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Explodir a ruína, salvar a memória

(Edifício Mônaco)

Edificio Mónaco, Mauricio Carmona Rivera

Levou pouco mais de três segundos para que a ruína do edifício Mónaco caísse, após a detonação de 375 quilos de explosivos.1 Ao meio-dia de sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019, enquanto alguns festejavam e outros choravam, um rastro de poeira encheu o ar e toneladas de detritos cobriram o terreno onde o Parque Memorial Inflexión seria construído.2 Apesar de não haver vestígios da mansão-ruína, visitantes de todo o mundo ainda vêm ao bairro El Poblado, em Medellín, para percorrer o Parque e ouvir os guias contarem a história de Pablo Escobar, o narcotraficante que deixou sua marca na história da Colômbia, e das centenas de vítimas que o narco-terrorismo deixou e continua a deixar em seu rastro.3 Várias perguntas surgem desse passeio pelo Parque Memorial: era necessário derrubar aquela ruína para apagar a violência que pesava sobre a Colômbia? É suficiente um parque e memorial para honrar as vítimas e os fatos do narcotráfico? O que fazer com aquela memória que se quer esquecer, explodir, sepultar nos escombros? Como respeitar a dor das vítimas e fazer o luto do horror para que tais eventos não se repitam?

Essas não são perguntas novas para as sociedades que viveram o terror das guerras, do Holocausto ou das ditaduras sangrentas. Questões sobre a memória e o esquecimento, o luto e a resiliência acompanham a história de todo o século XX e possivelmente acompanharão o século XXI.

Tábula rasa e desmemória

A América Latina e suas cidades foram construídas sobre ruínas, escombros e iconoclastia. Ruínas que, à sua maneira, nos contam uma história marcada pela violência. Primeiro veio a violência da coroa espanhola, da igreja evangelizadora, do Estado, das instituições militares, do projeto modernizador e extrativista e, mais recentemente, a violência e os destroços causados pelo narcotráfico. Entretanto, o que muitas vezes ignoramos é que, apoiando-se sobre os vestígios, as ruínas oferecem uma continuidade ao pretérito do nosso presente. Isso é testemunhado nos velhos palácios da oligarquia, nas indústrias abandonadas da era pós-industrial, nas ruínas do progresso urbano e as ruínas memoriais.4

O centro de Medellín e seus prédios escapam a esse desígnio. A história urbana dessa cidade, como acontece com tantas outras, tem sido construída por meio de um processo de construção e reconstrução, como se o esvaziamento e a reinvenção fossem as duas caras do habitar.5 Daí que a demolição daquele grande bunker que era a ruína do Mónaco, não seja nada mais do que o curso lógico de ação de uma cidade esperançada na tábula rasa e na desmemória. Mas, dessa vez, ao contrário de outras demolições nas quais predominam o critério da rentabilidade imobiliária, o principal problema é de outra natureza: o das memórias incômodas. São memórias que nos atemorizam e nos obrigam a olhar diretamente para aquelas imagens em que o catastrófico retorna como um fantasma para nos assombrar.6 Nas ruínas do Mónaco, dizem seus vizinhos e visitantes, fantasmas transitavam e cobriam espectralmente não só a memória, mas a vida cotidiana do bairro e da cidade. Era uma ruína que perturbava a memória, pois, apesar de seu desgaste e deterioração, trazia de volta as tragédias da violência recente, e, com seus espaços abandonados, promovia o não esquecimento de suas vítimas e de seus agressores. Como todas as ruínas, ela invadia os sentidos com imagens e formas arquitetônicas que revelavam seu horror. A mansão abandonada, esvaziada, úmida, habitada por animais e vegetação ruderal, abrigava em seu interior e em sua fachada os muitos medos não resolvidos da sociedade colombiana. As ruínas sempre incomodam porque os espectros não só habitam seus muros e recantos, mas também se enfiam nos nossos corpos. Embora a materialidade dessa ruína se apague e pulverize, seus espectros continuam a envolver nossos corpos e memórias. Um tiro, um grito ou mesmo uma sombra pode ser suficiente para que os fantasmas voltem a ser visíveis e audíveis. O reaparecimento dos fantasmas, nos adverte o professor de filosofia Santos Herceg,7 tem a ver com saber o que aconteceu ali. Os espectros são sempre denúncias, e é por isso que eles nos sitiam. “Pablo vive” era uma das pichações numa parede interior do prédio abandonado.

Memórias espectrais e desassossego

O desabamento da ruína do Mónaco foi um processo que levou décadas. De 1988 em diante foram feitas sete tentativas para demoli-lo e danificá-lo. A mansão Mónaco nasceu feita ruína e, como qualquer ruína que se respeite, foi saqueada e escavada repetidas vezes em buscados tesouros de Escobar. Desse modo, a construção foi adquirindo seu caráter amaldiçoado, de herança desconfortável, e ao longo dos anos o conto de fadas foi transformado em um reino em ruínas.8 Uma estrutura descuidada recoberta de mármore que evidenciava as marcas dos combates passados e que, no entanto, era visitada assiduamente nos “narcotours” 9 (“há turistas que pedem pedacinhos do prédio como lembrança”), evidenciando a quebra entre o repúdio e a admiração; entre a dor e a apreciação.10

Como todo ato performático, a implosão final da ruína foi cuidadosamente arranjada, até mesmo o palco para os espectadores. A esperança de “exorcizar” a dor e o mal estava presente nesse ato. Mais do que demolir um edifício, tratava-se de “derrubar uma estrutura mental”, disse Manuel Villa, secretário particular do gabinete do prefeito de Medellín; “Todos os símbolos da ilegalidade devem cair, como este prédio vai cair”, insistiu o prefeito de Medellín, Federico Gutiérrez. A Prefeitura, adverte o cético Gerard Martin, pretendia estabelecer uma história oficial do passado recente de Medellín.11 Mas, como todas as histórias oficiais, essa também se resumia a umas poucas evidências:

O narcotráfico caiu do céu e gerou o narco-terrorismo, foi o autor de cada assassinato ocorrido em Medellín entre 1983 e 1994; não houve nenhum conflito armado, nem vítimas do conflito armado, apenas o narcotráfico e seus atores associados, especialmente as narco-guerrilhas; responsabilidade institucional ou política também não houve; com a demolição e o novo parque, Medellín finalmente abraçará sua história.

Mas o que existia dentro dessa ruína que levou à decisão de destruí-la definitivamente? Esse gesto ritualístico e iconoclasta certamente não foi apenas um apagamento para uma tábula rasa; o gesto também afetou a percepção de que a destruição ou a eliminação de um objeto material destruiria o objeto encarnado; uma história incontável. O medo que a ruína gerava não se explica apenas pelo que ela representava, mas também pela ameaça de que aqueles que ali haviam morado poderiam voltar a viver e agir contra a sociedade.12 Não deveria ser uma surpresa, então, que o Parque Memorial tenha um muro feito de destroços das ruínas do Mónaco, não faltarão pessoas que “pensem em pegar um tijolo da casa, e isso não queremos”. Ou a discussão sobre o destino da escultura de Rodrigo Arenas Betancourt A nova vida, uma escultura encomendada pela esposa de Pablo Escobar e criada pelo artista para o prédio entre 1985–86. Não apenas a memória, mas o desejo de reconciliação e o fim da estigmatização exige uma certa distância quando se trata dessa história de terror, como aponta Carlos Arturo Fernández;13 e primeiramente, o medo dos fantasmas de Escobar e daquilo que ele encarnou para a sociedade colombiana.

Diante desse desconforto e desassossego, o luto é sempre um trabalho de longo prazo, sem garantia de conclusão. Mas o que sabemos é que não existe luto ou resiliência sem o trabalho da memória, sem co-memoração. No entanto, para memorizar, devemos cavar fundo e perder o medo de olhar diretamente para as imagens que nos assustam e sobre as quais não há consenso possível. Para lembrar, devemos nos debruçar sobre essas ruínas, escombros e rachaduras que nos atravessam como sociedade. Para lembrar e curar, teremos de exorcizar os demônios, olhá-los nos olhos, escutá-los e seguir suas pistas dispersas. Temos que dar a palavra para eles, para poder compreender.14

Demolir e narrar

Os gestos criativos e destrutivos andam sempre de mãos dadas; para criar você tem que destruir algo — incluindo o passado — e destruir sempre significa criar algo novo.15 A “construção” não é possível para Walter Benjamin sem a “destruição”; daí que o ato destrutivo possua uma dimensão estética. Como Salvatore Settis demonstrou, os aspectos performativos do ato podem ser tão relevantes como os puramente destrutivos16. O ato de “arruinar” constitui um processo que nos convida a prestar atenção não na matéria inerte, mas em sua reconfiguração vital17.

De fato, a implosão do edifício Mónaco é parte de um ambicioso programa intitulado Medellín Abraça sua História. Parte desse programa incluiu uma campanha oficial que cobriu a fachada com outdoors, mensagens contra o narcotráfico e lembretes para as vítimas da violência. Central a esse programa é Inflexión (Inflexão), o nome dado ao Parque Memorial em homenagem às vítimas que ocupam o terreno onde se encontrava o edifício Mónaco. Pouco foi preservado da destruição da mansão: as obras de arte, o cofre de Pablo Escobar e uma antena parabólica que será material para uma intervenção artística.18 Um parque que deseja ser memória, apesar do medo do bairro de que acabe sendo mais um espaço perigoso, onde, mais uma vez, fantasmas da droga ocupem seu lugar como já aconteceu em tantas outras experiências urbanas.19

A memória do trauma é sempre um território incerto e aberto à disputa. Memorializar, nesse caso, é inscrever as lembranças na paisagem urbana. Assim, algumas questões para esse diálogo de memórias urbanas são inescapáveis: o que lembrar? Como fazer isso? De quem é a memória? Qual é o papel do Estado na construção da história e o dos suportes memoriais? Qual é o papel dos sobreviventes e parentes das vítimas? Como articular a dimensão afetiva da lembrança e a comemoração com aquela dimensão referente ao conhecimento e à informação?20 Possivelmente essas perguntas não tenham uma única resposta, o que permitirá que esse Parque Memorial seja um lugar de memória, com sua capacidade de acolher e historicizar as diversas perspectivas.21 Um Parque Memorial que, em seu objetivo de perdurar, possa ser continuamente reimaginado, questionado e revisitado.22 Um Parque Memorial deve ser, portanto, um espaço convocador para uma prática ativa que permita à memória agir e trabalhar, por mais dolorosa e desconfortável que ela seja. Trabalhar a memória implica, então, não fechar, mas debater e disputar ter uma voz e um espaço nesse lugar, sem medo se abrir àquelas vozes historicamente silenciadas. Exibir e abrir a própria história é um caminho para o luto e a não repetição.23

Finalmente, o importante será a capacidade desse lugar de memória para contribuir com a construção de narrativas que permitam saldar contas com o passado e o presente da violência que ainda não cessou. A abundante literatura de memórias sobre a América Latina mostra a importância da construção narrativa para as práticas de superação da violência traumática. Nesse contexto social, contar a história é tanto um dever político quanto ético, e é a fonte de um ativismo copioso em prol dos direitos humanos, de não esquecer.24 Uma narrativa na qual, com palavras, gestos, arte, performances e encontros, eventos históricos possam ser compreendidos, (re)significados e mediados simbolicamente para promover a resistência e a imaginação diante da violência histórica e atual. Exorcizar e expurgar as ruínas e escombros da dor, das latências e dos sobressaltos para uma memória sempre inconclusa.

Decifrar essas especialidades da memória exige, desse modo, uma arqueologia e etnografia sensível à linguagem e às narrativas que encobrem as rachaduras e as fissuras. Daí a importância de que esses relatos não sejam meramente retrospectivos, mas também expressem o significado da memória no contexto presente em que o relato é feito, de modo a permitir a ação e a transformação social.25 Tornar presente o drama social de todos aqueles que participam dessa história é uma forma de se abrir e torná-los inteligíveis. Isto é, entender como surgiram, qual foi a cadeia de eventos que desencadeou a situação atual, e como essa situação pode ser reparada.26

Recordar é compreender no presente o trauma vivido, é um convite para a co-memoração na diversidade de experiências, lembranças e testemunhos. São justamente essas instâncias que tornam possível a representação narrativa dos processos sociais. Narrar em múltiplas vozes permite relativizar os discursos dominantes, oficiais, e oferece a palavra para testemunhos das vítimas, cuja dor permanece na esfera privada. Narrar essas memórias incômodas, porque são feitas de trauma e silêncio, nos abre a oportunidade de escrever nossa história não por meio do consenso, mas através do reconhecimento das nuances e contradições das experiências que as humanizam. Que a implosão da ruína do Mónaco torne finalmente visíveis as narrativas da sociedade colombiana e, ao fazê-lo, cuide de suas múltiplas memórias.