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Lévi-Strauss e o cubismo

Artigo “O cubismo e a vida cotidiana”, de Claude Lévi-Strauss.

Em 1935, Claude Lévi-Strauss, recém-chegado no Brasil e começando três anos como professor de sociologia na USP, contribui dois textos para o XVIII volume da Revista do Arquivo Municipal de São Paulo: “O cubismo e a vida cotidiana1 e “Em prol de um instituto de antropologia física e cultural”. No primeiro curto ensaio, o que chama a atenção é o caráter analítico-sintético de Lévi-Strauss quando ele afirma que o cubismo, passado o seu modo programático, tenha se disseminado na vida cotidiana. Essa prova pode ser constatada nas próprias vitrines de lojas populares, nos bares e cafés onde uma “fé inconsciente” em Picasso ou Lipchitz foi propagada nos clientes e frequentadores.

No mesmo número da revista, dirigida por Mário de Andrade e secretariada por Sergio Milliet, há anúncios publicitários dos ônibus e caminhões Henschel & Sohn, empresa alemã que produziu tanques e carros para a Alemanha na Segunda Guerra Mundial, de uma locomotiva chamada “a baronesa” fotografada da Central do Brasil, além de material para a construção civil, produção de ferramentas para o campo e máquinas de escrever como a Underwood Portatil Noiless: “silenciosa e resistente!”. Esses são alguns exemplos em conexão com a perspectiva cubista observada pelo jovem professor francês em um país que entrava de modo desigual na modernidade. “Os cubos, os triângulos, as esferas, sucedem, assim aos ‘volubilis’ e as pinhas”, escreve ainda a propósito do estilo arquitetônico que encontra ecos críticos no que Walter Benjamin havia escrito a proposito do surrealismo como último instantâneo da inteligência europeia, de 1929. Enquanto Benjamin enfatiza a urgência do tempo que envelhece rapidamente os objetos com um sentimento de um despertador soando sessenta vezes por minuto, a percepção de Lévi-Strauss vai em direção à estrutura, ao recorte dos objetos que os torna individuais “de toda a colaboração da imaginação, do sentimento, da vida social”, de uma gramática visual que emerge em contato com o campo da eficácia simbólica posta em prática pelos indivíduos.

“Muito outro é o verdadeiro ensinamento do cubismo”, o antropólogo escreve. “Ele ensina que a decoração deve ser feita, não por soma, mas por subtração”. Esse apuro ao objeto encontra uma correspondência concreta em cada gesto no espaço público. As individualidades se comunicam: “Cada objeto, considerado individualmente, não é, por si mesmo, uma disposição complexa de elementos?”. A noção de estrutura revelada pelo cubismo é uma estrutura que migrou da arte para a vida cotidiana na publicidade, no corpo dos manequins, enquanto os objetos ganham volume no espaço das lojas a partir de sua aparição individual.

Um dos exemplos citados é o cartazista francês Cassandre, que enfatizou um copo de leite para popularizar o leite como um produto saudável. O cartaz aparece como parte de léxico urbano sem perder suas características conquistadas no espaço urbano.

Se o ritmo se acelera a partir do vapor e dos motores, as condições de vida social estão em transformação quando a arte atinge a expressão de maneira molecular, para utilizar uma expressão cara à Felix Guattari (Rolnik, Guattari, 1986). Lévi-Strauss não utiliza essas palavras, mas poderíamos afirmar que, com o advento do cubismo, originou-se células rítmicas que foram incorporadas à vida cotidiana.

O cubismo é recorrente na obra de Lévi-Strauss, aparecendo pela primeira vez em 1930 na revista dissidente do surrealismo programático Documents. Trata-se de um texto atribuído a ao político Georges Monnet, de quem Lévi-Strauss era o escritor-fantasma. Mas, particularmente nas décadas de 1960 e 1970, ele parece abordar o momento cubista com mais frequência e de forma mais crítica. Por exemplo, enquanto alguns de seus colegas estruturalistas “consideram que o cubismo e outros aspectos da pintura moderna exerceram uma influência determinada sobre eles”, Lévi-Strauss repudia essa influência para ele, dizendo que “a influência decisiva veio das ciências naturais; o que me tornou estruturalista foi menos o espetáculo da obra de Picasso, Braque, Léger ou Kandinsky, que o das pedras, flores, borboletas ou pássaros” (1993 [1979]: 284). No problema de cubismo, ele escreve:

é saber até que ponto a própria obra realiza uma análise estrutural da realidade. Em outros termos, será que ela seria para nós uma forma de saber? Ela traz menos uma mensagem original do que uma entrega a um tipo de trituração do código da pintura. Uma interpretação em segundo grau; um discurso admirável sobre o discurso pictórico, bem mais que um discurso sobre o mundo. Isso para o ponto de vista sincrônico.

(1973: 326)

“O cubismo e a vida cotidiana”, como um de seus primeiros textos publicados, não revela necessariamente um tipo de estruturalismo, mas pelo menos há uma consideração da dinâmica sistêmica — tanto entre os elementos da obra em si, quanto em suas dimensões sociais em uma iteração de modernidade urbana — que pode ser lida aqui como um predecessor de seus estudos posteriores nos quais prevalecem questões de estética. O cubismo proporcionou uma mudança estrutural com sua emancipação da “pintura da representação da perspectiva”, que “desaparece em uma arte que propõe não o conhecimento do mundo exterior, mas a criação de uma realidade especificamente pictórica”. Talvez o que importa seja considerar um meio de apreender não a realidade, mas uma realidade, triturada sob a forma de uma ornamentação que se apresenta como, se poderia dizer, algo natural nesse tipo de ambiente. Com esse texto, podemos prestar atenção ao conjunto de elementos sociais e estéticos envolvidos nessa aparência de planura, como o caso mencionado da gramática dos cartazes na cidade, aos graus e aos objetos de interpretação, isto é, o papel dos signos na redução das condições arbitrárias e contingenciais para “significar”. Essa é a reposta que ele deu a Georges Charbonnier no começo dos anos 1960, quando o sistema das artes fez apelo para as condições sociais no cotidiano das pessoas. Mesmo que a pergunta tenha sido iniciada sobre o estatuto das artes no impressionismo, Lévi-Strauss, ao chegar ao cubismo, responde: “Quanto ao cubismo (…), ele encontrou a verdade semântica da arte, pois sua ambição essencial, ao invés de representar, é significar”. Lévi-Strauss acrescenta que se trata de uma revolução maior do que aquela que foi promovida pelo impressionismo. E, para ir além da representação, é necessário ir além do objeto até a significação (1961: 89), responde. É pela força da significação que o cubismo disseminou uma revolução molecular e, com isso, aproximamo-nos do campo das ciências do qual nenhuma manifestação artística fica imune de contato.