5

Expurgo (edifício Mónaco)

Expurgo (edifício Mónaco), implosão dia 22 de fevereiro de 2019,
Mauricio Carmona Rivera

Recordações e ruínas, mesmo na sua inevitável condição fragmentária, têm sido e são material fundamental para articular histórias consistentes ou lendárias entre as quais tentamos encontrar respostas para as perplexidades do nosso presente. Por isso, essa aparente fragilidade que atribuímos às recordações é talvez mais o medo provocado pela hipótese de um dia enfrentar o vazio da memória, a perda da memória individual ou coletiva. Esse poder da memória tem sido bem conhecido pelos regimes totalitários de todos os tempos, cuja forma mais tenaz e sistemática de aniquilação de uma cultura ou civilização tem consistido precisamente em apagar completamente as suas recordações; ou seja, exercer poder sobre a memória, certamente a forma mais aterradora e, ao mesmo tempo, mais eficaz de controle e dominação.

As ruínas da memória. Ideias e conceitos para uma teoria (im)possível do patrimônio cultural, Ignacio González-Varas Ibáñez

Expurgo (edifício Mónaco), percurso pelos andares subterrâneos,
Mauricio Carmona Rivera

O projeto Expurgo (edifício Mónaco) surgiu como resultado das discussões que tiveram lugar num grupo de trabalho convocado pela Câmara Municipal de Medellín e pelo Museo Casa de la Memoria (MCDM) em junho de 2018, no qual participei como convidado junto a um grupo de artistas da cidade; foi o início da campanha “Medellín abraza su historia” e o seu principal gatilho foi a decisão tomada pelo ex-prefeito Federico Gutiérrez (2016-2019) de demolir o edifício Mónaco, propriedade do falecido chefe do cartel de Medellín, Pablo Escobar, com a pretensão de destruir um dos símbolos emblemáticos que tinham sobrevivido a esse período de violência.

Como indivíduo e artista participante, a mesa de trabalho converteu-se num espaço para manifestar o meu desacordo com essa decisão e para levantar uma discussão sobre as políticas da memória num país como a Colômbia, que continua uma longa tradição de eliminação sistemática do passado como mecanismo de ocultação de complexos fenômenos sociais, culturais e políticos. Desaparecer ou destruir evidências tem sido sempre uma estratégia conveniente para certos setores da classe política e empresarial do país, que têm estado interessados em apagar os vínculos que, em muitos casos, ainda persistem com os cartéis da droga e o crime organizado.

Expurgo (edifício Mónaco), percurso pelos andares subterrâneos,
Mauricio Carmona Rivera

A proposta curatorial do MCDM propunha um diálogo aberto e crítico em torno desse acontecimento, o que permitiu a possibilidade de realizar intervenções no imóvel antes da sua implosão, como um mecanismo de ressignificação do lugar e do acontecimento. Contraditoriamente, o processo foi rapidamente desvirtuado pela própria prefeitura de Medellín e pela empresa de comunicações que gerenciou a campanha, pois começaram a tomar uma série de decisões que iam além do acordado na mesa de trabalho, o que gerou novos processos e dificuldades de acesso ao imóvel, particularmente a partir do momento em que a empresa Atila Implosión se encarregou do edifício. Do meu ponto de vista, a capacidade de decisão da equipe de trabalho do museu foi neutralizada, truncando assim assessoria e acompanhamento dos projetos artísticos em desenvolvimento. Isso evidenciou a maneira como o MCDM funcionou enquanto meio de legitimação de uma campanha cujo pano de fundo era, na realidade, a implementação de uma campanha de marketing político em grande escala, que por meio de argumentos maniqueístas pretendia confrontar a incontrolável indústria do entretenimento, que mediante séries de televisão e Narco Tours vem opacando a “imagem” de uma cidade que supostamente deixou para trás seu passado violento, negando, assim, a possibilidade de que os vestígios da ignomínia se transformem em espaços de reencontro, onde a sociedade se permita discutir abertamente sobre os acontecimentos do passado e elaborar um luto coletivo em torno daquela tragédia.

Expurgo (edifício Mónaco), percurso pelos andares subterrâneos,
Mauricio Carmona Rivera

Etimologicamente, a palavra “expurgo” (do latim expurgāre) refere-se à limpeza ou purificação, acepções que, se analisarmos a partir da política da memória, possuem uma relação inextricável com eliminação, censura, supressão, nesse caso, de um vestígio arqueológico de violência, um arquivo vivo que desaparece para a cidade e para as gerações futuras. Esse projeto, que está sendo realizado por fases, começou com a instalação de uma faixa de 44 x 2,5 metros no terraço do imóvel, uma interferência urbana que pôde ser observada durante a implosão do edifício em 22 de fevereiro de 2019,1 tornando-se assim um gesto tautológico, ao inscrever uma palavra cujas múltiplas conotações nos permite refletir sobre essas operações de expurgo, de um esquecimento planejado com o único fim de pacificar ruínas que são demasiado desagradáveis e incômodas.

Desde então, tem sido trabalhado o desenvolvimento do componente editorial e audiovisual do projeto, com o interesse de reunir o arquivo visual capturado durante as visitas ao interior e exterior do edifício, bem como durante o momento do colapso, no qual a palavra expurgo desaparece no meio da implosão. Durante os momentos prévios e posteriores à demolição da estrutura, estive atento à discussão gerada em escala nacional sobre esse evento, e considerei pertinente propor que o componente editorial incluísse não apenas a memória do projeto artístico, mas também uma multiplicidade de vozes que se uniram em torno das implicações dessa decisão para a cidade e para o país. Da mesma forma, e à medida que a pesquisa continuou a avançar, além dos textos publicados entre 2018 e 2019, foi decidido estender o convite a outros autores e pesquisadores que, de várias disciplinas e campos, têm refletido sobre violência e memória.2

Ao apagar o elemento tangível do edifício Mónaco, desaparece um registro que teria tornado possível reconstruir parte da história daquela violência, onde dimensões espaciais e temporais tiveram lugar. Não apenas a arquitetura tipo bunker, que possuía um sistema de guaritas em todos os níveis, mas também abrigos e galerias nos níveis subterrâneos do edifício, um ponto de referência espacial para as mais terríveis ignomínias. Uma máquina de guerra, a serviço da violência e da morte.3

Expurgo (edifício Mónaco), percurso pelos andares subterrâneos,
Mauricio Carmona Rivera

O livro poderia ser pensado como se fosse um arquivo arqueológico, mas não um que tivesse sido produto da escavação de um sítio, mas como resultado de uma cuidadosa remoção de escombros que permitiria a recuperação de alguns vestígios e fragmentos que resistissem à desintegração, onde as camadas estratigráficas seriam integradas por corpos de textos e imagens que nos levariam dos estratos visíveis na superfície para camadas mais profundas, mais enterradas. Se nos atemos a essa perspectiva, cada corpo estaria formado por um ou mais autores em torno de certos temas e conceitos que estabeleceriam conexões, acontecimentos, revelações e exumações na estrutura geral do livro.

Interferência urbana

Não há nada no mundo tão invisível como um monumento. São erigidos, sem dúvida alguma, para ser vistos e inclusive para atrair atenção; mas ao mesmo tempo estão impregnados com algo contra a atenção, e esta escorre sobre eles como uma gota de água sobre uma camada de azeite, sem parar um momento sequer.

Monumentos, Robert Musil

Estudo para Expurgo (fachada principal do edifício Mónaco), 2021,
Mauricio Carmona Rivera

A memória, a recordação e o esquecimento não são mais que faces de um mesmo prisma, múltiplo e complexo, no qual se entrelaça nossa experiência como indivíduos em relação a processos coletivos, sociais e políticos. Um acontecimento que possui tantas implicações históricas como a implosão do edifício Mónaco se converte em uma boa possibilidade para nos repensar como sujeitos em uma cidade como Medellín, e de que maneira ela se relaciona com seu passado, ainda mais quando os fenômenos que se pretende apagar — como é o caso do narcotráfico — não desapareceram em absoluto. Pelo contrário, se enraizaram e inclusive se expandiram exponencialmente através de novos mecanismos.

De acordo com Andreas Huyssen, no início do século XX, os ideais modernos levantaram as bandeiras do que poderia ser considerado os “futuros presentes”, as últimas décadas do século XX e o início do XXI nos levaram a um redirecionamento para os “passados presentes”, uma característica imanente das sociedades pós-modernas em sua relação com o tempo, o espaço e a memória. Assim, após a eliminação dos lugares, nos resta a possibilidade de reconstruí-los através dos rastros e vestígios do passado, através de um arquivo que se abre para a cidade, nesse caso, por meio de seus registros audiovisuais e documentais, o que talvez lhe permita sobreviver como objeto de estudo da arqueologia urbana contemporânea.

Em uma cidade como Medellín, onde os mesmos fenômenos têm ocorrido nas últimas décadas, onde

As políticas de memória cada vez mais fragmentadas de […] grupos sociais e étnicos em conflito dão origem à questão de se as formas consensuais de memória coletiva ainda são possíveis, [e se não for o caso] como a coesão social e cultural pode ser garantida sem tais formas. A memória midiática por si só não será suficiente, mesmo que os meios de comunicação ocupem espaços cada vez maiores na percepção social e política do mundo.4

Estudo para Expurgo (fachada secundária do Edifício Mónaco), 2021,
Mauricio Carmona Rivera

No caso do Holocausto e de outras formas de trauma histórico, apesar da “mercantilização e espetacularização em filmes, museus, documentários, sites da Internet, livros de fotografias, quadrinhos, ficção e até mesmo em contos de fadas (La vita é bella de Benigni) e canções pop”.5 Isso não os banalizou necessariamente como fatos históricos, mas tão pouco significa que todas as opções sejam aceitáveis do ponto de vista ético, mesmo que sejam válidas como possibilidades de representação da realidade, já que não pode e não deve haver uma interpretação unívoca ou correta.6Muito menos quando se trata do estabelecimento de uma história oficial, como sugere o arquiteto e historiador Luis Fernando González Escobar, que não só questiona a eliminação da materialidade patrimonial da paisagem urbana, mas também menciona, no caso de Mónaco, a importância de pensar esse legado como parte de uma estética Narc Decó,7manifestada em formas arquitetônicas, práticas cotidianas, moda, música e até mesmo nos corpos. E enfatiza os riscos que enfrentamos como sociedade ao destruir esses símbolos de violência, lembrando-nos de que sem lugar não há memória.8

A primeira versão do projeto Expurgo foi concebida como uma interferência urbana que consistia em inscrever a palavra em grande escala, diretamente no concreto da cobertura do edifício, o que seria feito perfurando a laje através do uso de martelos pneumáticos de demolição; uma operação que em si mesma encarnava um paradoxo: a de destruir para lembrar do esquecimento iminente. Um gesto tautológico sobre as complexidades de uma memória que é perfurada no que foi outrora o símbolo de ostentação e de poder de Pablo Escobar, e que se erigiu como uma ruína no coração do Sul da cidade. Uma intervenção que propôs atravessar a quinta fachada da estrutura como forma de refletir sobre a fragilidade da cidade, sua materialidade e capacidade de resiliência. Uma última escritura condenada a desaparecer, a ser devorada pelo estrondo da implosão que apagou para sempre o perfil desse edifício em torno do qual se alinhavaram tantas tragédias e mitos.

Estudo para Expurgo (planta do edifício Mónaco), 2021,
Mauricio Carmona Rivera

Devido às dificuldades de acesso ao imóvel, uma vez que a empresa encarregada de sua implosão tomou posse dele, e após um árduo processo de gestão, a empresa de comunicação que gerenciou a campanha finalmente concordou que uma versão que não envolvesse trabalho in situ poderia ser instalada. Assim, dois dias antes da demolição do edifício, uma faixa de 44 × 2,5 metros com o texto inscrito foi produzida e instalada pelos trabalhadores da Atila Implosiones. Uma obra que se desintegrou com o edifício e da qual restaram apenas imagens, capturadas por alguns drones que registraram o acontecimento, dando assim conta de sua transitoriedade física e de sua continuidade na infosfera.

Dessa forma, a circulação do arquivo através desse projeto editorial e de uma instalação de vídeo multicanal é proposta como eixo fundamental para a transmissão desse evento, com o interesse de divulgar memórias que talvez nos permitam refletir sobre essas arquiteturas, suas tipologias, sua relação com os fenômenos urbanos e a violência como elementos-chave na interpretação desse período da história, no qual podemos investigar e reconstruir visualmente e metaforicamente esse lugar, cujos estratos obscuros em torno do conflito que tanto marcou nossa sociedade foram apagados como evidência material daquele passado.

No arquivo, há também imagens dos percursos que realizamos pelos diferentes andares do edifício Mónaco, onde perambulamos, câmera na mão, por suas ruínas, com o interesse de dar conta da dimensão háptica da experiência de habitar os lugares e investigar tudo o que eles ocultam. No momento, pudemos vislumbrar nas paredes uma série de marcas pacientemente deixadas por saqueadores que esperavam extrair tesouros da ignomínia, configurando um estranho palimpsesto, signos-buracos, rastros-escavações, que se tornam um registro das múltiplas pessoas que tomaram de assalto esse espaço. Nos pisos subterrâneos, foram observadas salas de pânico, galerias, esconderijos ou buracos negros, espaços provavelmente destinados às humilhações, crimes e horrores da narco-violência.

Houve outra deriva no projeto, utópica, se se preferir, da qual restaram apenas alguns desenhos e ideias esboçadas. Utópica, mas de um ponto de vista distante do ideológico, onde, diante da iminente destruição do imóvel, foi proposta a possibilidade de preservar seus andares subterrâneos e fundações, não apenas como um registro confiável de sua existência para as gerações futuras, mas também como um lugar de memória e de reencontro coletivo.

Estudo para Koilon (edifício Mónaco), 2018,
Mauricio Carmona Rivera

Concretamente, a proposta consistia em preservar as ruínas parcialmente demolidas dos andares inferiores, dos quais faziam parte alguns recintos ocultos no nível do subsolo, e construir ao redor da cavidade um espaço com uso polivalente, com um auditório para conferências, concertos, um centro de documentação etc, onde através das fundações que permitiram a construção do edifício que se geraria a abertura de novos canais de sentido, como a possibilidade final de realizar uma transição de não lugar a lugar, onde plataformas transitórias, efêmeras e provisórias seriam o cenário no qual os habitantes da cidade teriam um espaço de encontro em torno do vazio deixado pela tragédia que nós, como sociedade, vivemos.

Essa abordagem retoma em parte a morfologia urbana dos gregos, que, embora tenha integrado e reinterpretado elementos de outras culturas, deu origem a novas concepções de espaço que gerariam rupturas com as formas hegemônicas de relacionamento, de reunião e de construção de espaços de diálogo entre pessoas que habitam o mesmo território:

As pesquisas arqueológicas deixaram claro que [o vazio da ágora] substitui algo de uma ordem muito diferente no centro das cidades “despóticas”. De fato, estas se organizam em torno de uma edificação que manifesta e sustenta o poder do déspota. Palácio, templo, pirâmide, zigurate, obelisco se elevam acima da terra a fim de se conectar diretamente com o céu, assegurando assim a ascendência celestial do déspota e seu séquito.9

Estudo para Koilon (teatro de Epidauro), 2013,
Mauricio Carmona Rivera

A polis grega foi em grande medida estruturada para atividades públicas e para o diálogo,

daí os elementos constituintes da morfologia urbana serem principalmente espaços públicos, ou mais precisamente, espaços sociais. A ágora, os edifícios públicos, o teatro e os territórios sagrados dos santuários (a Acrópole, por exemplo) […] foram as respostas espaciais às necessidades civis (políticas) e, portanto, constituem os principais elementos morfológicos da cidade grega.10

Félix Duque, em seu livro Arte público y espacio político, coloca as tensões existentes entre esses conceitos, e através da análise de monumentos, memoriais e obras de arte nos permite aproximar-nos de outras concepções da cidade e da possibilidade da própria cidade se tornar um lugar de debate público, onde a pluralidade e a dissidência fazem parte da construção de outras narrativas em torno da memória. O filósofo ressalta

a necessidade de “ações” temporárias na rua, breves, mas frequentes, que nos recordem constantemente do direito à diferença, da ação solidária e da luta contra o fascismo cotidiano, em vez de petrificá-lo em um determinado lugar e data, e condensá-lo em uma única comunidade, epítome de todas as ‘vítimas’ da terra.11

Prosseguindo com Félix Duque:

A arte pública estende essa obra de Sísifo ao próprio público, tomando-o como tema exemplar de sua meditação, trazendo à luz o espaço político em que está inscrito e tentando rompê-lo, desarticulá-lo e recompô-lo de mil maneiras, para que no público ressurja consciência e memória.12

Teremos que perguntar novamente o que nos falta fazer quando os lugares da memória, por mais nefasta que ela seja, tiverem desaparecido: é possível reconstruí-los através da criação de espaços de diálogo, do rastreio de vestígios e da abertura de arquivos? Entre 1955-56, Alain Resnais realizou o filme Noite e neblina, que toma seu nome do Decreto Nacht und Nebel, que nas palavras de Hannah Arendt significa “na calada da noite”, o nome eufemístico pelo qual os nazistas registraram suas operações nos campos de concentração, que encarnavam

as medidas destinadas a tratar as pessoas como se elas nunca tivessem existido, […] para fazê-las desaparecer no sentido literal da palavra […]. O horror autêntico dos campos de concentração e extermínio reside no fato de que os detentos, mesmo que consigam permanecer vivos, estão mais efetivamente isolados do mundo dos vivos do que se tivessem morrido, porque o terror impõe o esquecimento.13

Resnais percorre as ruínas de Auschwitz com sua câmera através de um travelling que nos leva dos gélidos campos de concentração abandonados ao arquivo fílmico e fotográfico apreendido dos nazistas, o que dá um rosto ao horror da morte e do extermínio perpetrado no Holocausto. Uma voz em off nos recorda:

A guerra adormece… com um olho sempre aberto […] Quem entre nós vigia desde esta estranha guarita para avisar da chegada de novos carrascos? Suas caras são realmente diferentes das nossas? […] Examinamos essas ruínas com um olhar sincero, como se o velho monstro estivesse deitado sob os escombros. Pretendemos nos encher de novas esperanças, como se as imagens retornassem ao passado, como se fôssemos curados, de uma vez por todas, da praga dos campos de concentração. Como se acreditássemos verdadeiramente que tudo isso aconteceu somente em uma época e somente em um país. E que ignoremos as coisas que nos rodeiam, e que façamos ouvidos surdos ao grito que não se cala.

Um documentário devastador que nos faz perguntar sobre a necessidade imperativa que temos de construir memória para não permitir que a barbárie desapareça no esquecimento. Ainda mais quando na Colômbia gostaríamos de apagar o passado recente e esquecer que essas formas de extermínio continuam a serem executadas, como documentado por Javier Osuna em seu livro Me hablarás del Fuego, que reconstrói a infâmia dos fornos crematórios empregados pelos paramilitares em várias zonas do país.

Estudo para Expurgo (planta do edifício Mônaco) negativo, 2021,
Mauricio Carmona Rivera

Não quero terminar sem mencionar coisas de que me lembro desde o dia da implosão e do espetáculo encenado no Club Campestre, como aquela coluna de pó que parecia afastar-se em direção ao oeste da cidade, mas que, após uma mudança na trajetória dos ventos, acabou invadindo o próprio epicentro da cerimônia oficial, até desintegrar-se nos campos de golfe e depositar algumas partículas no catering que os organizadores haviam preparado para os participantes. Mas de nada me lembro com maior intensidade do que do estrondo produzido pela implosão, como se fosse o ranger de dez mil ossos partidos em uníssono, até diluir-se em um zumbido monótono e contínuo, seguido pelo aplauso do público. Pensei por um momento que essa imagem estaria ligada à violência e à morte deixadas pela guerra em nosso país, mas agora acho que foi uma previsão dos dias sombrios que continuamos a viver, e que vimos em parte transmitidos em tempo real durante o ano de 2021.