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Lições de entropologia: Tristes trópicos, A queda do céu e a teoria literária

Mais do que antropologia, teria que se escrever “entropologia”, nome de uma disciplina dedicada a estudar em suas mais elevadas manifestações esse processo de desintegração.

Claude Lévi-Strauss, Tristes trópicos, p. 442.

Denilson Baniwa

O século XX foi sobretudo etnográfico no sentido clássico e positivo do termo. Se Freud havia comparado a descoberta do inconsciente a uma população aborígene da psiquê1 (2010: 138), o efeito etnográfico dos saberes abrangeu praticamente todos os movimentos das vanguardas históricas, cujo caráter mimético teve por base enquetes etnográficas como impulsos originários que encontraram no ocidente um destino plástico, a considerar, sobretudo, o caso do cubismo. Mas Tristes trópicos não é uma obra etnográfica no sentido puro, muito menos é um texto literário e o problema de gênero trazido por ele o mantém em permanente novidade. Com uma vasta fortuna crítica desde que foi publicado, em 1955, existem pontos que, todavia, se reorganizam em torno de um momento posterior à etnografia no sentido de um projeto modernista, cujo “outro”, fora do quadro ocidental ou ocidentalizado, não se situa nas categorias selvagem ou primitivo, mas na abertura a outros ritmos de vida. Derivando desse espírito, pode-se imaginar uma “entropologia” como um tópico para uma teoria literária no século XXI, sobretudo no que ela poderia aprender com a antropologia.

Para esboçar melhor a hipótese, a ideia consiste em por em contato Tristes trópicos com A queda do céu, dado que, por intermédio de Bruce Albert, Claude Lévi-Strauss entrou em contato com o relato de Kopenawa em 1997, cujo fragmento de Lévi-Strauss que serve de epígrafe para o último livro testemunha. Anunciada essa hipótese, convém, em guisa de introdução à “entropologia”, citar a elipse demarcada em Tristes trópicos:

Desde que começou a respirar e a se alimentar, até a invenção dos engenhos atômicos e termonucleares, passando pela descoberta do fogo — e salvo quando ele próprio se reproduz —, a única coisa que o homem fez foi dissociar tranquilamente bilhões de estruturas para reduzi-las a um estado em que não são mais capazes de integração. Por certo, construiu cidades e cultivou campos; mas, quando se pensa bem, esses objetos são eles próprios máquinas destinadas a produzir inércia num ritmo e numa proporção infinitamente maiores que a dose de organização que implicam. Quando às criações do espírito humano, seu sentido só existe em relação a ele, e se confundirão com a desordem tão logo tenha ele desparecido. Tanto assim que a civilização, tomada em conjunto, pode ser descrita como um mecanismo fantasticamente complexo no qual ficaríamos tentados a enxergar a oportunidade que nosso universo tem de sobreviver, se sua função não fosse fabricar aquilo que os físicos chamam de entropia, quer dizer, inércia. Cada palavra trocada, cada linha impressa estabelecem uma comunicação entre os dois interlocutores, tornando estacionário um nível que antes se caracterizava por uma defasagem de informação, portanto, por uma organização maior. Mais do que antropologia, teria que se escrever “entropologia”, nome de uma disciplina dedicada a estudar em suas mais elevadas manifestações esse processo de desintegração.

(1996 [1955]: 442)

Essas linhas se situam no antepenúltimo parágrafo do livro. Haveria nelas um projeto futuro destinado a um leitor que sentisse nesse gesto desconstrutor de Lévi-Strauss, seu momento “pré-pós-estrutural”? Em todo o caso, cabe aqui endereçá-las à literatura, suas figurações em torno de “palavras trocadas” e linhas impressas.2 O humano é uma ficção antropológica, cujo maquinário mantém uma ordem originária em desordem. Essa lição ultrapassa todo o mimetismo da escrita: ela se baseia ainda em postulados concretos com o qual se enfrenta: “o mundo começou sem o homem e se concluirá sem ele” (2018 [1955]: 495). Essa é uma mensagem dos trópicos que visa um tipo de homem que, no seu estado negativo, precisou dissociar-se do mundo ao dissociar as estruturas mínimas como o átomo, mas também, no âmbito da linguagem, fonemas, morfemas, além das unidades mínimas de significado. Da bomba atômica ao significante, a “entropologia” pode ser uma ciência que rastreia os processos de desintegração da matéria em nome da modernidade e do progresso.3

A dimensão entrópica entra em um jogo conceitual que se pode analisar a partir daquilo que Jacques Monod, em Le hasard et la necessite [O acaso e a necessidade], dissocia da percepção humana, os objetos naturais ou artificiais4 (1970: 19–20). Lévi-Strauss colocaria em outros termos, “hasard et civilisation” (“acaso e civilização”, 1973: 405), como se pode ler em uma parte de seu ensaio “Humanisme et humanités”, do segundo volume de Antropologia estrutural. Patrice Maniglier, em 2006, em La vie enigmatique des signes [A vida enigmática dos signos], mapeia, sobretudo a partir de Ferdinand de Saussure, um chamado às significações (“faire appel aux significations”) (2006: 13) a partir de um método estrutural que estabelece unidades de sentido, cujo modelo é, por excelência, linguístico.5 Afinal, seria esse chamado para Saussure que nos levaria a realizar cortes na cadeia contínua dos sons humanos. Ambos princípios com os quais Lévi-Strauss teve um diálogo muito próximo, as ciências exatas e a linguística, contribuem tanto para o que se entende entre “humano” e “mundo”. A partir de Lévi-Strauss, a componente etnográfica é um traço ético e comportamental do mundo humano que alcançou uma especificidade.

Outros dois caminhos se abrem para uma “entropologia”. Um deles vem da comunidade dos espectros, de Fabián Ludueña Romandini, onde é esboçada uma zoopolítica. Ao referir-se a Tristes Trópicos, ele observa uma “filosofia do devir da espécie humana” (2020: 220). Nas palavras de Ludueña: “a politização da vida que deu origem ao devir histórico do animal humano, com suas complexas antropotecnologias que se expandiram até a dominação completa do entorno, fazendo-o progressivamente cada vez mais técnico, inevitavelmente articificial e humano, só pode conduzir a uma única via de saída da saturação biosistêmica” (2020: 220–221). Lévi-Strauss marca uma escala espaciotemporal para a espécie humana, situando-a não em termos de uma periodização histórica, pois, pela própria técnica o homem, em toda a sua artificialidade, vive as consequências do seu humanismo. Criticando o humanismo, Georges Didi-Huberman elabora o conceito de “semelhança inquieta” (“ressemblance inquiète”, 2023: 9). Vale confrontar uma citação de Georges Didi-Huberman antes de prosseguir com as últimas páginas de Tristes trópicos, segundo ele:

A semelhança é inquietante tanto quanto ela é inquieta. Sem dispor de repouso ontológico, ela não fica parada em um lugar: sempre passageira, migrante dali e daqui, sempre frágil, ela é suscetível de se desfazer diante da menor mudança para se reconstituir em outro lugar. Incessantemente, ela nos inquieta de volta: nos põe em movimento, nos agita — entre desejo e ameaça — do mais profundo da nossa vida corporal, psíquica, estética, social, histórica… nós que, no entanto, nunca paramos de convoca-la mais ou menos conscientemente, como se ela pudesse nos acalmar com o que quer que seja sobre nossa identidade ou as dos outros.

(2023: 9)

Os estranhamentos da identidade, dos laços sociais, da representação fazem parte de uma inquietação antropológica que não encontra refúgio “nem na psicologia, nem na metafísica, nem na arte” (2018 [1955]: 496) como imaginou Lévi-Strauss ao nomear uma sociologia de um novo gênero (2018 [1955]: 496) ou, ainda, sem gênero, híbrida na sua entropia. As últimas páginas de Tristes trópicos são inquietas, elas provocam uma inquietação que assinala uma mudança contínua na qual se passa dos tristes trópicos aos trópicos entrópicos, dado que os trópicos assinalam, diferentemente do clima temperado do velho mundo, um estado de transformações e inquietação contínuas.

Acolher essas lições de entropologia nos estudos literários implica em articular a teoria da literatura com a etnografia. É nesse sentido que Tristes trópicos e A queda do céu se comunicam em duas temporalidades propostas. A primeira implica em adotar uma perspectiva borgiana, propondo Davi Kopenawa como autor de Tristes trópicos, e, a segunda, uma ação xamânica dos paratextos na qual as figurações de dois sujeitos na posição de autores, Lévi-Strauss e Kopenawa, se misturam e produzem uma queda em abismo para traduzir a expressão francesa que marca o movimento contínuo da experiência da mise en abyme a partir da entropologia.

Davi Kopenawa, autor de Tristes trópicos

No prefácio da edição brasileira de A queda do céu, Eduardo Viveiros de Castro evoca o “sertão cósmico” que inscreve a obra de Kopenawa e Albert em diálogo com a obra-prima de João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas, publicada no Brasil em 1956. A quase simultaneidade das publicações, Tristes trópicos, em 1955 e Grande sertão: veredas, no ano seguinte, expõe um laboratório estrutural e estruturante que é o Brasil. Ainda evocando o prefácio de Viveiros de Castro, há nele uma afirmação que alimentou a hipótese aqui apresentada, a saber, a que o livro de Albert e Kopenawa seria uma variante forte de Tristes Trópicos (2015: 11). Da forma como a hipótese é apresentada, não se trata apenas de um acordo semântico, de povos condenados ao desaparecimento, enfrentando as mais diversas crises, inclusive sanitárias e humanitárias, mas há um ponto em que Albert, Kopenawa e Lévi-Strauss ao exporem os “bastidores da primeira pessoa”, mostram uma complexa rede de relações que mantém a simplicidade de um texto que, embora nunca seja definitivo ou com os sentidos fechados, estão em constante reelaboração além de contextos específicos onde foram gerados.

O ponto de contato entre Lévi-Strauss e Kopenawa é Bruce Albert. É preciso recortar alguns momentos de seus textos para ressaltar algumas imagens que vem sob a forma de iluminações para a nossa hipótese de trabalho, dado que, surge outra figura fundamental para o livro, Jean Malaurie, diretor da célebre coleção Terre Humaine onde foi publicado Tristes Trópicos. Essa “maiêutica” estabeleceu “um centro de gravidade narrativo” para A queda do céu: “A solidão do trabalho de campo, a amizade dos xamãs e um certo gosto pela rebeldia instauraram entre nós uma cumplicidade que para mim assumiu a forma de uma verdadeira maiêutica” (Albert, 2015: 534). Esse centro de gravidade narrativo só poderia ter vindo a partir de encontros entre mundos distintos: a floresta amazônica e a Normandia não são apenas coordenadas geográficas, mas toda uma dimensão cósmica de uma entropologia literária.

Se Albert faz referência a Flaubert, com Madame Bovary, ele também pende em direção a Borges para referir-se ao seu texto labiríntico: “sutil intermediário entre mundos e saberes, ele [Malaurie] acabou conseguindo guiar minha aventura de escrita xamânica a bom porto. Meu texto labiríntico pôde assim finalmente encontrar uma forma e uma arquitetura que me satisfazem, se não como texto definitivo, ao menos como uma versão aceitável, pois, como escreveu Jorge Luis Borges: “O conceito de texto definitivo só pode decorrer de religião ou de cansaço”. O espaço da citação se expande por tensões internas, aspas dentro de aspas, mas também pela ação — xamânica — de paratextos (Genette, 1987) que será desenvolvida na segunda parte do presente estudo. Um “pacto etnográfico” não tem apenas dois actantes, há sempre grupos nos bastidores da primeira pessoa que, para que ela exista, ora surge Bruce Albert, ora Jean Malaurie, ora Claudia Andujar, ora Hervè Chandès, ora Davi Kopenawa. São transformações contínuas de “eus” que seguem em contato com Claude Lévi-Strauss.

Diante desses deslocamentos, ocorre a conjectura se Bruce Albert seria um passeur, isto é, aquele que transita entre mundos, traduzindo justamente a espessura das suas passagens. Por essas passagens, Albert evitou caminhos tais como o do “redator ausente” ou do “escritor-fantasma” para evitar fazer de Kopenawa um informante privilegiado. Sendo alguém que levou a condição de passeur aos limites, poderia se afirmar que A queda do céu é uma grande escrita das passagens, não tanto no modelo benjaminiano das passagens parisienses, mas no sentido de veredas, passagens do sertão, que aqui trazem de volta não apenas João Guimarães Rosa, mas Claude Lévi-Strauss que soube fazer da condição de passeur uma espécie de atletismo de si. Na entrevista com Georges Charbonnier, ele afirma: “Quando se estuda sociedades diferentes, pode ser que seja necessário mudar o sistema de referência — e isso, é uma ginástica difícil. Além disso, é uma ginástica que só a experiência de campo pode ensinar. É inconcebível, impossível, ser um etnólogo no quarto” (1961: 18). Outra passagem cara a Lévi-Strauss seria o próprio desenho feminino caduveo, nas palavras dele, “essas composições sábias, assimétricas que permanecem equilibradas, começaram partindo de um canto qualquer e foram conduzidas até o fim sem hesitação nem rasura” (2018 [1955]: 214). Esse não deixa de ser um exemplo da baixa produção de entropia e um fluxo que, seguindo seu pensamento, busca manter-se impermeável ao tempo histórico.

Pouco a pouco, A queda do céu ganha visibilidade e legibilidade na história recente das artes e da literatura no Brasil. Isso não implica em estabelecer um caminho canônico para o livro, mas movê-lo para a entrada de um pensamento que não tinha circulação entre símbolos e signos na comunicação entre sujeitos no ocidente. Tristes trópicos é um livro que segue por um terreno que vem longamente sendo preparado, primeiro por Montaigne, por Rousseau, mas também por Freud, por Saussure, por Roman Jakobson, de modo que as margens de onde Kopenawa articula simultaneamente pensamento e fala, emergem como uma tradição paralela que encontra um lugar onde os mundos, ianomâmi e napë (não-indígena ou estrangeiro), não entrem em rota de colisão como tem sido a realidade descrita por Kopenawa. O xamã ianomâmi conhece a entropologia a partir da realidade da floresta com garimpeiros e pandemias. Se de um lado existe uma entropologia, própria ao “desencantamento do mundo” na expressão de Max Weber para designar a modernidade; por outro, emerge uma cosmovisão, que é uma cosmopolítica capaz não de reduzir ou para com a produção maquinal entrópica que já independe do homem, mas de realizar algo muito mais delicado como aprender concretamente a sonhar. A narração começa com Kopenawa se endereçando a Albert:

Faz muito tempo, você veio viver entre nós e falava como um fantasma. Aos poucos, você foi aprendendo a imitar minha língua e a rir conosco. Nós éramos jovens, e no começo você não me conhecia. Nossos pensamentos e nossas vidas são diferentes, porque você é filho dessa outra gente, que chamamos de napë. Seus professores não o haviam ensinado a sonhar, como nós fazemos. Apesar disso, você veio até mim e se tornou meu amigo. Você ficou do meu lado e, mais tarde, quis conhecer os dizeres dos xapiri, que na sua língua vocês chamam de espíritos. Então, entreguei a você minhas palavras e lhe pedi para leva-las longe, para serem conhecidas pelos brancos, que não sabem nada sobre nós. Ficamos muito tempo sentados, falando, em minha casa, apesar das picadas das mutucas e piuns. Poucos são os brancos que escutaram nossa fala desse modo. Assim, eu lhe dei meu histórico, para você responder aos que se perguntam o que pensam os habitantes da floresta.

(Kopenawa, 2015: 63)

Aprender a sonhar implica em praticar uma ginástica difícil (pénible) próxima daquela de Lévi-Strauss na qual a primeira pessoa do singular não fica com uma “intimidade resignada”, mas no fato concreto em deixar de ser um fantasma, isto é, aprender a língua para rir juntos. Essa entrada alegre na comunidade ianomâmi é um início de uma jornada que implica em compartilhar a existência da primeira pessoa. Entre mutucas e xapiri, uma linguagem floresce na escala única da convivência. Trata-se da invenção de uma pessoa híbrida, com quatro mãos, com modos de pensar autóctone e alóctone e que, mantendo diferenças, compartilham problemáticas semelhantes, como definira Patrice Maniglier a propósito do campo estrutural. Situar Kopenawa na condição de autor de A queda do céu não implica em identificar formas variáveis em conteúdos recorrentes, mas de tentar encontrar formas invariantes em conteúdos distintos como afirmou Lévi-Strauss a propósito de um método estrutural, o que nos faz voltar à afirmação de Eduardo Viveiros de Castro, buscando compreender a “variante forte” no “princípio dinâmico da mitopoese” (2015: 11). A referência feita ao ensaio de Mauro de Almeida, “a estrutura canônica do mito” (2009), abre, no espaço do prefácio, uma mise en abyme onde circula a estrutura dos mitos em uma rede paratextual.

Nesse jogo aberto de citações, Bruce Albert é um tecedor sagaz. Abrindo mão dos gêneros ou nós auto, etnobiográficos ou autoetnográficos, ele contribui para manter o campo semântico do texto limpo, claro, já enunciado no título A queda do céu; enquanto que a ação xamânica do texto ocorre numa dimensão paratextual. Para voltar à referência de Borges, Albert cita o livro mais paratextual do autor argentino: Prólogo y un Prólogo de Prólogos, de 1975. Como Borges escreveu que “o [prólogo] de muitas obras que o tempo não quis esquecer é parte inseparável do texto”. Lévi-Strauss o relacionaria com a estrutura dos mitos que nos leva a constatações contraditórias (1974: 237), como escreveu na “Estrutura dos mitos”, ensaio que foi publicado originalmente em inglês no mesmo ano que Tristes trópicos. Nesse ensaio está um grande salto de Lévi-Strauss na leitura e compreensão dos mitos, pois neles tudo pode ocorrer, pois no mito não existe uma subordinação às regras de lógica ou de continuidade (1974: 237). Diferentemente do papel do signo na linguística com Saussure, a arbitrariedade do mito entra em um jogo de aparências, cuja semelhança nas mais diversas partes do mundo, para o afirmar com Georges Didi-Huberman, é inquieta? Imerso nesse percurso textual, as palavras de Kopenawa acionam uma ginástica xamânica. Mas a épica de Kopenawa entre a floresta e o mundo dos brancos não é estruturada no metro heroico. Ao tentar se tornar “branco”, o máximo que Kopenawa conseguiu foi pegar uma tuberculose (Albert, 2015: 46). Foi hospitalizado que ele pode aprender algumas noções de português e também ter a noção da ameaça que “O povo da mercadoria” representa para a floresta e seu povo que são indissociáveis. É nesse prólogo que Albert apresenta seu duplo Kopenawa. Nessa posição de primeira pessoa compartilhada um é outro do outro. Essa solidariedade amarra o fio narrativo entre ambos: “Seus relatos e reflexões, que coletei e transcrevi em sua língua, antes de reordená-los e redigi-los em francês, propiciam uma visão inédita, tanto por sua intensidade poética e dramática como por sua perspicácia e humor, do malencontro histórico entre os ameríndios e as margens de nossa civilização” (Albert, 2015: 43).

Os registros do depoimento de Davi Kopenawa não cabem nos cânones autobiográficos clássicos (nossos ou dos Yanomami). Os relatos dos episódios cruciais de sua vida mesclam inextricavelmente história pessoal e destino coletivo. Ele se expressa por intermédio de uma imbricação complexa de gêneros: mitos e narrativas de sonho, visões e profecias xamânicas, falas reportadas e exortações políticas, autoetnografia e antropologia simétrica. Além disso, este livro nasceu de um projeto de colaboração situado na interseção, imprevisível e frágil, de dois universos culturais. Sua produção, oral e escrita, foi portanto constantemente atravessada pelas visadas discursivas cruzadas de seus autores, um xamã yanomami versado no mundo dos brancos e um etnógrafo com longa familiaridade com o de seus anfitriões6

(Albert, 2015: 50–51)

A citação não deixa de funcionar como um laboratório textual em que se pode pôr em ação uma etnografia literária de universos culturais contaminados um pelo outro. Os problemas de representação literária estão postos lado a lado com os limites da etnografia que, no final do século XX, encontra modelos de esgotamento no sentido positivista de uma ciência que teve por base, para se aproximar de Lévi-Strauss, de uma etnologia religiosa com Tylor, Frazer e Durkheim (1974: 235) dado que a crença e seus limites da representação serviu de base para séculos de colonização. Talvez, e essa é uma hipótese de trabalho, seja por outras modalidades que não buscam novas figurações, mas “longas familiaridades” que a formação adquirida por um trabalho de campo, no campo etnológico e etnográfico, pode contribuir para a literatura no sentido que não é tanto a ruptura com modelos estabelecidos que vai gerar uma nova representação. Tristes trópicos e A queda do céu são textos que merecem ser lidos à luz de uma etnografia literária. Não que isso implique um mimetismo etnográfico, mas, ao estabelecer, por exemplo, ambos textos como um campo de leitura, novas figurações emergem: são lições de entropologia.

A literatura pode fornecer métodos de desaceleração das desordens da matéria. Não é o “poético” que é resumido como efeito entorpecente para afirmar o território da literatura por metáforas e alegorias, pois o símbolo não age apenas por essas duas vias da linguagem. Tampouco o caráter mimético não se resume à imitação que, no caso dos povos indígenas, os cantos, os artefatos são inseparáveis de uma forma rítmica de existência. Junto à etnografia, a literatura se aproxima de uma experiência única que deve ser constantemente posta à prova da figuração: o fantasma do trabalho de campo cede espaço a uma imaginação relacional que vai ocupando a mancha gráfica de páginas para explicar costumes sociais, religiosos, acontecimentos mais gerais, de modo que o antropólogo se torna entropólogo ao fazer entrar no circuito ocidental outros modos de coexistir no mundo. A literatura faz isso de outro modo, seus instrumentos, a poética e a mimesis, considerando Aristóteles e Auerbach, são autores que se tornam fundamentais para um “trabalho de campo” em textos limítrofes como Tristes trópicos e A queda do céu, sobretudo se articulados na relação entre espírito humano e natureza. É Luiz Costa Lima que em 1968 organizou um livro importante para o campo teórico da literatura: O estruturalismo de Lévi-Strauss. Em sua leitura, “como peça da natureza, o espírito humano exerce um trabalho de ordenação e disposição o quanto possível simétrico e homologal dos conjuntos” (1968: 18). E isso vale para a poesia e um aparato mimético que pode ser extraído dos livros citados. Além disso, continua Costa Lima: “Como peça do homem, o espírito se realiza mediante a incessante tarefa de simbolização, o que vale dizer, de transfiguração e reagenciamento” (1968: 18). A dimensão etnográfica de Lévi-Strauss a Bruce Albert, passando por Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo Viveiros de Castro, para citar apenas dois nomes, foram se transfigurando e se reagenciando para além dos modelos canônicos da própria etnologia e que esse movimento contínuo do campo pode ser uma zona extremamente produtiva para as reconfigurações do campo dos estudos literários. Nem Tristes trópicos nem A queda do céu são livros que tiveram um objetivo literário. No entanto, há fatos literários que podem ser delimitados nos seus respectivos campos textuais. É por isso que Kopenawa passa a ser um autor — ainda que esse termo sirva mais para situar uma passagem ou uma autoridade daquele que sabe a importância física e espiritual da passagem — chave para as reconfigurações do efeito etnográfico.

Marilyn Strathern, ao situar “efeito etnográfico” no século XX, atentou para o local duplo: o campo e o gabinete. Ao chamar a atenção para o tempo, mais que o espaço, como um eixo principal para o isolamento ou imersão (1998: 1), ela situa a etnografia nos limites da história. Ainda buscando tornar a hipótese tangível, cabe se perguntar se estamos próximos de um equívoco que consiste em aproximar a literatura do mito, ou das redes sincrônicas que o mito abre feito uma onda semântica que transporta o sentido até seu esgotamento à próxima onda. É pelos destroços que emerge o pensamento de Kopenawa.7 Isso implica que, para a literatura, poética e mimesis, não se referem apenas a livros, mas a uma experiência mais ampla como as palavras, os pensamentos e a ausência de livros as quais se referem Kopenawa em dois momentos. O primeiro deles é o conhecimento xamânico da floresta:

Nossos pensamentos se expandem em todas as direções e nossas palavras são antigas e muitas. Elas vêm de nossos antepassados. Porém, não precisamos, como os brancos, de peles de imagens para impedi-las de fugir da nossa mente. Não temos de desenhá-las, como eles fazem com as suas. Nem por isso elas irão desaparecer, pois ficam gravadas dentro de nós. Por isso nossa memória é longa e forte. O mesmo ocorre com as palavras dos espíritos xapiri, que também são muito antigas. Mas voltam a ser novas sempre que eles vêm de novo dançar para um jovem xamã, e assim tem sido há muito tempo, sem fim.

(Kopenawa, 2015: 75)

O segundo situa o pensamento dos brancos:

O pensamento dos brancos é outro. Sua memória é engenhosa, mas está enredada em palavras esfumaçadas e obscuras. O caminho de sua mente costuma ser tortuoso e espinhoso. Eles não conhecem de fato as coisas da floresta. Só contemplam sem descanso peles de papel em que desenham suas próprias palavras. Se não seguirem seu traçado, seu pensamento perde o rumo. Enche-se de esquecimento e eles ficam muito ignorantes. Seus dizeres são diferentes dos nossos. Nossos antepassados não possuíam peles de imagens e nelas não inscreveram leis. Suas únicas palavras eram as que pronunciavam suas bocas e eles não as desenhavam, de modo que elas jamais se distanciavam deles. Por isso os brancos as desconhecem desde sempre.

(Kopenawa, 2015: 75–76)

Esse marco pode muito bem se enquadrar em uma lição de entropologia, cujo jogo de reflexos entre palavras, pensamento e espírito encontra concretamente a diferença entre os mortos e os vivos. Há uma dimensão quixotesca na segunda descrição de Kopenawa. A partir dessa combinação de experiências com a palavra e o pensamento — duas mimesis, duas poéticas — pode-se ler a operação borgiana que foi posta em paráfrase: “Pierre Menard, autor del Quijote”, uma breve narrativa publicada na revista Sur em maio de 1939 e depois em Ficções, de 1944. Nessa conhecida narrativa para quem é familiarizado com literatura hispano-americana, Borges inventa um personagem, Pierre Menard, que conseguiu realizar o gesto radical de escrever El Quijote, de Cervantes sem, com isso, mudar uma única vírgula de lugar do dito texto original: “O método inicial que imaginou era relativamente singelo. Conhecer bem o espanhol, recuperar a fé católica, guerrear contra os mouros ou contra os turcos, esquecer a história da Europa entre os anos de 1602 e de 1908, ser Miguel de Cervantes” (2007: 39). A empresa não entra naquilo que Borges chamaria de “prazer plebeu do anacronismo ou (o que é pior” de nos deleitar com a ideia primária de que todas as épocas são iguais ou diferentes” (2007: 38). Borges não apenas fornece qualidades espaciais ao tempo, o que lhe permitiria de entrar em uma antropologia especulativa, como atenta aos signos concretos de um estruturalismo fantástico que situa o Quixote como um livro contingente e não necessário (2007: 40). Além disso, deriva-se daí a contigência de Cervantes e a necessidade de Pierre Menard: “Compor o Quixote em princípios do século XVII era uma empreitada razoável, necessária, quem sabe fatal; em princípios do século XX, é quase impossível. Trezentos séculos não transcorreram em vão, carregados como foram de complexíssimos fatos. Entre eles, para apenas mencionar um: o próprio Quixote”. Ler Tristes trópicos depois da publicação de A queda do céu, é uma experiência menardiana. As duas obras produzem uma polaridade que permite uma nova articulação sincrônica se ficarmos inscritos nas teorias literárias e na história da literatura no Brasil. Em A queda do céu existe uma operação similar na qual em uma ordem extra-mimética Bruce Albert compõe a voz de Kopenawa, primeiro constituindo-a por escrito em Yanomami, depois em francês, de modo que o diálogo entre ambos ocorre no limiar do registro textual de “Meu Tio, o Iauaretê”, de João Guimarães Rosa, texto que foi publicado na revista Senhor, em 1961.

Albert se prestou a ser interlocutor, ocupando o espaço da escuta da história de Kopenawa, deslocando a escuta do viés psicanalítico para a cena etnográfica. Provavelmente o Pierre Menard aqui é Kopenawa, que procura situar a queda do céu como um acontecimento entropológico. Albert, por sua vez, assume as vezes de um xamã textual, pois articula desenho, escrita, prefácios, posfácios, notas e todo o aparato para a “pele de papel”, que é o livro. Para que Kopenawa apareça potencialmente como autor de Tristes trópicos, Albert abre o livro com uma citação de Lévi-Strauss, que será a última parte deste artigo.

A ação xamânica dos paratextos: Kopenawa e Lévi-Strauss ou a queda contínua

Pedro Cesarino escreveu que A queda do céu “deve ser considerado como um dos mais importantes textos produzidos até hoje por um ameríndio através do uso da escrita alfabética” (2014: 215). A frase não busca estabelecer um cânone para um texto que possui um impacto cosmopolítico não apenas pelo que é contado, mas como é narrado de modo que a indistinção entre antinomias tais como forma e conteúdo se dissolvem numa estrutura simples que, pela própria simplicidade, desarma ontologicamente o leitor. Eduardo Viveiros de Castro sinaliza que se trata de um “objeto inédito, compósito e complexo” a ponto de ser, inclusive, uma “contra-antropologia” (2015: 27). Caberia situar nesta “contra-antropologia” a posição ex-centrada na qual constitui o “diálogo entrebiográfico” de Albert e Kopenawa. É Viveiros de Castro que observa que

nem Kopenawa nem Albert são exatamente representativos de seu meio e repertório sociocultural originais — Amazônia e xamanismo yanomami, Europa e antropologia universitária francesa —, mas que é justamente essa condição de enunciadores em posição atípica, fronteiriça ou ex-centrada, que os torna representantes ideais de suas respectivas tradições, capazes de mostrar do que elas são capazes, uma vez libertas de seu ensimesmamento e de seu ‘monolinguismo’ cosmológico.

(Viveiros de Castro, 2015: 27–28)

Será a partir dessa representação atípica ou anômala que a “entretradução” surge como um modo de negociar as diferenças interculturais naquilo que pode existir mesmo em termos de “aproximações equivocas” ou “equivalências impossíveis” para se ater apenas a esses dois aspectos do prefácio da edição brasileira. É nesse sentido que gostaria de propor uma leitura das redes de sutilezas existente no texto, atentando para as camadas de sentido onde repousam a virtualidade de um encontro entre Davi Kopenawa e Claude Lévi-Strauss mediado por Bruce Albert. Na leitura das duas epígrafes, busca-se então uma espécie de “etnografia do sentido”, nos termos de Paul-Louis Colon, isto é, atentar para uma “revolução sensorial” (2013: 7), cujos desdobramentos podem ser atribuídos a próprio evento da etnografia no século XX. Eis, então a epígrafe de Lévi-Strauss:

Antes mesmo da chegada dos brancos, a mitologia ameríndia dispunha de esquemas ideológicos nos quais o lugar dos invasores parecia estar reservado: dois pedaços de humanidade, oriundos da mesma criação, se juntavam, para o bem e para o mal. Essa solidariedade de origem se transforma, de modo comovente, em solidariedade de destino, na boca das vítimas mais recentes da conquista, cujo extermínio prossegue, neste exato momento, diante de nós. O xamã yanomami — cujo testemunho pode ser lido adiante — não dissocia a sina de seu povo da do restante da humanidade. Não são apenas os índios, mas também os brancos, que estão ameaçados pela cobiça de ouro e pelas epidemias introduzidas por estes últimos. Todos serão arrastados pela mesma catástrofe, a não ser que se compreenda que o respeito pelo outro é a condição de sobrevivência de cada um. Lutando desesperadamente para preservar suas crenças e ritos, o xamã yanomami pensa trabalhar para o bem de todos, inclusive seus mais cruéis inimigos. Formulada nos termos de uma metafísica que não é a nossa, essa concepção da solidariedade e da diversidade humanas, e de sua implicação mútua, impressiona pela grandeza. É emblemático que caiba a um dos últimos porta-vozes de sua sociedade em vias de extinção, como tantas outras, por nossa causa, enunciar os princípios de uma sabedoria da qual também depende — e somos ainda muito poucos a compreendê-lo — nossa própria sobrevivência.

(2015: 7)

Antes de passar a epígrafe de Kopenawa, chama a atenção a dissociação das metafísicas feita por Lévi-Strauss que poderia estar concentrada na transformação da solidariedade de origem em solidariedade de destino, o que implica em repensar o que se compreende por tradição como um conjunto de normas situado no passado e que se perpetua pela repetição ou imitação, dado que, nessa transformação, é a dinâmica do tempo presente que ocupa um lugar importante na diversidade de cosmovisões de modo que se pode discutir os efeitos de uma traduções metafísicas, capazes de alterar a estrutura do homem branco (Napë). As palavras de Claude Lévi-Strauss estão endereçadas a Davi Kopenawa Yanomami e figuram no prefácio de uma publicação coletiva, Chroniques d’une conquête, de 1997. Nela, foi publicado o relato de Davi Kopenawa intitulado “Fièvres de l’or” (“Febres do ouro”), no qual o líder e xamã fornece uma medida cosmológica de uma tragédia que se repete no presente. De 1987 a 1990, quarenta mil garimpeiros invadiram o território yanomami em busca de ouro e com isso levaram uma epidemia de malária que custou a vida de mil e duzentos indígenas. De tal fato emana a figura macabra shawara wakëshi, isto é, a fumaça-epidemia canibal que mata o seu povo, sendo ainda uma doença do céu. Ainda em “febres de ouro”, Kopenawa apresenta esta solidariedade de destino, no que poderia ser considerada uma variante da própria epígrafe de A queda do céu.

Nós, xamãs, trabalhamos também para vocês, Brancos. Quando todos os xamãs estiverem mortos, vocês não serão capazes de resistir aos maus que eles sabem afastar. Vocês estarão sozinhos na terra e também morrerão. Quando o céu estiver realmente doente, não terá mais xamãs yanomami para segurá-lo com seus espíritos auxiliares. Os Brancos não sabem impedir a queda do céu. Elas apenas escutam a voz dos xamãs e pensam, sem saber: “São apenas cantos, apenas mentiras!” Enquanto ainda houver xamãs vivos, mesmo que o céu esteja doente, eles conseguirão a prevenir sua queda. Mesmo que o céu queira se rasgar, mesmo que ele comece a cair na terra, os xamãs o colocarão de novo no lugar dele. Isso ocorrerá desse modo enquanto nós, Yanomami, estivermos vivos. Quando não tiver mais Yanomami, o céu vai realmente cair.

(1997: 42)

Eis que se apresenta um outro lado da longa história da modernidade (se é que fomos modernos), vista sob a ótica a conquista e da invasão que implica, ainda nas palavras de Lévi-Strauss, na tradução de uma “destruição física e moral, opressão política, econômica e religiosa” (1997: 5). Cada fragmento possui um valor narrativo inestimável que se conecta com um todo que possui uma força interminável porque a história de Kopenawa está sempre se reescrevendo. O seu relato é vital para situar uma guerra de mundos permanente, cujas negociações estão longe de encontrar um termo. Os shawararibë, os espíritos maléficos se propagam na medida em que os caçadores de ouro ou, simplesmente, garimpeiros invadem as terras yanomami para retirar do fundo da terra aquilo que Omama tinha escondido. Nesse sentido, a epígrafe de Kopenawa de A queda do céu reforça o caráter narrativo da outra metafísica apontada por Lévi-Strauss, que envolve cosmovisões, dança e muita celebração da vida em termos de destino coletivo, apesar de todas as ameaças que cercam os yanomami. Este todo inacabado existente no sintagma A queda do céu faz parte de um estado permanente de transmissão e de transformação que defende a vida material e espiritual da floresta, conforme se pode ler na epígrafe de Kopenawa:

A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa. Os espíritos xapiri, que descem das montanhas para brincar na floresta em seus espelhos, fugirão para muito longe. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chama-los e fazê-los dançar para nos proteger. Não serão capazes de espantar as fumaças de epidemia que nos devoram. Não conseguirão mais conter os seres maléficos, que transformarão a floresta num caos. Então morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós. Todos os xamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar.

(Kopenawa, 2015: 8)

A epígrafe apura o sentido do relato “Febres de ouro”, lido por Claude Lévi-Strauss e, no sentido mais amplo, não custa advertir que o livro é resultado de uma convivência entre Albert e Kopenawa ao longo de quatro décadas e que agora entra na corrente da metafísica ocidental através de objetos diversos (exposições, filmes), mas atuando sobretudo na forma livro (“peles de papel”) que passa então a não se distinguir do próprio conteúdo ao qual ele se veicula. Por esse viés, a ecologia de A queda do céu, permite o recorte e ampliação de muitas histórias, de encontros e de relatos que podem ser desenvolvidos a parte, pois o livro se presta a uma conversa infinita. Em certo sentido, o diálogo Lévi-Strauss-Kopenawa tanto ajuda a compreender A queda do céu como uma variante forte de Tristes Trópicos, como afirmou Eduardo Viveiros de Castro no prefácio da edição brasileira, como colabora para a transmissão das palavras do antropólogo francês no século XXI.

Gérard Genette escreveu em Seuils, que uma epígrafe introdutória marca uma espera da relação do leitor com o texto (1987: 139). E ele que vai redimensionar a categoria de paratexto para além de um termo técnico numa obra editorial, cujo aparato implica em apresentação, nome do ou dos autores, títulos, dedicatórias, epígrafes, prefácios, notas, entrevistas e, ainda, as confissões mais ou menos calculadas. Esse entorno protege o que Genette chamaria de texto nu, fato que leva o autor a um tipo de slogan: “cuidado com o paratexto!”, como ele assinala ao percebê-los como parte de uma estrutura mais ampla:

Para nós, o paratexto é, portanto, o que faz de um texto um livro e se oferece como tal a seus leitores e, de modo mais geral, ao público. Mais do que um limite ou um limite estanque, é um limiar, ou — como diz Borges sobre um prefácio — um “vestíbulo” que oferece a todos a possibilidade de entrar, ou voltar para o caminho. É uma “zona indecisa” entre o interior e o exterior, ela mesma sem nenhum limite rigoroso, nem para dentro (o texto) nem para fora (o discurso do mundo sobre o texto), um limite, ou, como disse Philippe Lejeune, “a franja do texto impresso que, na realidade, comanda toda a leitura”. Esta franja, de fato, traz sempre um comentário auctorial, ou mais ou menos legitimado pelo autor, e constitui, entre o texto e o não texto, uma zona não apenas de transição, mas de transação: um lugar privilegiado de pragmática e estratégia, de ação sobre o público a serviço de uma melhor recepção do texto e de uma leitura mais relevante — mais relevante, é claro, aos olhos do autor e de seus aliados

(1987: 8).8

Mas a proposta de leitura dos paratextos de A queda do céu, notadamente as epígrafes de Lévi-Strauss e Kopenawa implica em chamar a atenção para uma semantização do próprio pacto entre Kopenawa e Albert, no qual pequenos encontros vão acontecendo, de modo que existe uma ética de leitura dos mitos yanomami em um entorno completamente violento. A aliança, termo utilizado por Genette, merece uma leitura mais ampla diante do seu caráter semiótico e histórico, sendo ainda uma aliança narrada cujas epígrafes, embora não tenham uma ação xamânica específica, agem para criar pequenos solos nos quais se possam fincar os pés. Pode-se afirmar ainda que o caráter limiar dos paratextos se amplia a todo o livro que é um paratexto maior dos mitos, das lutas e dos sonhos do povo yanomami. Essa ação metonímica de um encontro que ocorreu apenas pela leitura pode ser lida como uma correspondência que visa traduzir metafísicas, estruturas, que têm implicações no comportamento dos Napë, mas cujo efeito é lento e que atinge sobretudo o sistema de pensamento. Além disso, a publicação de A queda do céu, em 2010, em francês e suas respectivas traduções para o inglês, português, italiano e a atual em alemão, que está em curso, pode ser entendida como um marco para um momento posterior ao estatuto do discurso etnográfico na fase final do trajeto epistemológico da antropologia modernista e suas relações com o fato literário9 que é o que tenho tentado refletir e desenvolver a partir de leituras de A queda do céu.

Entropologia e a vida dos espectros

Se o Ocidente produziu etnógrafos, é porque um remorso bem poderoso devia atormentá-lo, obrigando-o a confrontar sua imagem a aquela de sociedades diferentes na esperança que eles refletirão as mesmas falhas onde a ajudarão a explicar como as suas foram desenvolvidas no seu centro.

(2018 [1955]: 466)

A razão ocidental produziu e produz seus espectros pela técnica de um maquinário sempre em vias de aperfeiçoamento. Maquínicos, espirituais, mortos, nossos outros possuem uma dimensão espectral. Com máquinas, espíritos ou mortos, a equação humana não se sustenta na terra sem eles. A questão é que existem ontologias em rota de colisão. As que produzem mais entropia são as prevalecem. Tristes trópicos o contata em certo sentido, mas A queda do céu marca um ponto em que a invariante pode, ao invés de seguir no frente que contribui com o desaparecimento dos povos da floresta, sair de um conflito ontológico por especulações xamanísticas, para utilizar um termo de Pedro Cesarino (2014).

É uma rede de relações que tem uma dimensão ontológica, mas que tem seus pontos de transformação. Aproximar a literatura e as artes da etnografia implica muito mais que produzir figurações nos museus ou buscar novas formas de representação, dado que no nível de figurações ontológicas, surgem outras maneiras de ocupar o pensamento ocidental, suas categorias produtoras de crises e de apocalipses que ocupam a imaginação coletiva do ocidente e ocidentalizada. É neste ponto de encontro que o capitalismo funciona não apenas na ética protestante, mas no espírito das grandes linhagens monoteístas que prometeram o paraíso fora deste mundo.

Crise pode ser entendida como um modelo menor, uma miniatura, de uma estrutura entrópica. Para concluir essa parte da hipótese brevemente em uma leitura que busca situar a forte variante de Tristes trópicos em relação à Queda do céu, cabe situar o humano — o temporariamente vivo — na dimensão relacional da vida, isso porque vida é relação. Dos sonhos às práticas xamânicas. Em O desejo dos outros, uma etnografia dos sonhos yanomami, Hanna Limulja, aborda a espectrologia humana a partir de um imaginário fora do espaço ocidental:

Não bastasse uma inversão entre dia e noite dos vivos e dos mortos, há também outra inversão que diz respeito ao modo de como cada um vê a si próprio e aos outros dentro desse contexto. Assim, os pore.(mortos) se veem como os verdadeiros Yanomami e enxergam os vivos como espectros. Também aos olhos dos xapiri pë, os vivos são vistos como espectros. Os vivos, por sua vez, veem-se como os verdadeiros Yanomami, sendo que os mortos são para eles os que já morreram, i.e., os pore. No meio de tantas perspectivas, o que há em comum a todas elas é que os mortos são sempre os outros. (…) os pore yanomami, embora assediem os vivos em seus sonhos, não são considerados inimigos, ainda que seu intuito seja sempre o (…) [de] levar os vivos para a morada dos mortos.

(2022: 68)

Diante desta entropologia, uma dimensão literária se forma a partir de textos e de textualidades compostas com palavras de carne e osso. Nesses tempos em que o céu também cai para os estudos literários, não se pode hesitar em situar a teoria literária como uma “entropologia”, cujo marco pode ser A queda do céu como uma obra seminal para essa disciplina. Parafraseando Borges, para compor Tristes trópicos no começo da segunda metade do século XX foi racional, necessário e, talvez, fatal; no começo do século XXI é quase impossível. Não foi em vão que, cinquenta e cinco anos depois, Davi Kopenawa surja como autor de Tristes trópicos.