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A insuportável interpelação das ruínas

Quando se tem uma subjetividade tão fragmentada, tão arruinada e despedaçada como a que nós temos, a única forma de nos reconstruirmos como identidade, como sujeitos, é fazê-lo através desses fragmentos e dessas ruínas.

— Víctor Gaviria, A adaptação da literatura ao cinema

Atentado ao edifício Mónaco, quarta-feira 13 de janeiro de 1988, 5h10, Patricia Londoño Aristizábal

Como as feridas deixadas por Pablo Escobar aparecem diante dos olhos de quem nasceu depois de sua morte? O que aconteceu com as cicatrizes na materialidade de Medellín? Mantêm-se, foram maquiadas ou mesmo apagadas? Estas perguntas levam a outra: é possível fazer desaparecer os vestígios que todos os corpos guardam? E quando dizemos corpos, não estamos falando apenas daqueles feitos de carne, mas também daqueles feitos de pedra, concreto, aço, vidro e qualquer outro elemento dos tantos que compõem o universo material. Parece que não, porque é justamente nessas marcas que persiste a história de cada corpo; ser corpo é ser marcado e marcar, sem marcas não há corpo. Vamos perguntar agora sobre corpos desta cidade, sobre seus muitos e multiformes corpos, eles conservam suas cicatrizes? Eles as carregam com dignidade, com coragem? No que diz respeito às casas, prédios e ruas, em Medellín a resposta seria negativa; mas esses corpos dependem dos corpos dos cidadãos, então a questão se volta para nossa dignidade, para nossa coragem em assumir as feridas do passado, em enfrentar nossa responsabilidade pelas formas sinistras que o ethos cumulativo, que nos caracteriza desde que se configurou esta cidade, tem se materializado nas últimas décadas.

Um modo de ser

Sobre o gesto demolidor, tão próprio da valorização do “seguir em frente” simbolizada pela expressão antioquenha1 echao pa’lante, os urbanistas em Medellín têm falado com detalhes e rigor. Foram realizados importantes trabalhos que seguem a linha do tempo do que poderíamos apontar como a demolição sistemática do passado na cidade, demolição que se tem decidido ex profeso, embora em determinadas ocasiões tenham participado desse processo decisório certas contingências, cujas condições de azar não deixam de ser suspeitosas se considerarmos que os resultados beneficiaram os que necessitavam de espaço plano onde antes havia alguma(as) edificação(ões). Sobre esta questão, a discussão continua viva e é necessária, pois, diante do questionamento sobre as razões do desaparecimento de quase todos os edifícios que compunham o nosso centro histórico, vêm se instalando, por parte das sucessivas administrações locais, um silêncio que ofende ou a apresentação de motivos que ofendem ainda mais qualquer um que tenha um conhecimento mínimo da importância do patrimônio para os grupos humanos. Se levarmos em conta que a etimologia do simbólico envolve a ação de reunir, e, a do diabólico, a de separar, poderíamos afirmar sem medo de errar que nossa história urbana é atravessada pela destruição diabólica dos símbolos, ou seja, por uma participação ativa dessas ações no gradual esfolamento de nossa condição de grupo. Há povos obcecados pelo passado, outros, pelo futuro e, ainda, outros que vivem na fissura paradoxal deixada pela obsessão simultânea de ambos; nós pertencemos a essa terceira classe: somos reacionários e empreendedores, farsantes e inovadores, e nossa promiscuidade construtiva explica esse paradoxo. No nosso caso, o empilhamento desordenado de prédios expressa muito mais do que mau gosto, embora essa consequência estética seja inevitável. E é precisamente sobre o que expressa esse gesto híbrido que nos questionamos agora, no quadro das perguntas que emanam das ruínas das cidades eportanto da importância que tem para os grupos humanos enfrentarem as suas interpelações.

Trata-se, é claro, da dicotomia entre memória e esquecimento, entre o que deve ser lembrado e o que deve ser apagado, quem decide e por quê? Diante desta questão fundamental, é inevitável o fascínio do povo de Medellín pelas novidades e sob o feitiço reside a necessidade de jogar fora o velho, que, se pararmos um pouco, implica em um encanto pelo lixo, ou melhor, pela ação de jogar o lixo fora, entendendo esse gesto como o ato de limpar, desinfetar ou, para usar um termo mais próximo da lógica do planejamento atual, higienizar. Em Medellín, limpamos, desinfetamos, higienizamos ad nauseam; Medellín está sempre se reformando, reacomodando, refazendo; em Medellín, as máquinas nunca param, cheiram a cimento e entulho, há poeira por toda parte; caminhar por Medellín é tão complexo como andar pela casa em um dia de faxina pesada, com a diferença de que na cidade esse dia são todos os dias, nunca paramos, então não é difícil inferir que amamos mais a sujeira do que a limpeza. Aqui o velho parece feio per se, por isso quando vem um turista nós o levamos para passear de metrô, não para ir a algum lugar, mas para andar de metrô, a epítome do progresso de Antioquia. Os monumentos sobrevivem, claro, mas um rápido passeio pela cidade mostra-nos que cada vez mais estão obsoletos e que o seu cuidado está sujeito às necessidades da inovação e do mercado. Embora não nos detenhamos aqui no conceito de monumento e em suas tipologias, os trabalhos de mediologia de Régis Debray são muito importantes para o seu estudo em termos de transmissão; sua leitura nos permite alargar o significado do monumental, para efeitos de compreender a potência expressiva de certos objetos e espaços no contexto do urbano e da proliferação de monumentos de todo tipo, construídos pelas administrações, mas também traçados pelos habitantes a partir de seus hábitos e de seus acontecimentos particulares, aqueles que não constam da História Oficial e que, no entanto, marcam o cotidiano dos grupos geração após geração. Se pensarmos assim, quando uma área da cidade é arrasada para construir, não só os edifícios reconhecidos pela maioria dos cidadãos são demolidos, mas também aquelas outras construções intersticiais que escrevem um jargão entendido apenas por aqueles que fazem parte dessas experiências mínimas se vistas a partir de um discurso oficial, mas fundamentais para a vida. Assim, a loja da esquina, a mercearia nos arredores de uma universidade, a casa onde se vendem cremes de leite batidos com coco e canela, a sapataria do velho que cumprimenta a todos pelo nome, a papelaria que foi de uma família durante décadas numa garagem ou em um sótão e que tem o nome de uma das filhas, a oficina mecânica que alguns irmãos montaram e onde trabalha toda a família, a costureira, a cabeleireira, o carrinho de empanadas, o dos cachorros-quentes, o dos palitos de queijo, a casa velha onde se fazem bolos de chocolate com vinho, a mesa com três banquinhos que o homem da casa azul traz todas as sextas-feiras e onde vende arepas de milho ou arepas brancas com carne desfiada, o caminho que os jovens percorreram de uma quadra para outra, sempre subindo a mesma pequena montanha de esquina para ir à quadra de cima ou de baixo, o altar da Virgem e um longo etcétera que todos os moradores de cada bairro conhecem, que compõe seu arcabouço monumental e que estremece cada vez que um novo projeto é anunciado.

As ruínas da violência

Os processos de renovação trazem consigo ruínas e pedaços de terra esquecidos, depósitos de lixo. Detenhamo-nos naqueles que propõem a reconstrução dos vilarejos logo depois de terem sido levadas à catástrofe pela violência extrema e para isso é necessário definirmos o conceito de ruína e diferenciarmos umas ruínas das outras.

Se atentarmos para a etimologia do termo, ruína é o que cai, se derruba, se afunda, desmorona; a ruína preserva a história daquele evento de precipitação, quer tenha ocorrido durante um longo período ou repentinamente. Mas, em geral, as ruínas são aqueles fragmentos que se mantiveram apesar do tempo, do clima, dos desastres naturais e/ou dos produzidos pelo homem. María Zambrano afirma que “as ruínas são as coisas mais vivas da história, pois só vive historicamente o que sobreviveu à sua destruição, o que ficou em ruínas”.2 Desta ideia se depreende que encontramos nas ruínas o testemunho material e estranhamente vivo da história, da nossa história. Além disso, entre as ruínas ergue-se uma natureza que recupera o seu domínio naquele espaço outrora ferido pelas mãos humanas, o edifício que antes se impunha sobre uma vitalidade devastada dá agora lugar a uma ressurreição: “A vegetação que cresce entre as ruínas com incomparável ímpeto é a vingança pacífica da terra humilhada”.3 Georg Simmel, por sua vez, também alude a esse caráter reivindicatório da ruína: “o encanto da ruína consiste no fato de que uma obra humana é percebida, em última análise, como se fosse um produto da natureza”.4 Para o sociólogo alemão, as forças do artifício humano entram em tensão com as forças da natureza e, em outro sentido, também o fazem as forças ascendentes do construtivo e as descendentes do que desmorona; o interessante aqui é a mudança do que se move segundo os distintos momentos: quando se constrói um edifício, o corpo arquitetônico ascende em meio ao rasgo feito sobre a terra e do colapso da vegetação e, quando o edifício se arruína, a vegetação ascende sobre os pedaços arquitetônicos que desabam e sobre outros pedaços que resistem à gravidade. Essa luta entre múltiplas forças faz da ruína o cenário de um acontecimento que, longe de mostrar a separação entre o selvagem e o artificial, dá conta de sua constante colaboração. De tal modo que a ruína está viva não só porque é o que resta do que foi, mas porque em meio ao destruído emerge a vida.

Agora, as formas de ruína são muitas, mencionemos algumas: aquelas que permanecem por longos períodos de tempo como manifestações de povos desaparecidos, que fascinam igualmente arqueólogos e turistas (embora por razões distintas) e que, em geral, têm sido depositárias de um valor patrimonial; as que resultam de negligência, do descuido e que se espalham por descampados, vilas e cidades, entre a vegetação, que tendem a incomodar os vizinhos pela sua imagem de apatia e que, no entanto, persistem nos locais até que uma decisão as apague definitivamente; perto destas encontram-se outras ruínas que, embora sejam também fruto do abandono, são habitadas, espalhadas pelas zonas de favelização de cidades e vilarejos, e entre elas o escritor-ruinólogo Antonio José Ponte aponta um caso paradigmático em Havana onde, segundo ele, muitas de suas casas são sustentadas por um “estático milagroso”, já que a Revolução Cubana deixou as construções de quase toda a cidade à sua sorte e ao salitre e, ainda assim, seus habitantes continuam ali; há outras que se impõem como ruínas, construídas como se o tempo as tivesse esculpido, mas cujo acabamento é apenas aparência,5 estas ruínas cosméticas constituem maneirismos arquitetônicos; semelhantes, pela sua inutilidade, às que também foram construídas no presente, cuja decadência se manifesta pela acumulação de elementos formais inovadores, continentes de estruturas que falham muito cedo, que se proliferam nas cidades contemporâneas e costumam ser reconhecidas mais pelos seus autores do que pelas suas próprias qualidades; mas há algumas ruínas que são produto de uma catástrofe total, seja ela natural, tecnológica ou bélica: as ruínas de Pompeia e as de Armero6 são exemplos da primeira, as de Chernobyl da segunda e as de muitas cidades alemãs após as intervenções dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, da terceira; as ruínas de Hiroshima e Nagasaki são a materialização sinistra dos dois últimos modos de catástrofe.

A respeito da relação estabelecida com as ruínas que restam após a catástrofe bélica, W.G. Sebald se pergunta sobre a forma como os escritores alemães do pós-guerra lidaram com a destruição total das suas cidades durante os sucessivos bombardeios a que foram submetidos. Para o autor, é preciso se questionar sobre os motivos que levaram ao silenciamento ou a uma literatura substancialmente menor sobre esses acontecimentos, em comparação com o que se tem escrito sobre as atrocidades nazistas nos campos de concentração, por exemplo. Em três dos quatro ensaios reunidos em Sobre a história natural da destruição e que compilam as ideias expressas em conferências proferidas em Zurique (1997), Sebald revisa em perspectiva algumas obras literárias publicadas nos anos posteriores aos atentados e observa nelas traços comuns de um esquecimento ou de uma “incapacidade psíquica de lembrar”, omissões ou descrições que não dão conta do que foi vivido; embora encontre em sua revisão cirúrgica importantes tentativas de documentação. Nascido em 1944,ele não presenciou a catástrofe, mas cresceu entre as ruínas que restaram e, ao longo dos anos, percebeu que não era possível ter uma ideia aproximada da tragédia a partir dos textos escritos durante aqueles anos sombrios. Por que não há tanta literatura nacional sobre o assunto e por que aqueles que assumiram a tarefa de contar a história a contaram do modo como o fizeram? São várias as hipóteses levantadas por Sebald, mas nesta ocasião vale destacar aquela que reflete sobre o que os sobreviventes poderiam sentir em relação à responsabilidade alemã na guerra, como assumir a catástrofe quando nós mesmos estamos na sua origem? Citemos uma passagem devastadora sobre a multiplicação de certos animais entre as ruínas, para ilustrar esta questão:

Além do comportamento perturbado das próprias pessoas, a mudança mais óbvia na ordem natural das cidades nas semanas seguintes a um ataque mortal foi o súbito aumento exagerado de criaturas parasitas que proliferavam em cadáveres desprotegidos. A flagrante escassez de observações e comentários a esse respeito explica-se pela imposição implícita de um tabu, tanto mais compreensível se pensarmos que os alemães, que se propuseram a limpar e higienizar a Europa, tinham agora de se defender do medo de serem eles mesmos, na verdade, o povo dos ratos.7

Nós vivemos em outra zona da geografia planetária e estamos a quase oitenta anos dos bombardeios à Alemanha; mas também importa nos perguntarmos sobre nosso imperativo de esquecimento frente ao que aconteceu em Medellín durante os anos em que Pablo Escobar fez das ruas o cenário de sua guerra e, sobretudo, importa nos questionarmos sobre a possibilidade que tem uma pessoa nascida após o lendário 2 de dezembro (1993)8 de assistir ao que resta como testemunho material dessa história.

Aqui as ruínas nos incomodam

Podemos voltar ao que foi dito na primeira parte desta reflexão, os traços que, no nosso modo de ser, nos impelem à aquisição constante de riquezas e à sua ostentação, manifestam-se na nossa relação com os objetos e espaços da cidade. Mas se voltarmos ao que foi dito na segunda parte, esses traços do nosso modo de ser nos tornam propensos a justificar os meios pelos fins, de modo que, visto dessa forma, Pablo Escobar não foi apenas um homem disposto a destruir o país para consolidar seu empório ilegal, mas foi (e continua sendo) a encarnação hipertrofiada de um ethos acumulativo, portanto, somos responsáveis ​​como coletivo humano de que seu projeto fosse ao menos concebível; olhar para o que restou de Medellín depois de sua passagem por ela é também olhar-nos no espelho. Tentar apagar cicatrizes com soluções cosméticas tem o mesmo efeito que maquiagem extravagante e as cirurgias plásticas no corpo de uma pessoa idosa ou doente, as marcas ficam escondidas, mas não se interrompe a deterioração. Porque em Medellín tentamos apagar os sinais de Cronos e os da doença da mesma forma; não concebemos que a pátina do tempo embeleze corpos velhos, nem que as marcas da violência contribuam para decifrar os sintomas de nossa doença e, portanto, nos ajudem a curá-la ou, pelo menos, a tratá-la para que seja suportável.

Desse modo, a polêmica sobre a demolição das ruínas se faz necessária, principalmente quando essas ruínas são produto de uma violência catastrófica, pois embora forças estrangeiras não tenham nos bombardeado aqui, entre nós mesmos nos atacamos como hienas e as bombas do narcotráfico foram ativadas por concidadãos. Essas bombas explodiram fachadas, interiores de casas e prédios, lojas, carrinhos de cachorro-quente, estradas para escolas, muitas coisas e, acima de tudo, muita gente. O que resta disso tudo? As feridas físicas e emocionais dos sobreviventes, a memória dos mortos nas mentes de seus enlutados mais próximos, muitos que são ruínas, ruínas humanas que permanecem em pé mesmo que seu conteúdo tenha sido reduzido a pó, talvez uma cidade que é uma ruína de si mesma, com seus prédios reconstruídos e suas ruas lotadas de carros novos, com suas lojas de roupa em abundância, com vendas de todo tipo, inclusive as que se reproduzem exponencialmente nas esquinas, as de pequenas doses de cocaína e de outras drogas; mas também, aquelas que traficam com o legal como se fosse ilegal. Na Medellín que habitamos hoje já não se ouvem as bombas que nos acordaram há alguns anos e nos fizeram pular e engolir poeira, mas em cada um de nós o medo e a aceitação do que sofremos continuam a pulsar em disputa. Por que não há placas indicando os locais de destruição? Por que não são preservados nos locais pedaços da fachada onde possamos ver os vestígios de balas e bombas? Por que deixamos as pequenas memorabílias de nosso infortúnio apenas sob a responsabilidade de um museu? Por que nos recusamos a permitir que a cidade ventile suas feridas para que se curem? Por que escolhemos esconder a putrefação para que ela se espalhe?

Nesse sentido, é imprescindível discutir abertamente com a sociedade os motivos que os ocupantes da prefeitura local tiveram para ordenar a implosão do edifício Mónaco, aquele prédio que foi a casa de Escobar e alvo de uma bomba durante a luta entre os cartéis de Medellín e Cali. Devemos também nos questionar sobre o acontecimento ocorrido no Club Campestre próximo a esse evento, diante da crescente espetacularização pós-moderna das ruínas e, neste caso específico, de seu desaparecimento e inflexão do sentido do lugar em que se localizava. Dado o que está em jogo, a saber, a tentativa de compreender as razões da catástrofe histórica da cidade, tanto o espetáculo da ruína quanto o da sua implosão ou o de um parque temático afastam-nos do sagrado ou, se preferirmos, impedem-nos do ritual catártico a que urgimos enquanto grupo, mas como é fácil confundir ritual com espetáculo nestes tempos! Enquanto isso, artistas locais enfrentam as perguntas das ruínas, mergulham na catástrofe que as produziu. Se a história oficial tenta instituir uma versão heroica de nossa transformação urbana após a guerra que vivemos, os artistas contemporâneos de Medellín abrem as feridas para que possamos ver o que somos, sem eufemismos ou esquecimentos.