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Claude Lévi-Strauss, precursor humanista dos estudos sobre macroevolução cultural1

Introdução

Denilson Baniwa

A antropologia é “o estudo da natureza humana por meio do estudo da variação física e cultural humana” (Shore 2012); numa fórmula mais sucinta, é o estudo da diversidade e da cultura humana. Uso o termo “cultura humana” em razão do fato de que descobertas das últimas décadas claramente demonstraram que o aprendizado social e a cultura caracterizam muitas outras espécies animais, não apenas as dos grandes antropoides (Whiten 2021). A biologia evolucionista procura entender as origens e transformações desses organismos não-humanos.

Diferentemente dos animais, nós humanos possuímos uma cultura cumulativa, a qual inclui por exemplo nosso complexo conjunto de mitos, ornamentos corporais e tecnologias. O campo relativamente novo da evolução cultural busca entender os diversos aspectos dessa cultura cumulativa (Cavalli-Sforza e Feldman 1981; Mesoudi 2011; Antweiler 2012; Lewens 2015). A maioria dos estudos sobre a evolução cultural incide sobre os processos que levaram a mudanças culturais dentro de determinadas populações e entre cada uma delas. Aqui, instrumentos metodológicos e conceitos da psicologia, da biologia cognitiva e da ecologia comportamental são utilizados para decifrar mecanismos e padrões no nível dos indivíduos e das populações, com abordagens frequentemente experimentais. O caso é análogo ao dos estudos microevolucionistas na biologia. Tal abordagem pode envolver a criação de modelos matemáticos, examinando a dinâmica dos genes culturais por curtos intervalos de tempo (Mace 2009; Creanza et al. 2017). Outros estudos se voltam para os “vieses de transmissão” ou modos de influência, quando há troca de informação entre grupos humanos (Kirby et al. 2008).

Uma área menos explorada, mas significativa, no estudo da evolução cultural é a dos estudos interculturais e filogenéticos (Youngblood e Lahti 2018), que se voltam para o destino de longo prazo dos fenômenos culturais ou para categorizações mais amplas de práticas e materiais culturais por períodos maiores de tempo (Gray e Watts 2017; Lambert et al. 2020). Seu objetivo é documentar os padrões e formular hipóteses explicativas em processos que se situam no subsolo da rica diversidade cultural humana, tal como refletida nas línguas, nos sistemas de crença, nos mitos, nos modos de subsistência, na música, nos sistemas de parentesco e numa miríade de artefatos culturais. Nessa medida, a macroevolução cultural pode se voltar para aspectos fundamentais da história profunda (Smail 2007).

Neste ensaio, discuto de que modo os estudos macroevolucionistas da cultura encontram paralelo nas questões e nas perspectivas do trabalho de um dos mais proeminentes antropólogos do século XX, Claude Lévi-Strauss (CLS) (Sánchez-Villagra 2022)2. Esta comparação suscita algumas questões relativas à antropologia e a diferentes tradições acadêmicas. Faço referência não apenas a Tristes trópicos (1955) mas também a outros trabalhos do autor. Para o leitor não-especializado, tanto A View from Afar [tradução portuguesa: O olhar distanciado] quanto Myth and Meaning [tradução portuguesa: Mito e significado] oferecem sumários sucintos, mas ricos, dos principais traços da prolífica carreira de Lévi-Strauss. Todavia, Tristes trópicos contém efetivamente muitas, se não a maioria, das ideias centrais das publicações posteriores de CLS; na verdade, muitas destas desenvolvem materiais inicialmente apresentados naquele que Susan Sontag classificou, em 1963, como “um dos grandes livros de nosso século”.

A procura por explicações nomotéticas na obra de Lévi-Strauss

O estudo dos assuntos humanos se efetua tradicionalmente nas diversas disciplinas provenientes seja das Humanidades (Geisteswissenschaften), seja das ciências naturais (Naturwissenschaften). A citação que se segue, a respeito da antropologia, é em geral atribuída a Alfred L. Kroeber, um dos muitos alunos proeminentes de Franz Boas: “a antropologia é a mais humanística das ciências e a mais científica das Humanidades”. Talvez outra dicotomia seja mais útil neste contexto.

Em 1894, o filósofo alemão Wilhelm Windelband contrapôs-se à usual dicotomia entre as Geisteswissenschaften (Humanidades) e as Naturwissenschaften (ciências naturais), introduzindo a ideia de duas diferentes perspectivas. Processos históricos podem ser tratados por meio de explicações idiográficas e nomotéticas. Explicações idiográficas tratam de eventos específicos e de suas causas, enquanto as nomotéticas buscam estabelecer princípios ou leis gerais. Explicações nomotéticas estão presentes o tempo todo nas ciências naturais, embora também ocorram nas ciências humanas. A principal diferença entre estas e as ciências naturais pode estar em seus meios de abordagem — enquanto as Humanidades são discursivas, argumentando com palavras, os cientistas naturais fazem uso de mensurações, dados e análises quantitativas (Leroi 2022). Ciências sociais como a Economia seriam um terceiro tipo, combinando elementos de ambas (Kagan 2007).

Em seus estudos transculturais sobre parentesco, arte, formas de classificação e mitos, CLS comparou diversidades culturais e buscou explicações nomotéticas, com o objetivo de estabelecer “a unidade inteletual da espécie humana” (Doja 2008, p.325). Procurou, assim, documentar e dar conta da diversidade cultural ao identificar os pontos em comum e os princípios que os governam.

Lévi-Strauss aplicou à antropologia a abordagem do estruturalismo, na qual, dentro de um certo âmbito, partes de uma estrutura se conectam a uma rede de relações onde cada parte adquire sentido e responde a todas as outras dentro do sistema. Quando se quer entender uma parte específica por si mesma, nada se consegue; só há sucesso quando se consideram suas múltiplas interações. Desse modo, cada estrutura é única e possui sua própria rede, suas próprias definições e referências. Mas os princípios ou os mecanismos que operam dentro das estruturas, nas relações entre as partes, são universais. Essa universalidade deriva do modo pelo qual a “mente” (a neurobiologia) opera, o que é um resultado da biologia, que segue as leis da química e da física. CLS não temia o reducionismo, quando útil para a intelecção.

Na Grã-Bretanha, desenvolveu-se uma escola “neoestruturalista” no campo da antropologia cultural, que geralmente acompanhava CLS em sua abordagem comparativa mas divergia dele em seus principais objetivos (Kuper 1996). A preocupação última de CLS era entender “a mente humana”; por sua vez, os antropólogos funcionalistas britânicos estavam principalmente interessados em tentar decifrar a organização de sociedades específicas ou de grupos de sociedades (Leach 1970; Hugh-Jones 2008) — uma abordagem idiográfica.

O estruturalismo de CLS se inspirava no estudo linguístico dos fonemas, assunto rico e complexo (Maniglier 2007). Lévi-Strauss (e.g. 1963, 1978, 1985) reiteradamente afirmou que a antropologia devia aspirar ao status da linguística, uma ciência mais quantitativa e analítica. Expressou sua admiração não apenas pela linguística mas também pelas ciências naturais, com seus poderes matemáticos e preditivos, e foi decisivo nas tentativas de tornar a antropologia mais semelhante a estas.

Ao tratar da análise estrutural do mito, CLS identificava suas partes e elementos de modo a descobrir a forma de suas relações mútuas. Desenvolveu estudos em larga escala sobre os mitos, na busca de “vieses cognitivos universais” (van Schaik 2019, p.87), como os que preveem a existência de respostas a problemas de grandes dimensões, como desigualdade social, enchentes ou secas, em termos de crenças sobrenaturais (van Schaik e Michel 2016).

CLS trouxe a abstração para o estudo dos mitos, apresentando uma “fórmula canônica” que expressava matematicamente uma relação entre suas partes que presumivelmente existe através de várias culturas. Desde então, essa fórmula canônica foi reiteradamente examinada e explorada, de modo a avaliar-se sua relevância como tentativa de abstração (Mosko 1991; Petitot 2001) e mesmo de predição (Darányi et al. 2014). Em sua essência, a fórmula canônica é apenas um instrumento para expressar matematicamente algumas relações simples de correspondência nas quais elementos dos mitos podem ser analisados como partes em relação. O desafio está em identificar quais são essas partes e evitar considerar relações que podem ser espúrias — é nisso que reside o limite dessa abordagem (Turner 2009).

Na descrição de Philippe Descola (1996), a abordagem geral de CLS no estudo dos mitos é análoga àquilo que os Achuar, um grupo jívaro amazônico que vive ao longo da fronteira entre Equador e Peru, fazem com as imagens que aparecem em seus sonhos: reduzem-nas a “unidades lógicas mínimas de modo a tirar informação prática delas” (p.118). Os Achuar usam elementos oníricos não em seu valor de face, mas para extrair as operações lógicas que revelam.

Já foi afirmado que o estruturalismo não é transformativo e é incapaz de explicar mudanças, pois não oferece nenhum método para a reconstrução da origem de um sistema. Trata-se de uma crítica válida — em particular no caso do “estruturalismo britânico” (Hugh-Jones 2008). O estruturalismo carece de um método formal e numérico de reconstrução histórica — algo que vários tipos de análise filogenética na biologia são capazes de prover. Porém, os estudos de CLS eram comparativos, e um de seus principais objetivos era decifrar os padrões comuns a diferentes sistemas — como na fórmula canônica dos mitos— e com isso reconstruir o sistema ancestral. CLS visava obter reconstruções históricas e o estruturalismo era um instrumento que ele usou pragmaticamente de modo a entender fenômenos culturais dentro das sociedades, para então poder comparar sociedades. A abordagem estrutural conduziu a diferentes aplicações (Loyer 2018).

A abordagem comparativa geral e o princípio geral da abordagem estruturalista de CLS também inspiraram trabalhos analíticos relevantes para os estudos da evolução cultural. Métodos foram utilizados no estudo de mitos através do mundo (Thuilliard et al. 2018), mas num nível de generalidade que passa ao largo das especificidades e particularidades que Lévi-Strauss estudou e que levaram a críticas substanciais de sua abordagem (Turner 2009). Um exemplo recente do estudo das redes é o de como o conhecimento indígena se perde com o decréscimo das interações entre grupos, devido a processos de extinção (Câmara-Leret et al. 2019).

A procura pelo ancestral, nos estudos sobre povos indígenas feitos por Lévi-Strauss, pode ser interpretada tanto como indicação de uma analogia etnográfica ingênua (Currie 2016) ou como uma identificação do ancestral como “primitivo” num sistema orientado pelos valores do progresso. Algumas traduções das obras de Lévi-Strauss tresleem a intenção irônica no uso dos termos “primitivo” e “selvagem” na sua escrita (Loyer 2018). Um detalhe significativo: a recente tradução de La Pensée Sauvage (2020) por Jeffrey Mehlman e John Leavit tem como título Wild Thought , e não The Savage Mind (1966), como na tradução de 1966.

A obra de CLS fez uso de um vasto repertório de fontes, em diferentes línguas e com diferentes origens, incluindo informações provenientes das ciências naturais.

“Big data” e etnografia

Os estudos de macroevolução cultural recorrem a “big data” e a análises quantitativas sofisticadas (Evans et al. 2021; Aguirre-Fernández et al. 2021; Barbieri et al., 2023). Existem diversas bases internacionais comparativas de dados culturais e linguísticos, como o D-PLACE (https://d-place.org/), Glottobank (https://glottobank.org) e Seshat (Turchin et al. 2015), entre outros. A lista inclui os “dossiês da área de relações humanas” (htpps://hraf.yale.edu/), que em seus primeiros tempos foram levados à França por CLS, com seus armários especiais para arquivar documentos, antes de se tornarem digitais (Fig.1). Lévi-Strauss centralizou e apoiou o principal centro europeu de documentação etnográfica comparativa e intercultural (Bucher 2010; Loyer 2018). A obra de CLS tem alta relevância para se entender, no interior da antropologia clássica, programas de pesquisa que também se baseiam numa visão de diversidade cultural que faz uso de “big data”, com a condição de que se baseie em conhecimentos de primeira mão e na colaboração com o trabalho de etnógrafos.

Figura 1. Claude Lévi-Strauss e os HRAF em Paris. Lévi-Strauss formulou questões fundamentais a respeito da diversidade cultural e sua origem, defendendo o exame extensivo de dados para tratar delas. (Getty Images)

Gray e Watts (2017, p.7846) fizeram uma defesa entusiástica dos estudos de macroevolução cultural, pela “aplicação do tipo de métodos computacionais sofisticados que são usados com frequência nas ciências biológicas, como a análise em rede da evolução reticulada, o uso de modelos epidemiológicos, e os métodos de comparação filogenética. Esses métodos podem ser usados para comparar a importância relativa dos diferentes fatores que influenciam a distribuição de características, para modelar as dinâmicas internas à mudança evolucionária, e para inferir a história de cada característica”. Efetivamente, métodos computacionais podem ser usados para investigar diferentes variáveis na distribuição de características culturais e modelar a dinâmica interna da mudança cultural (p. ex., Ranacher et al. 2021). Estudantes de graduação no campo da evolução cultural e outros correlatos, como o da linguística comparativa, estão sendo treinados para adquirir um significativo conjunto de ferramentas quantitativas. Surgem problemas quando se intensifica o foco nos métodos e análises macro.

Tão ou mais importante do que o conhecimento metodológico, os estudos macroevolucionistas implicam um entendimento dos dados primários e dos trabalhos de campo ou de laboratório que os produzem (Slingerland et al., 2020). Um cientista não pode desenvolver análises estatísticas sem conhecer os vieses subjacentes aos dados ou ao modo com que foram coletados — só assim é possível detectar se há erros evidentes, padrões absurdos, ou efeitos sutis de agregação. A abstração inerente aos estudos da macroevolução traz desafios ao ser integrada à antropologia (Whitehouse 2012). Identificou-se como um problema importante a categorização de fenômenos culturais em características isoladas (Fuentes 2006; Slingerland et al. 2020), a ser confrontado por meio de um conhecimento de primeira mão dos dados primários e de seu contexto. Essa abordagem poderia incluir uma consideração crítica dos dados etnográficos. Esses dados poderiam ter uma grande utilidade nos estudos de macroevolução cultural, de modo a complementar os elementos obtidos em bases de dados, ou como uma fonte alternativa a abordagens experimentais que envolvam respostas humanas a situações específicas e estudos focalizados em variáveis específicas (e.g. Henrich et al. 2005). Este último aspecto foi levantado por Tehrani (2006, p. 364), ao afirmar que “em vez de focalizar subconjuntos isolados de complexos culturais, os etnógrafos tentam situar comportamentos dentro de contextos mais amplos, relativos aos significados culturais, aos fatos históricos e às relações sociais”. Uma visão semelhante, no que tange ao tratamento dos dados etnográficos pela maioria dos estudos de macroevolução cultural, está no cerne das críticas de Ingold (2007). Abordagens etnográficas certamente diferem das abordagens experimentais em estudos de microevolução cultural. Outra contribuição do ponto de vista dos estudos etnográficos de longo prazo é que podem “ajudar a estabelecer quais tradições podem com mais probabilidade ser fortemente afetadas por mudanças sociais e pelos níveis de contato intergrupal, e quais são mais estáveis e duradouras” (Tehrani 2006, p.341).

No ambiente da antropologia cultural, o trabalho de campo era um frequente rito de passagem, uma entrada costumeira nessa área de estudo. Lévi-Strauss encorajou, apoiou e em muitos casos supervisionou muitos de tais trabalhos (Descola 1996; Bucher 2010). Em linguística, existia um equivalente ao trabalho de campo, que era o de decifrar a linguagem de um grupo humano, reconstruindo, por exemplo, a gramática de uma linguagem desconhecida com a ajuda de informantes. Lévi-Strauss passou a maior parte de sua vida profissional desenvolvendo pesquisas que buscavam explicações nomotéticas para fenômenos culturais, mas seu trabalho etnográfico no Brasil, tal como descrito em Tristes Tropiques, forneceu experiências em primeira mão dos dados e de sua coleta. Na opinião dos especialistas, o trabalho etnográfico de CLS foi limitado, mas não naquilo a que conduziu nem nos futuros trabalhos etnográficos que iria inspirar (Wilken 2010; Lovejoy 2018).

Enquanto os filósofos e historiadores da Europa ocidental não transcenderam um universo conceitual particular e situado, o enfoque do antropólogo estrutural, tal como proposto por CLS, ofereceu uma visão menos enviesada da dimensão e da natureza da experiência humana, com especial atenção para os dados etnográficos. Ele foi uma liderança intelectual no questionamento do etnocentrismo e da objetividade e universalidade da história ocidental, chegando a relativizar a “noção de progresso e das conquistas da ciência e da tecnologia ocidentais” (Doja 2006, p.21). O trabalho nomotético de CLS foi etnológico, e não baseado apenas em nações WEIRD (western, educated, industrialized, rich and democratic [ocidentais, educadas, industrializadas, ricas e democráticas). Desse modo, os importantes trabalhos de Henrich e seus colegas (p. ex., Henrich et al. 2010), apontando os vieses de muitos trabalhos de psicologia evolucionista no que diz respeito às pessoas pesquisadas e às peculiaridades de um grupo social, não deixa de ter um predecessor, entre outros, na figura de CLS.

Há razões para considerar CLS como o mais proeminente antropólogo da segunda metade do século XX, assim como foi Franz Boas na primeira metade (Levy Zumwalt 2019), ao trazer para os acadêmicos e para o público em geral na Europa e na América do Norte a ideia de que “outras culturas não são tentativas fracassadas de ser como vocês; são manifestações únicas do espírito humano”, como disse Wade Davis, um divulgador de trabalhos etnográficos e etnológicos. CLS foi um grande defensor, em termos acadêmicos e práticos, da diversidade cultural e das culturas originárias. Os problemas acima mencionados são tão relevantes para os estudos de evolução cultural como, obviamente, para os da antropologia cultural clássica — são os mesmos povos e culturas que estão em questão — e CLS trouxe uma visão humanística, até hoje de grande valia, da pesquisa cultural comparativa.

O estruturalismo de Lévi-Strauss convida a uma tentativa de entender uma sociedade em seus próprios termos, apesar da bagagem cultural que um cientista ocidental traz consigo — donde a importância do trabalho sobre ontologias para melhor desenvolver uma mudança de perspectiva, ou antes, um entendimento mais aprofundado da importância de diferentes perspectivas (Wagner 2012). Entre os que se dedicam às ciências sociais, há quem enfatize a singularidade de fenômenos ou eventos históricos, e a impossibilidade de compará-los — este é um aspecto particularmente importante no que diz respeito às ontologias e ao perspectivismo nas Américas (e.g. Viveiros de Castro 2014). Situar-se dentro de outra perspectiva humana é um desafio. Talvez seja relevante fazer uma comparação com o que ocorre no estudo de diferentes espécies. Num artigo que exerceu grande influência, o filósofo Thomas Nagel (1974) argumentou que mesmo se conhecermos todos os detalhes da biologia sensorial de um morcego, seria impossível para nós, humanos, “ver” o mundo como um morcego, sem sermos nós mesmos morcegos. Comparar as dificuldades em assumir a perspectiva de diferentes espécies com o caso intra-específico dos humanos pode parecer exagerado, mas merece consideração quando se pensa na diversidade cultural humana.

Pode-se afirmar que CLS enfrentou um dos problemas que cercam o tópico das ontologias ao apresentar hipóteses sobre os universais entre os humanos na análise dos modos com que pensamos e desenvolvemos sistemas de ideias e de símbolos. Pelo menos, isto contribui para colocar todas as culturas dentro de um terreno comum: cada sistema cultural, com sua lógica derivada de princípios universais da “mente” humana (isto é, a cognição, tal como determinada pela neurobiologia e pela fisiologia), e para render homenagem e documentar cada caso individual em seus próprios termos — a despeito dos problemas reais e multifacetados que estão envolvidos em qualquer trabalho etnográfico.

Está comprovado que CLS era, em diversos aspectos, um conservador em seu gosto estético e em sua predileção por muitos aspectos do tradicional estilo de vida da Europa Ocidental (apesar de seu fascínio pela cultural japonesa, Lévi-Strauss 2011). É assim reconfortante tomar conhecimento de sua honesta admissão quanto ao que poderíamos chamar de “extravagante” em uma visão que não é o lugar-comum dos intelectuais de esquerda, ao mesmo tempo em que faz uma eloquente e fundamentada defesa da diversidade cultural e das culturas autóctones.

Claude Lévi-Strauss, “representação desdobrada” e difusionismo

Em Tristes trópicos, CLS (1955) discutiu pela primeira vez um tema que a seguir foi tratado em Antropologia estrutural (1958), a saber, o “desdobramento da representação” na arte [em inglês, “split representation”, do francês “représentation dédoublée” (NT)]. Categorizada inicialmente por Franz Boas, por volta de 1900, num estudo sobre a arte de grupos humanos na costa Noroeste do Pacífico (Jonaitis 1995: 13), o “desdobramento da representação” se refere a um modo específico de representação bidimensional de animais em superfícies tridimensionais, baseado no princípio de desenrolar e estilizar determinadas formas para que se adaptem à superfície a ser decorada. Assim, a transformação do objeto representado ultrapassa a mera distorção e estilização, ao dividir um corpo em dois conforme um eixo de simetria, e recombinando as duas metades de diversas maneiras ao longo da mesma superfície. A questão das simetrias na arte foi posteriormente tratada de modo abrangente por Washburn e Crowe (1988) em Symmetries of Culture, que introduziu um esquema classificatório baseado em princípios matemáticos alinhados à abordagem lévi-straussiana.

CLS (1955, 1958) discutiu de que modo princípios similares de simetria aplicada à representação bidimensional de corpos humanos ou de animais, ou à representação de motivos geométricos em superfícies bidimensionais, ocorria na arte da pintura corporal dos Kadiweu no Mato Grosso, que ele estudou e documentou, nas tatuagens dos Maori na Nova Zelândia, e nos bronzes neolíticos chineses. Desde então outros estudiosos investigaram esse tipo de disposição visual (Barreto 2009). A representação desdobrada de corpos humanos e animais também é encontrada na arte das populações normandas do norte da Europa e nos “desenhos em cadeia” de algumas obras da arte tribal africana (Deregowski 1970). Essa representação desdobrada, em que dois perfis compõem uma visão frontal, também ocorre na arte polinésia e foi chamada de “imagem de rosto de Jano” por Gell (1988: 195). As cerâmicas Camay na Venezuela também exibem uma versão da representação desdobrada (Figura 2, observação inédita). O eixo de simetria e a transformação pela qual as duas metades se combinam numa única superfície variam culturalmente.

CLS mencionou as similaridades interculturais por ele encontradas na representação desdobrada dentro do contexto de uma discussão crítica a respeito do difusionismo, tendência que se generalizara na antropologia durante a primeira metade do século XX. CLS (1955, 1958) criticava a especulação superficial e as ideias racistas de europeus ocidentais que eram típicas em boa parte do difusionismo, segundo o qual grupos humanos ‘primitivos’ eram vistos como destituídos de inventividade suficiente para criar alguns dos traços de cultura material que estavam sendo comparados (Storey e Jones 2011). Mas ele havia sem dúvida recebido a influência de Paul Rivet (1925, 1943) e outros ao levar em conta a transmissão cultural como meio de explicar o aparecimento de padrões culturais semelhantes em diferentes áreas geográficas. CLS tomou conhecimento dos paralelos entre as pinturas faciais Kadiweu e os motivos nas cerâmicas na bacia de Marajó e Santarém, descobertas por arqueólogos, e relatadas em um artigo do Journal de la Société des Américanistes (Loyer 2018, p.136–138). A investigação da geografia dos fenômenos culturais e de potenciais trocas no passado se tornou um interesse central de seu trabalho etnográfico.

CLS tentou dissociar a conexão causal de tais similaridades, levando em consideração questões de geografia e de tempo, e também a possibilidade de haver similaridades resultantes de convergência cultural. Trabalhos recentes têm utilizado ferramentas analíticas e o levantamento de aspectos procedurais ao tomar em consideração esses temas. Um exemplo disso é a demonstração da tecnologia das pontas de flecha aflautadas encontrada no sítio arqueológico de Manayzah (Iêmen, Sul da Arábia), convergente com as relatadas por arqueólogos do Novo Mundo em sítios do Pleistoceno tardio (Gomes de Mello Araújo e Okumura, 2021). Aqui, dados experimentais e contextuais foram usados para determinar as diferenças nos utensílios dos dois continentes, para além de suas similaridades. Havia diferenças na localização do aflautamento, no método de fabricação, que envolvia a extração de uma lasca ao longo do eixo longitudinal de uma peça de duas faces, e nas hipóteses sobre os contextos econômico, social e cultural desses utensílios (Crassard et al. 2020).

Um estudo analítico dos traços organológicos das flautas de Pã serviu para dimensionar as presumíveis similaridades nos instrumentos encontrados na América do Sul e na Oceania, que serviram como base para afirmações a respeito de uma difusão transpacífica (Sachs 1940). Embora tais similaridades de fato existam, e escapem do padrão normal de diferenciação geográfica na construção de flautas de Pã (Aguirre-Fernández et al. 2020), a datação dos instrumentos em questão torna implausível a hipótese difusionista. CLS (1955, 1958) argumentou de forma crítica contra ideias difusionistas, baseando-se também na distância temporal das alegadas semelhanças entre fenômenos culturais.

A América do Sul se manteve largamente isolada durante o Holoceno, mas existiram casos inquestionáveis de influências externas ou trocas antes de Cristóvão Colombo, como indubitavelmente demonstrado pelo estudo de plantas domesticadas (Neves 2020). Exemplos notáveis são a introdução do milho a partir da América do Norte (Kistler 2018) — ou, no sentido oposto, a disseminação do tabaco para esse continente (Tushingman et al. 2018); e também a disseminação da batata doce, dos Andes para o Pacífico: a raiz viria a ser cultivada na Polinésia e na Melanésia antes de se estabelecer a colonização do Pacífico (Roullier et al. 2013).

Figura 2. Representação desdobrada, documentada por Boas entre os Tsimshiam, povo indígena da costa noroeste do Pacífico (in Jonaitis 1995, e Barreto 2009). As cerâmicas Camay da Venezuela são outro exemplo (Basilio 1959)

Teoria da herança dual e determinismo ecológico

A teoria da herança dual (DIT) é um importante e fundamental aspecto da “evolução cultural”. Postula que mudanças genéticas e evolução cultural estão entrelaçadas e interagem (Boyd e Richerson 1980). A transmissão de traços culturais se dá através do aprendizado social, e os mecanismos da transmissão genética são aqueles delineados pelos biólogos evolucionistas. Segundo a DIT, traços culturais podem sofrer o viés de imperativos genéticos (Chekalin et al. 2018), e o mesmo se aplica à evolução genética, ao ser influenciada por traços culturais (Mace 2019).

Lévi-Strauss (p. ex. 1985) percebeu que a relação entre evolução genética e evolução cultural é recíproca. Sublinhou de que modo ambientes culturalmente mediados resultam em pressões seletivas que orientam a evolução genética. Enfatizou o impacto da cultura na evolução biológica (p. 14): “as formas culturais adotadas em vários lugares pelos seres humanos, seus modos de vida passados ou presentes, determinam em larga medida o ritmo e a direção de sua evolução biológica.” Como levantado por Loyer (2018, p.525), CLS “aproximou desse modo o biológico e o cultural, mas reverteu a dinâmica de determinação da velha antropologia física: não era que a raça conformava a cultura, mas sim que fatores culturais às vezes influenciavam o curso da seleção natural’. Do mesmo modo, Lévi-Strauss (1985) sublinhou em seu controverso ensaio sobre “raça e cultura”, no livro A View from Afar [Le Regard Eloigné/ O Olhar Distanciado], o modo com que a história evolutiva de algumas populações levou ao surgimento de traços biológicos mais adequados a alguns tipos de ambiente do que a outros.

Lévi-Strauss buscava ter “um bom conhecimento do ambiente ecológico de uma sociedade” (Descola 2009, p. 105), de modo a compreender quais traços do habitat natural influenciam o pensamento simbólico. Dedicou “meticulosa atenção à flora, à fauna, aos ciclos astronômicos e climáticos específicos dos lugares em que se originaram os mitos estudados por ele” (Descola 2009, p.105). Utilizou essas informações para entender de que modo os detalhes dos mitos variam entre as sociedades, na medida em que são influenciados pelo ambiente local. Contrastando com essa clareza de noções sobre a interação cultura-meio ambiente, e em função dos erros e abusos dessa ideia no passado, o efeito da ecologia sobre fenômenos culturais tem sido um assunto controverso na antropologia, particularmente na América do Sul.

Os “trópicos” sul-americanos têm sido o espaço predileto para concepções de determinismo ambiental que foram fortemente racializadas (Raffles 2002). A Amazônia foi inicialmente retratada como uma área de grande fertilidade e potencial, em que o fracasso da produtividade humana se devia a uma irrecuperável indolência local. Com a publicação do “Handbook of South-American Indians” (Steward 1946–1950), adveio uma reversão do discurso sobre causalidade ambiental. Àquela altura, a pobreza do ambiente natural era o que por seu turno determinava a pobreza das culturas locais. Desenvolveram-se pesquisas a partir do pressuposto de que um ambiente caracterizado por fatores limitantes também produz um desenvolvimento cultural restrito, e não mais do que formas simples de organização social. Um exemplo marcante disso foi o trabalho de Betty Meggers (1971), afirmando que “o nível até onde uma cultura se desenvolve… depende do potencial agrícola do ambiente que ela ocupa” (Meggers 1954: 815). Ela postulava que as consequências culturais de um ambiente eram previsíveis. Tais ideias ligavam-se a concepções difusionistas. Toda evidência de uma cultura “complexa” na floresta amazônica teria de ser necessariamente o resultado da transmissão a partir de outras áreas, mais ricas e produtivas.

Desde a publicação de seus trabalhos, dezenas de estudos contradisseram de vários modos as ideias de Meggers, incluindo-se aí, claro, numerosas e importantes descobertas, ainda em curso, na arqueologia da Amazônia (p. ex. Rostain e Jaimes Betancourt 2017). Trabalhos recentes possibilitaram uma compreensão mais profunda da importância do agenciamento humano e das complexidades da paisagem e do ambiente em que tal agenciamento opera (Hecht 2013). Talvez seja em função do Zeitgeist que os relatos de biólogos sobre populações animais e humanas mostrem seu descompasso com o ambiente, em função de uma plasticidade comportamental — o que resulta em padrões diversos daqueles previstos por modelos ecomorfológicos otimizados (Diogo 2017).

Problemas de tradução e convergência fracassada

O interesse de Lévi-Strauss pelas realizações universais e compartilhadas dos humanos baseava-se no empirismo e na comparação de grande quantidade de dados. Neste aspecto, seus sucessores são os psicólogos cognitivos e os neurobiólogos. É irônico que seus escritos tenham “ajudado a tornar possíveis as noções modernistas de desconstrução, de reflexividade e da natureza provisória da cultura e da identidade” (Doja 2006, p. 18). Sem familiaridade com o trabalho de CLS e suas ramificações, muitos a associaram erradamente com a teoria crítica. Esta é um ramo da antropologia que os evolucionistas culturais consideraram como nociva para seu campo, ou para toda convergência [consilience] das ciências naturais e humanas (van Schaik 2019). Geralmente, os principais representantes do campo da evolução cultural manifestam uma visão negativa da social antropologia (p. ex. Mesoudi et al. 2006; v. resposta em Tehrani 2006).

No interior da antropologia, CLS teve muitos críticos, o que não surpreende dada sua longa e prolífica carreira. Rice (2017, p. 163), em seu texto básico sobre a etnomusicologia atual, agrupou CLS junto a “teorizadores” e “pós-modernos” como Adorno, Durkheim “e mais recentemente” Foucault. Em Cooking, Cuisine and Class, Jack Goody (1982, p. 23) criticou extensamente os aspectos da obra de CLS que ele identificou com a “metafísica hegeliana” (algo que CLS explicitamente refutou em A View from Afar). Este último é um exemplo de como alguns antropólogos de língua inglesa associaram o francês CLS com um tipo de filosofia continental que eles consideram nociva ao entendimento racional — erradamente, neste caso. Diferentes tradições intelectuais podem sem dúvida estar por trás das comprovadas diferenças entre CLS e os estruturalistas britânicos (Hugh-Jones 2008). Foram os “insights” de Lévi-Strauss sobre os diferentes sistemas de pensamento nas diversas sociedades, com suas lógicas distintas, e seu questionamento da hegemonia do pensamento ocidental, que abriram caminho para o movimento pós-modernista, com o qual ele não se identificava. Numa palavra, a obra de CLS não era “pós-moderna”, se quisermos utilizar esse termo rudimentar e desgastado.

Sensibilidade histórica e societal nos estudos culturais evolucionistas — Sobre Darwin

Muitos representantes eminentes do campo da evolução cultural não tiveram temor em manifestar sua associação explícita com o “evolucionismo darwiniano”. O subtítulo do importante estudo sobre “evolução cultural” de Mesoudi (2011) é “Como a Teoria Darwinista Pode Explicar a Cultura Humana e Fazer uma Síntese das Ciências Sociais”. O livro de Laland (2017) intitula-se “A Sinfonia Inacabada de Darwin: Como a Cultura Produziu a Mente Humana”. Com efeito, esses dois autores, assim como muitos outros, fizeram importantes contribuições para a teoria evolucionista em conceitos e questões que vão além da seleção natural de Darwin e Wallace. Laland, por exemplo, liderou esforços no sentido de propor que a atual teoria evolucionista é significativamente diferente daquela presente na síntese neodarwiniana da primeira metade do século XX (Laland et al. 2014). Charles Darwin postulou a existência de uma evolução pela seleção natural sem nenhum conhecimento dos mecanismos de herança genética descobertos posteriormente. A síntese neodarwiniana (e grande parte da biologia evolucionista predominante hoje) acabou focalizando quase exclusivamente a herança genética e os processos que modificam a frequência dos genes (Mayr e Provine 1980). A nova biologia evolucionista identifica numerosos processos pelos quais os organismos crescem, desenvolvem-se e influenciam a evolução (Diogo 2017). Chamar de “darwinista” a evolução cultural é um erro. A macroevolução cultural se situa num campo conceitual e metodológico pluralista, no qual Darwin e Wallace estiveram entre os primeiros a fazer contribuições fundamentais — não mais do que isso, porém.

Os avanços teóricos nos estudos de evolução cultural se voltam para assuntos constituídos por diversas ideias e áreas que surgiram depois de Darwin. Incluem, entre outros, a teoria da herança dual, discutida acima, assim como dados sobre macroevolução que se beneficiaram de estudos sobre extinção (Zhang e Mace 2021), e temas como vieses nos relatos sobre o passado (Perrault 2019).

Chamar a evolução cultural de “darwiniana” é seguramente um desserviço quando se quer torná-la um campo atraente para os antropólogos. A história do uso do darwinismo nas ciências sociais é predominantemente funesta, e apenas isso já justificaria o emprego de algum outro termo. Discutir a pessoa de Charles Darwin pode ser controvertido (Fuentes 2021); Darwin (e Wallace) eram homens de seu tempo (Braun et al. 2017), mas isto não está em pauta aqui.

Darwin avulta de tal modo que reconfigurou a história da biologia e nos faz esquecer outros gigantes intelectuais que o procederam, como Goethe (busca por universais, comparações) e Cuvier (extinção), que seguiram em última análise os passos de Aristóteles (Leroi 2014). Que Darwin seja tão idolatrado é algo que corresponde certamente aos seus “insights”, a seu “gênio” (Wilkins 2009) e a sua influência, mas sem dúvida também ao processo cultural evolutivo em que uma estória cumulativa da ciência encontra seu ápice no mundo anglo-saxão. Seria absurdo negar os vários e brilhantes “insights” de Darwin; mas é possível descartar com facilidade, por exemplo, suas ideias significativamente erradas sobre herança (Darwin 1868). Limitar nossas referências históricas sobre evolução cultural a Darwin, ignorando um quadro de antecedentes muito mais rico, seria um equívoco.

Para que a evolução cultural contribua para uma virada no estudo da cultura humana, é necessário sintetizar diferentes áreas e procurar convergências (Slingerland e Collard 2012): nesse sentido, ela tem de se tornar mais sofisticada e sensível às questões do passado e do presente. Há figuras históricas importantes na antropologia que empreenderam trabalhos comparativos e de pesquisa historiográfica, até mesmo emprestando conceitos da biologia evolucionista, como na discussão feita por Margaret Mead sobre a micro- e a macroevolução na biologia e na cultural (Schwartz e Mead 1961). Argumentei, aqui, que CLS é uma dessas figuras centrais na antropologia.

Quo vadis “macroevolução cultural”?

A “evolução cultural” se desenvolve em seu próprio campo, com sua própria associação, congressos e revistas. Isso indica maturidade e massa crítica, mas ocorre ao custo de uma falta de integração com a antropologia, quando na verdade ela está preocupada com questões que foram tratadas por essa disciplina. A prática dos estudos de macroevolução cultural poderia beneficiar-se de um século de pesquisas, incorporando alguns aspectos da tradição humanística da antropologia. Isto pode não se traduzir ponto por ponto na incorporação de um método específico de análise, nem em algum novo banco de megadados, mas poderia trazer um senso de profundidade e erudição, e com isso uma prática mais crítica, nuançada e integradora para a disciplina. Poderia ajudar no aparecimento de uma convergência entre ciências naturais e sociais que, até agora, não foi alcançada. Evitaria o que poderíamos chamar de “efeito Wilson”, a partir do autor de Sociobiology (1975) e Consilience (1998) — a saber, tudo aquilo que acontece quando surge uma tentativa de aproximação a partir das ciências naturais por meio de ideias que são na verdade estreitas em sua falta de pluralismo e destituídas de problematização e consciência histórica; o resultado acaba sendo um distanciamento entre as disciplinas (Shweder 2012).

Gray e Watts (2017, p. 7846) afirmaram que “a combinação de grande número de dados e métodos computacionais tem o potencial de transformar as ciências sociais e as humanidades ao possibilitar testes quantitativos poderosos para hipóteses que anteriormente só poderiam ser analisadas de forma muito mais limitada”. Embora eu participe do entusiasmo com relação à importância dessa abordagem, considero que está muito claro que essa “transformação” (talvez expansão seja um termo melhor) não ocorrerá a menos que exista um engajamento com os importantes temas e conceitos que foram desenvolvidos pelas ciências sociais e pelas humanidades. A rica história intelectual da antropologia fornece elos e pistas para tal comunicação se desenvolver, e CLS é uma das figuras mais apropriadas, se não a mais, para servir como referência nessa tarefa.

Pode-se argumentar que as abstrações de CLS e o recurso a “big data” não se valem de abordagens evolucionistas. Mas o importante é enfatizar a importância de abordagens históricas e comparativas, na medida em que “forçam os investigadores a definir seus termos, a fazer um uso consistente de suas categorias, e de modo geral disciplinar a utilização de seus dados” (Bridgeman 2006: 351). Há muitas razões para dizer que “não é de modelos evolucionários, mas de modelos em geral que a ciência social necessita” (Bridgeman 2006). Como afirmado por Bridgeman (2006, p. 351), “… o valor dos modelos pode derivar não tanto de sua relação com a teoria evolucionista, e mais do modo com que força os investigadores a definir seus termos, a fazer um uso consistente de suas categorias, e de modo geral disciplinar a utilização de seus dados”.

Se um método é apenas uma ferramenta e não um fim em si mesmo, segue-se que os estudos de macroevolução cultural são apenas uma antropologia com novas ferramentas. Ignorar o rico “background” dos estudos da cultura tornaria a “evolução cultural” uma atividade paroquial. Incorporar seus esforços no campo da antropologia, por outro lado, ajudaria a contornar a falsa associação entre evolução cultural e darwinismo social. Muitos biólogos se queixam do “pós-modernismo” em antropologia — uma generalização grosseira e simplista que na verdade recobre diferentes tendências e abordagens nas ciências sociais e nas humanidades.