3 “Como diz Claude Lefort”, completa Adverse, “a posição adotada pelo intérprete face à obra já implica uma experiência política”.4

Se Helton prefere se “ater às duas primeiras referências, vale dizer, a relação reflexiva de Sérgio Cardoso com a obra de Maquiavel e sua apropriação de algumas interpretações”,5 pretendo aqui fazer justamente o oposto, isto é, deixar de lado esses dois balizamentos do pensamento de Sérgio — já tratados, aliás, por Helton com excelência — e dedicar-me apenas a investigar o sentido de sua experiência política; implicada no texto por meio da tomada de posição do autor frente à “obra Maquiavel”. Em suma, minha intenção nesta comunicação é tentar responder à seguinte pergunta: qual é, afinal, a experiência política que subjaz às Maquiavelianas de Sérgio Cardoso?

Tal questionamento, naturalmente, nos remeteria ainda a um outro, de caráter mais geral e de natureza mais complexa: qual é, afinal, a experiência política da geração da qual Sérgio Cardoso faz parte? Geração essa, convém assinalar, que não é a mesma de seus mestres, cuja experiência política — na qual se inscreve a experiência de Sérgio — difere, sensivelmente, da experiência política daqueles que a formaram e precederam. Com efeito, os contornos conceituais e ideológicos dessas duas experiências não coincidem (e nem poderiam) — por mais semelhantes que sejam e por mais que haja, de uma a outra, fortes continuidades.

De modo esquemático, penso que se pode dizer que enquanto a experiência política da geração de seus mestres se deu ainda sob a máxima sartriana, segundo a qual “o marxismo é a filosofia inultrapassável de nosso tempo”;6 a experiência política da geração de Sérgio se deu já em alguma medida sob o lema foucaultiano, segundo o qual “o marxismo está no pensamento do século dezenove como peixe n’água”7 (isto é, se o retiramos de lá, ele deixa de respirar).

Insisto na oposição entre essas duas frases, originadas em duas das maiores inteligências da filosofia francesa do século vinte, pois penso que não há nela nada de gratuito. Ao contrário, ela me parece sinalizar uma importante inflexão no pensamento da esquerda ao longo do período. Uma inflexão que diz respeito, naturalmente, ao seu horizonte político; mas também, como pretendo indicar, ao paradigma epistemológico no qual esse pensamento esteve assentado.

Do ponto de vista ideológico, não se pode ignorar os efeitos da crítica do totalitarismo8 para a formação de um novo clima de opinião na Europa, sobretudo depois de 1968.9 De um ponto de vista epistemológico, penso que as proposituras e as provocações do chamado “pós-estruturalismo” — ainda que não estivessem vinculadas organicamente às investidas antitotalitárias contra o marxismo — contribuíram também para desengastar as novas gerações dos pressupostos básicos do materialismo histórico. Logo, se houve uma geração para a qual era preferível “errar com Sartre a ter razão com Aron”, como se dizia à época — e que vislumbrou, de fato, a possibilidade de um mundo outro (prefigurado, sobretudo, pela revolução cubana); houve uma também para a qual os anos de formação se deram já, em grande medida, sob o óbice à revolução — representado, em retrospecto, pela imagem pouco acalentadora da “brecha”.10 O “ismo” mais relevante para essa segunda geração, arriscaria dizer, não é (como o fora para a geração anterior) o do trotskismo, leninismo, stalinismo, maoísmo etc., mas o do neoliberalismo; que, derrotado nas primeiras décadas do pós-guerra pelo consenso keynesiano, viria a ter nos anos de Thatcher e de Reagan seu apogeu tardio, reinando praticamente desimpedido depois de 1989 (ano do bicentenário da Revolução e da queda do muro de Berlim).

Não quero sugerir com isso que acabo de dizer que o trabalho de Sérgio se inscreve no campo do pós-estruturalismo; nem que há nele a palidez de pensamento daqueles que capitularam diante da hegemonia neoliberal. Muito pelo contrário: Sérgio, claramente, toma em mãos a chama que recolheu de seus mestres e a leva adiante — refiro-me a Claude Lefort, mas sobretudo a Marilena Chaui — trilhando, no entanto, outros e novos caminhos.

Em primeiro lugar, penso que, ao não vestir a “mochila pesada” do marxismo (retomarei esse assunto logo adiante), Sérgio confere — de maneira relativa, é claro — maior agilidade e desenvoltura a seu pensamento; que não deixa de acolher, no entanto, o núcleo da teoria da democracia elaborada por Lefort (e adaptada por Marilena, de modo originalíssimo, ao contexto político e social brasileiro dos anos de ditadura). A embocadura de Sérgio, no entanto, é outra. O modo com que elabora e articula os conceitos representa, em meu ver, um afastamento — ou uma ruptura (discreta, sem estardalhaço) — em relação a seus pontos de partida. Em suas Maquiavelianas, por exemplo, a noção de “ideologia” (cara, como é sabido, tanto a Marilena quanto a Lefort) não desempenha um papel de destaque; sinalizando, com isso, que o chão epistemológico sobre o qual Sérgio se move já não é mais o de seus mestres.

É verdade, no entanto, que tanto Marilena quanto Lefort, ao recorrerem à noção marxista de ideologia, não repõem, necessariamente, todo o conteúdo do materialismo histórico no bojo de suas teorias da democracia. Aliás, como Sérgio bem nos lembra, a noção de “indeterminação”, central para a teoria lefortiana da democracia, desembaraça aquilo que nela restou de marxismo de uma concepção teleológica da história; ao mesmo tempo livrando-a da crítica liberal ao historicismo e desviando-a do horizonte totalitário.11 O resultado desse desacoplamento, se compreendo bem a questão, é a liberação da categoria “luta de classes”, que Lefort retém de Marx apenas obliquamente — assim como o próprio Marx já a havia retido, também obliquamente, dos historiadores da Restauração.12 A luta entre as classes sociais não é mais, para Lefort, o motor de uma história teleológica — cujo télos é a revolução proletária e, consequentemente, a instauração de uma sociedade sem classes, reconciliada e transparente; ela é agora o mecanismo de produção das leis (ou, se quisermos, o próprio poder legiferante) de uma sociedade democrática. Uma vez liberada do horizonte revolucionário, a luta de classes é, então, vinculada, pelo autor, à noção de Direito — algo impensável tanto para o marxismo ortodoxo como para a tradição liberal do pós-guerras (atadas a apenas um desses polos do binômio).

Reconheçamos, não é pouca coisa o que fez Lefort, de um ponto de vista teórico, mas também ideológico: salva do marxismo, no momento em que esse é fulminado pela crítica antitotalitária, uma de suas ideias centrais — a luta de classes. Por outro lado, compatibiliza a crítica da economia política e a vocação anticapitalista do marxismo (traço característico da esquerda, desde o final do século dezenove) com a súmula dos direitos — em relação à qual o marxismo ortodoxo (ou o marxismo tout court) sempre fora alérgico. Com isso, penso que Lefort abriu o caminho para a formulação de um autêntico pensamento republicano de esquerda — sensivelmente diferente daquele advogado pelo chamado “neorrepublicanismo”, de tintura essencialmente liberal, que hoje domina, a partir do trabalho de autores anglo-saxões,13 o campo dos estudos republicanos.

No entanto, mais do que possibilitar a formulação de um pensamento republicano de esquerda, penso que Lefort ofereceu ao século vinte uma nova matriz teórica a partir da qual se pôde pensar a democracia, em oposição às já conhecidas formulações liberais — montadas, na maior parte das vezes, sobre a concepção schumpeteriana ou minimalista da democracia, em vigor até hoje no campo da ciência política.14 Ao que me parece, é a originalidade dessa nova matriz, lefortiana, que é percebida por Marilena no começo dos anos 1970. Foi Marilena Chaui, siderada pelo Trabalho da obra,15 quem nos introduziu ao pensamento de Lefort. Foi Marilena também, com esse mesmo gesto, quem introduziu, decisivamente, a questão da democracia na reflexão teórica da esquerda brasileira — à época dominada pelo paradigma da revolução. Enxergar nos movimentos sociais — que viriam a formar (numa grande confederação) o Partido dos Trabalhadores, no começo dos anos 1980 — a força motriz da democracia e seu verdadeiro poder legiferante, penso ter sido o acréscimo de originalidade conferido por Marilena à teoria da democracia (em si já originalíssima) de Lefort.

É de se surpreender, aliás, que diante de tanta originalidade fosse possível ainda inovar. Penso, no entanto, que é justamente o que faz Sérgio Cardoso com essas suas lições Maquiavelianas — dando prova, ao mesmo tempo, da fertilidade do solo em que seu pensamento deita raízes. O grande mérito do livro de Sérgio é nos oferecer uma reflexão rigorosa e original a respeito da noção de “povo” — o povo em seu sentido político e não num sentido empírico ou sociológico. Segundo Sérgio nos mostra, a partir de Maquiavel o povo deverá ser entendido, na tradição republicana, fundamentalmente, como o elemento de contestação do poder (arbitrário) dos grandes.16 O povo, portanto, não é soberano; tampouco consiste na totalidade dos cidadãos da república. Ao contrário, o povo é, essencialmente, o agente do conflito; oposição aos interesses particulares — razão pela qual, Sérgio nos dirá, ele é o portador da flama do universal.

Referi-me anteriormente à noção de ideologia, que de certa forma vertebra e estofa a reflexão de Marilena e Lefort a respeito da democracia, pois penso que ela costuma trazer consigo as noções de falsa consciência, consciência de classe, ilusão, obliteração do real, etc. De algum modo, penso que tais categorias são insuficientes para se pensar a política contemporânea.17 Não porque os fenômenos que visam descrever tenham sumido de cena; muito pelo contrário, em certos aspectos, eles parecem estar ainda mais presentes. Contudo, penso que a “redução epistemológica”, se pudermos nos expressar nesses termos, pela qual passou o marxismo de Sartre a Foucault (para nos restringirmos apenas ao balizamento proposto acima), nos obriga hoje a operar com outra concepção de verdade; e, sobretudo, com outra concepção do real — sensivelmente diferente daquela manejada habitualmente pela geração de Marilena e Lefort (ainda presa, em certo sentido, a um paradigma herdado do século dezenove).

Vivemos num tempo, sobretudo no que se refere às ciências humanas,18 em que o real dificilmente é pensado em termos de uma ontologia clássica — como um desvelamento do ser (ou do Ser, grafado em letra maiúscula) —, ou em termos das “essências”.19 Ao contrário, penso que o real tende hoje a ser pensado como uma construção discursiva; ou ainda, para usar a fórmula célebre do filósofo e antropólogo francês, recém-falecido, Bruno Latour, como simplesmente “aquilo que resiste”.20 Desse modo, a verdade — ainda que pensada em termos de um contradiscurso (que se opõe, portanto, a um discurso hegemônico, que domina e oprime) —, é, em certo sentido, igualada ao seu oposto, perdendo parte de sua força persuasiva.21

Insisto que não há propriamente no trabalho de Sérgio uma ontologia, ainda que Newton Bignotto afirme, no prefácio do livro, que o colega elabora “uma ontologia negativa do político”.22 A negatividade da qual fala Sérgio, lendo Maquiavel, não é, no entanto, de matriz hegeliana — entendida, portanto, como uma negação do dado que produziria, dialeticamente, o real. Sérgio não lê Maquiavel como um autor do “realismo político”;23 ou ainda, como o precursor da moderna ciência política.24 Reinscrevendo o segundo secretário na Florença do quattrocento e do cinquecento, Sérgio sabe que o estatuto da razão e da ciência em seu tempo é ainda pré-cartesiano; mais bem resumido, portanto, pela máxima montaigniana — segundo a qual a razão é “um instrumento de chumbo e de cera, alongável, flexível (?) e acomodável a todo viés e a toda medida”25 —, do que pelas modernas pretensões ao conhecimento científico.26

A negatividade do desejo popular em Maquiavel, ainda que muito bem determinada do ponto de vista formal — isto é, como negação da opressão dos grandes — permanece completamente indeterminada do ponto de vista de seu conteúdo, de modo a conferir à história um caráter absolutamente contingente. Não há uma classe ou grupamento social, partido ou liderança política destinados a encarnar o sujeito de uma história universal. O povo, para falar, não deve pedir licença a ninguém; sua existência depende apenas de um poder arbitrário que o oprima e de sua disposição em contestá-lo. Em verdade, na leitura que Sérgio faz de Maquiavel, a fórmula marxista da “história universal” é, de certo modo, invertida — o que era substantivo vira adjetivo, e vice-versa —, de modo que o universal aparece agora (em sentido mitigado) na forma do sintagma “universais históricos” — os objetos próprios da política, segundo o autor.


Por fim, devo apenas acrescentar que se a tarefa histórica de nosso tempo consiste, de fato, na reconstrução (ou, simplesmente, na construção) do “comum”;27 esse comum, por sua vez, deve contemplar, verdadeiramente, os setores oprimidos e marginalizados de nossas sociedades contemporâneas28 — ao mesmo tempo, operando a distinção entre eles e as massas odientas (que dão sustentação aos movimentos e regimes de tintura neofascista mundo afora); então, pelas razões expostas acima, pouco livros podem nos servir tão adequadamente de guia, para o pensamento e a ação políticas, quanto as Maquiavelianas de Sérgio Cardoso. A formação de um povo autenticamente democrático, plural, moderno, vigoroso e combativo: é esse seu horizonte político — e é ele sua maior virtude.