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A Proposition 22 como nova regra salarial racial1

Vinícius Ribeiro

Em 28 de agosto de 2020, no aniversário do discurso “I have a dream” de Martin Luther King, proferido na histórica Marcha para Washington por Empregos e Liberdade, moradores do centro de Oakland perceberam um novo outdoor proeminente. Na esquina das ruas Broadway e Webster, diretamente acima de um estabelecimento popular na comunidade de imigrantes do leste da África, uma propaganda grande, em branco e preto, exibia o slogan: “Se você tolera o racismo, delete a Uber”. O diretor da Uber para diversidade e inclusão celebrou a campanha de forma triunfal, afirmando no Twitter: “Chegou a hora de todas as pessoas e organizações posicionarem-se pelo que é certo”. Em um verão marcado pela disseminação dos protestos Vidas negras importam, em reação aos homicídios de George Floyd e Breonna Taylor por policiais, assim como por uma pandemia global que matou trabalhadores afro-americanos e latinos de forma desproporcional, a Uber colocou propagandas semelhantes em outdoors espalhados por cidades dos Estados Unidos (EUA).2

A expressão “Se você tolera o racismo, delete a Uber” apropriou-se da linguagem da memorável campanha #DeleteUber, lançado como uma ação direta contra a empresa pela Aliança dos Trabalhadores de Táxi de Nova York (NYTWA, na sigla em inglês) quatro anos antes. Em resposta ao decreto 13.769 de 2016, do presidente Donald Trump, que restringia imigração de sete países de maioria muçulmana, milhares de manifestantes deslocaram-se até os principais aeroportos dos EUA, exigindo que Trump revogasse o decreto que ficou conhecido como “banimento dos muçulmanos”. Em solidariedade aos manifestantes e aos imigrantes muçulmanos, incluindo a maioria dos motoristas de táxi, Uber e Lyft da cidade de Nova York, a NYTWA organizou uma paralisação no aeroporto John F. Kennedy. Em seguida, face à queda da oferta de condução saindo do aeroporto, os preços dinâmicos da Uber direcionaram motoristas para o aeroporto JFK, com o algoritmo confrontando a greve. Isso, por sua vez, indignou os manifestantes que amplificaram a chamada da NYTWA para #DeleteUber em nome da justiça racial e econômica. Segundo a NYTWA, a Uber decimou a renda dos trabalhadores de táxi, majoritariamente imigrantes, e recusou-se a oferecer salários mínimos ou pagamento por horas-extra para seus próprios motoristas. A hashtag ficou por algum tempo entre as mais compartilhadas e centenas de milhares de pessoas apagaram o aplicativo da Uber de seus telefones.

Quatro anos depois, o novo slogan publicitário da Uber — “Se você tolera o racismo, delete a Uber” — era incompreensível para muitos dos seus motoristas. Na manhã seguinte à aparição do primeiro outdoor, um motorista da Uber tirou uma foto dele com seu celular e compartilhou-a em um grupo. “O que isso significa?”, ele perguntou. “Onde está isso?”, outro respondeu, “Qual é a relação entre ser racista e boicotar a Uber?”

Por cerca de sete meses, integrantes da força de trabalho das plataformas de transporte e de entrega de comida — que consiste primordialmente em imigrantes e pessoas negras — mobilizaram-se para evitar que a Proposition 22 fosse aprovada. O instrumento legal ameaçava retirar os direitos trabalhistas concedidos aos trabalhadores de empresas-plataforma da Califórnia e codificar uma terceira categoria rebaixada de trabalho para “trabalhadores em rede” de entrega e transporte. Muitos desses motoristas trabalharam para a Uber — e sua concorrente Lyft — por mais de meia década. Eles experimentaram os impactos reais de cortes salariais contínuos, controle algorítmico caixa preta e classificação (equivocada) como autônomos. À medida que a pandemia devastou suas comunidades3 e reduziu drasticamente a demanda por serviços de transporte de passageiros, muitos motoristas — apesar de anos de lealdade e trabalho duro — não puderam acessar benefícios básicos da rede de proteção social como seguro-saúde e seguro-desemprego estadual. Alguns foram forçados a escolher entre expor-se ao vírus ou passar fome. Para motoristas afro-americanos como Cherri Murphy, a tentativa da empresa de apropriar-se do manto da justiça racial era confusa e revoltante. “Justiça econômica”, ela afirmou repetidamente durante a campanha, “é justiça racial” (grifo meu).

Ao patrocinar a Proposition 22, Uber, Lyft, DoorDash e Instacart investiram um valor recorde de 203 milhões de dólares para, entre outras coisas, estabelecer uma regra salarial diferente para o setor, que efetivamente legalizaria a imprevisibilidade do pagamento por entrega.4 Os motoristas, nos termos da proposta, seriam remunerados por tarefa, em vez de pelo tempo que eles passam trabalhando.5 Inflamada pelo que ela chamou de “hipocrisia da Uber”, a motorista afro-americana e manifestante contrária a Proposition 22 Mekela Edwards denunciou a empresa pela “audácia de explorar as emoções da população negra com esse outdoor. Embora eu esteja desapontada, eu não estou surpresa, uma vez que as empresas gig como a Uber têm explorado motoristas já há vários anos.” Cherri qualificou o outdoor como uma distração, para proteger a reputação da empresa do fato de que ela copatrocinou a Proposition 22.


A criação pela Proposition 22 de uma nova regra salarial rebaixada foi obscurecida de propósito. Em minha pesquisa com motoristas Uber e Lyft e em conversas com jornalistas, incluindo os conselhos editoriais dos principais jornais da Califórnia,6 antes das eleições de novembro de 2020, descobri que nem os trabalhadores nem os sofisticados analistas da mídia entendiam os termos básicos da lei. O resumo da proposta, classificado em um nível de leitura de grau 18,7 afirmava, em parte, que “motoristas autônomos teriam direito a (…) benefícios — incluindo salário mínimo, auxílios de saúde e seguro de veículo”. Tanto em anúncios quanto em declarações públicas, a campanha do Sim para a Proposition 22 e representantes empresariais enfatizaram que a proposta daria aos trabalhadores “120% do salário mínimo” e “novos benefícios”.8 Embora isso soasse ainda melhor do que as proteções salariais mínimas existentes, estes ganhos e benefícios são determinados pelo tempo considerado a partir da alocação algorítmica do trabalho, ao invés do tempo real que os trabalhadores gastaram trabalhando. Na realidade, a lei, retirou todos os direitos trabalhistas básicos — incluindo o salário mínimo e as horas extras e, em alguns casos, substituiu-os por novos, mas em versões reduzidas (ver Tabela 1).

Para entender as formas pelas quais esta proposta cria um diferencial salarial racial que lembra as regras salariais da National Recovery Administration (NRA) e os esvaziamentos setoriais do New Deal, eu situo a Proposition 22 dentro da recente cronologia das leis trabalhistas da Califórnia e detalho seu conteúdo.9 A Proposition 22 foi um referendo sobre o Projeto de Lei nº 5 da Assembleia (AB5), aprovado pela legislatura estadual da Califórnia em 2019, que estendeu e codificou uma recente decisão da Suprema Corte da Califórnia. No ano anterior, em Dynamex v. Superior Court of Los Angeles, um caso sobre a classificação errada de um motorista de entregas, o Tribunal unanimemente expandiu o alcance das regras salariais da Califórnia.10 A decisão da Dynamex criou uma presunção de status de emprego para todos os trabalhadores californianos e estabeleceu o teste ABC para determinar quem não é empregado e, portanto, não está abrangido pela regra salarial.11 De acordo com a Corte, “estas obrigações fundamentais das regras salariais da Industrial Welfare Commission [IWC]12 (…) são em benefício dos trabalhadores (…) destinadas a permitir que eles forneçam pelo menos um mínimo para si mesmos e suas famílias e a lhes conceder um mínimo de dignidade e respeito”.13 Ao justificar esta afirmação, a Corte citou pesquisas afirmando a importância do salário mínimo para as comunidades minoritárias para “desfazer os padrões históricos de injustiça”.14


A AB5, de autoria e proposta pela deputada Lorena Gonzalez no ano seguinte, ampliou o entendimento da Corte para a totalidade das regras trabalhistas da Califórnia (incluindo as leis de compensação aos trabalhadores), bem como para suas regras de seguro-desemprego. Em defesa da legislação, a deputada Gonzalez citou tanto o crescente problema de classificação errada no setor de serviços, quanto o fato de que a Califórnia é o estado mais diverso e desigual do país. Enquanto a AB5 se aplicava a quase todos os trabalhadores da Califórnia, ela era comumente referida como “a Lei do Gig Worker” devido ao seu potencial de minar os argumentos legais da Uber e Lyft de que seus motoristas não devem ter proteções básicas de emprego.15 Em favor do projeto de lei, a parlamentar Gonzalez, assim como as lideranças da National Association for the Advancement of Colored People (NAACP) e da National Urban League (NUL) durante o New Deal, argumentou que todos os trabalhadores — incluindo as minorias raciais e os trabalhadores imigrantes que fazem trabalhos subordinados de aplicativos — precisam ter acesso às proteções da lei trabalhista, como o salário mínimo. Nesse sentido, ela enquadrou a lei e o problema em termos explicitamente raciais:

As empresas da gig economy recrutam estrategicamente motoristas que são da classe trabalhadora e da comunidade não branca. Elas [procuram] trabalhadores vulneráveis que estariam em um ciclo contínuo de desespero e necessidade por dinheiro imediato. Elas [tentam] assegurar que esses motoristas — que são esmagadoramente negros e pardos — sejam relegados a uma classe inferior permanente de trabalhadores que ganham menos do que o salário mínimo sem nenhum benefício real.16

Como a AB5 estava sendo analisada e debatida pela legislatura estadual da Califórnia, o projeto de lei foi fortemente apoiado pelos gig workers e seus aliados. Milhares de motoristas de aplicativo fizeram uma histórica greve global contra Uber e Lyft em maio de 2019,17 protestaram em frente às sedes das empresas em inúmeras ocasiões e participaram de uma caravana no final de verão para a capital da Califórnia com o objetivo de pressionar o legislativo estadual a votar a favor da lei. Em um protesto em Sacramento, o Presidente da Assembleia, Anthony Rendon, rodeado de trabalhadores negros, acusou as empresas-plataforma de “oprimir os trabalhadores” por meio de sua classificação errada e descreveu a gig economy como “o maldito feudalismo de novo”.18

Apesar de meses de lobby agressivo por parte das empresas e tentativas de trazer os trabalhadores para uma negociação,19 a AB5 foi aprovada e sancionada pelo Governador Newsom em setembro de 2019. Em minha pesquisa, muitos motoristas Uber e Lyft acreditavam que a aprovação da lei significava que eles teriam acesso imediato a proteções de salário mínimo, horas extras, reembolso de despesas, auxílio-doença e seguro-desemprego. Mas mesmo após a entrada em vigor da lei, os motoristas de transporte da Califórnia relataram que seus ganhos líquidos caíram abaixo do salário mínimo. Em um dos setores mais perigosos do país, eles também continuaram a trabalhar sem auxílio-doença.

Em vez de cumprir com a Dynamex e a AB5, os representantes das empresas insistiram publicamente que a lei não se aplicava a elas. Além de sua recusa em cumprir a lei existente, Uber, Lyft, DoorDash, Instacart e Postmates elaboraram e propuseram a Proposition 22, uma iniciativa de referendo que afastaria as leis trabalhistas estaduais dessas empresas e legalizaria seu modelo de negócios.20 A Proposition 22 criou uma terceira categoria de trabalhadores na Califórnia — definida como “trabalhador da rede de transporte ou entrega” — que não teria direito às proteções das leis estaduais trabalhistas. Embora a linguagem da proposta estabeleça que os trabalhadores que atendem a essa definição são “autônomos” e não “empregados” para fins das regras trabalhistas e de seguro-desemprego do estado, a proposta também restringiu o direito individual dos trabalhadores de negociar contratualmente em termos distintos, uma marca registrada dos verdadeiros autônomos. Por exemplo, ao invés de estabelecer seus próprios preços, atribui-se aos trabalhadores das empresas de transporte e de entregas um conjunto de regras de remuneração que se aplicam somente a eles. Da mesma forma, em vez de construir uma clientela, os trabalhadores dessas empresas são proibidos por contrato de ter clientes.

À medida que a campanha para aprovar a Proposition 22 cresceu, os esforços para efetivar a AB5 foram reforçados tanto por motoristas organizados quanto pelas exigências da pandemia de covid-19. A partir de fevereiro de 2020, milhares de motoristas, cansados de esperar pela aplicação da lei, apresentaram reclamações individuais contra seus empregadores junto ao California Labor Commissioner’s Office (Escritório do Comissário do Trabalho da Califórnia), sob os auspícios da “People’s Enforcement Campaign” da Rideshare Drivers United. A Rideshare Drivers United (RDU), um grupo de advocacy composto por motoristas Uber e Lyft, foi criada dois anos antes por motoristas que procuravam melhorar suas condições de trabalho por meio da defesa de seus interesses e da ação coletiva. Em janeiro de 2020, a organização contava com mais de 20 mil motoristas de todo o estado.21


Na terceira semana de março de 2020, quando a pandemia de covid-19 começou a se disseminar pela Califórnia, muitos membros da RDU e motoristas de transporte de aplicativos ficaram doentes e alguns morreram devido à exposição ao vírus. O governador da Califórnia emitiu ordens de lockdown em todo o estado, permitindo aos trabalhadores “essenciais” continuar a trabalhar. Sob a Ordem Executiva N-33-20, a entrega de alimentos e os motoristas de transporte de passageiros foram considerados “essenciais”, mas com a demanda por trabalho de transporte a um nível mínimo histórico, os motoristas que arriscaram se expor ao vírus perderam dinheiro.22 Como dezenas de milhares de motoristas pleitearam o seguro-desemprego, eles enfrentaram um pesadelo burocrático criado por sua classificação errada. O California Employment Development Department (Departamento de Desenvolvimento de Emprego da Califórnia), a agência responsável pela administração do seguro-desemprego, não tinha registro do emprego dos motoristas ou de seus salários. Seus empregadores, Uber e Lyft, estavam exortando os motoristas a aceitar a Pandemic Unemployment Assistance (Assistência ao Desemprego na Pandemia), uma medida federal temporária de emergência para autônomos que calculava os benefícios com base na renda líquida ao invés da renda bruta, proporcionando pagamentos semanais significativamente mais baixos.23

Catalisado pela People’s Enforcement Campaign da RDU e pelas exigências da pandemia de covid-19, o Procurador-Geral da Califórnia Xavier Becerra, ao lado dos procuradores das maiores cidades da Califórnia, moveu uma ação contra Uber e Lyft no início de maio de 2019 para fazer cumprir a AB5, alegando que as empresas estavam violando as regras trabalhistas e o de seguro-desemprego do Estado. Eles também pediram uma liminar para obrigar as empresas a cumprir imediatamente as leis trabalhistas estaduais. Em uma decisão judicial proferida no início de agosto, o pedido do Estado foi deferido e o tribunal considerou que os motoristas Uber e Lyft eram inequivocamente empregados para fins de lei estadual. As empresas apelaram, mas em 22 de outubro de 2020, um tribunal de apelação confirmou a decisão e a liminar.

Contudo, apenas quinze dias depois, a Proposition 22 foi aprovada. A lei recuou décadas de decisões judiciais, políticas de agências da Califórnia e leis estaduais sobre direitos dos trabalhadores. Ela concede às empresas de transporte de passageiros e de entregas o controle completo em seu relacionamento com seus trabalhadores na Califórnia por meio de contratos, o que significa que os trabalhadores dessas empresas são vulneráveis às constantes mudanças em seus termos e condições contratuais e às vicissitudes do controle algorítmico. Reminiscente do impacto das regras salariais diferenciadoras e do esvaziamento do New Deal em relação à força de trabalho agrícola e doméstica afro-americana, a Proposition 22 permite que uma força de trabalho composta por uma minoria racial majoritária não tenha acesso a nenhuma das proteções das leis trabalhistas da Califórnia — presentes ou futuras. Embora esses trabalhadores continuem a arcar com as despesas de suas atividades e muitos trabalhem em tempo integral, eles não têm direito a reembolsos apropriados de veículos (calculados em 2020 em 57,5 centavos por milha), auxílio-doença, seguro-desemprego, licença por doença, licença familiar remunerada,24 seguro de saúde fornecido pelo empregador ou proteção contra discriminação baseada no status imigratório, entre outras coisas. A Proposition 22 também impede que os governos locais e estadual legislem no âmbito dos direitos dos trabalhadores das empresas de transporte de passageiros e de entregas via aplicativos.25

Pela primeira vez na legislação trabalhista dos EUA, a Proposition 22 cria uma regra salarial inteiramente nova para pessoas definidas como “trabalhadores em rede de transporte ou entrega”. Em um aspecto importante, o método legalizado pela Proposition 22 para calcular o piso salarial permite uma desigualdade ainda maior do que os salários mais baixos destinados aos trabalhadores afro-americanos pela NRA: criticamente, este método não garante nenhum ganho líquido. Em vez de serem pagos pelo tempo que passam trabalhando, os trabalhadores são pagos por peça ou tarefa. Seu salário por unidade não é baseado em uma taxa previsível, mas calculado de acordo com a quantidade de trabalho que lhes é atribuída algoritmicamente, uma determinação personalizada sobre a qual eles não têm controle. No papel, os trabalhadores das empresas de transporte de passageiros e de entregas via aplicativos têm direito a 120% do salário mínimo e 30 centavos de dólar por milha de reembolso. Mas estes salários e reembolsos estão vinculados ao “tempo contratado” e “milhas contratadas” — isto é, tempo e milhas depois de ter sido determinada uma atividade — em vez de todo o tempo de trabalho e milhas rodadas. Mais importante ainda, os trabalhadores não são pagos pelo tempo que gastam ansiosamente aguardando viagens ou pedidos de entrega. Estudos financiados pelo setor colocam a quantidade de tempo de espera não pago em cerca de 37% do tempo total trabalhado.26 Em minha pesquisa, os trabalhadores calculam que, em geral, o tempo de espera não remunerado compreende entre 40% e 60% do total de suas horas de trabalho semanais. Com base na estimativa de tempo não trabalhado feita pelo próprio setor em São Francisco, calculo que os motoristas que trabalham uma semana de cinquenta horas ganham pelo menos US$ 634,29 a menos sob a Proposition 22 em comparação com as leis trabalhistas locais e estadual, com base em cálculos de salários e em perdas em reembolsos de quilometragem.

Contudo, mesmo a percentagem de tempo parado é imprevisível e sujeita a mudanças na demanda (causadas pela pandemia, por exemplo) e aos caprichos dos algoritmos que alocam trabalho para cada motorista. Os algoritmos servem como um nó para o extremo controle do empregador. Os motoristas, por exemplo, relataram que sentem que o aplicativo os “castiga” por não aceitarem determinadas tarifas ou por se aproximarem demais de seu patamar para receber bônus.27 Os benefícios abaixo do padrão previstos pela lei também são facilmente burláveis. A caixa preta na qual este controle algorítmico opera torna impossível saber exatamente o que os trabalhadores estão passando, mas alguns trabalhadores disseram que após a Proposition 22, à medida que se aproximam do limite de “tempo contratado” para a receber do seguro saúde, eles deixam de receber trabalho.

Por estas razões, a regra salarial das empresas da gig economy equivale a uma regra salarial diferenciadora mais inferior para uma força de trabalho negra. E, ao contrário da regra salarial diferenciadora imposta aos trabalhadores industriais afro-americanos, esses salários não são certos, nem previsíveis.

Tabela 1: Resumo dos Direitos dos Trabalhadores das empresas de transporte de passageiros e de entregas via aplicativos na Califórnia, Antes e Depois da Proposition 22


Tabela 1.
Antes da Proposition 22 Com a Proposition 22

Salário mínimo

Pagamento por “tempo contratado” * apenas a 120% do salário mínimo

Horas extras a 150% do salário mínimo para trabalho acima de 8 horas/dia e 40 horas/semana

Nenhum

Reembolso a US$ 0,575/milha por todas as milhas percorridas durante o trabalho

Reembolso a US$ 0,30/milha por milhas percorridas durante o “tempo contratado” *

Seguro saúde através da Affordable Care Act

“Subsídios” de saúde para trabalhadores que possuem seguro saúde e que trabalham por quinze ou mais horas de “tempo contratado” *.

Licença por doença paga de pelo menos 3 dias

Nenhum

Licença familiar paga por 8 semanas

Nenhum

Indenização dos trabalhadores — cobertura por lesões no trabalho sem culpa

Seguro de acidentes limitado para cobrir ferimentos (não sem culpa)

Seguro-desemprego — até 26 semanas de benefícios por perda de emprego sem culpa

Nenhum

Seguro de invalidez — cobertura de vida

Pagamentos por invalidez por até 2 anos

* O “tempo contratado” não considera o tempo com o aplicativo ligado, aguardando trabalho.


Nos estertores da campanha favorável à Proposition 22, a Lyft propagandeou seu esforço para “erguer” comunidades negras em um anúncio de um minuto no YouTube com a voz poderosa de Maya Angelou, poeta afro-americana e ex-trabalhadora do transporte público, recitando seu poema muito amado “No ritmo da manhã”. O poema de Angelou, escrito para e recitado na posse presidencial de Bill Clinton em 1993, trata dos potenciais de um novo dia e de esperança em face da devastação causada pelo passado. No anúncio, a voz de Maya Angelou serve de pano de fundo para cenas de trabalhadores negros, de máscara e felizes — em um café, em um carro, em uma cozinha comercial. No final do anúncio, é exibida a frase “LyftUp oferece transporte gratuito para comunidades que não têm acesso a comida, empregos e serviços essenciais”. Recorrendo às palavras e à voz de Angelou para transmitir sensibilidade racial, a empresa exclui estrategicamente os versos em que a famosa poeta detalha a violência do capitalismo racial: “Suas lutas armadas por lucro/ Deixaram colares de lixo na/ Minha encosta, correntes de destroços”.28

Promulgada por decreto de agência, lei, iniciativas populares ou conciliação privada com representantes dos trabalhadores, uma regra salarial rebaixada para o trabalho em plataformas terá ramificações racializadas injustas. O rebaixamento das regulações salariais e de benefícios para os trabalhadores nas margens do mercado de trabalho por meio de uma terceira categoria — independentemente de essa categoria refletir os termos específicos da Proposition 22 ou ser enquadrada de forma mais benevolente por legislação ou compromisso sindical privado — necessariamente enraizará hierarquias racializadas e será historicamente compreendida como uma forma de abandono de trabalhadores espoliados.29 Enquanto as empresas-plataforma e seus financiadores buscam difundir esse modelo de trabalho para outros setores e a terceira categoria para outros estados, devemos conceber tais esforços não apenas como ataques amplos à segurança econômica, mas também como o desenvolvimento insidioso do império do capital sobre os corpos de minorias raciais subordinadas. Podemos recorrer às visões, ações e mobilizações dos trabalhadores da base que lutaram contra a subordinação econômica racializada no contexto da Proposition 22 para inspiração sobre como enfrentar a espoliação e lutar por justiça.