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Gerenciamento, consumo e (des)valor do trabalho por aplicativos: implicações à saúde de entregadores

Vinícius Ribeiro

As pesquisas sobre as configurações do trabalho designadas pelo termo uberização têm se debruçado sobre uma diversidade de realidades, tanto em termos de conjuntura sociopolítica e econômica, quanto de conformações singulares da experiência dos trabalhadores que emergem com esses novos modos de governança e relações de consumo.

Em um projeto interinstitucional de pesquisa e extensão em curso1 (Alvarez et al, 2021), temos identificado uma diversidade de sentidos atribuídos ao trabalho por entregadores e motoristas por aplicativos. Essa diversidade pode estar relacionada a trajetórias distintas de vida e trabalho desses profissionais, como experiência naquele e em outros trabalhos, cidade/território de atuação, acesso a outras fontes de renda, veículo utilizado e filiação ou não a movimentos organizados de trabalhadores. No entanto, invariavelmente essas trajetórias se mostram atravessadas por um contexto com altos índices de desemprego, perda de direitos sociais e desregulamentação das relações de trabalho (Sabino e Abílio, 2019), fazendo com que o quadro de transformações nos processos produtivos inaugurado por empresas-plataforma, como a Uber, tome contornos específicos no nosso país.

A nosso ver, uma importante especificidade dessa nova forma de expropriação da força de trabalho é o distanciamento dos efeitos locais em relação às decisões de negócio, que as tecnologias incorporadas possibilitam às empresas (Supiot, 2015). Dentre tais efeitos, destacam-se os custos pessoais e sociais dessa conformação do trabalho na saúde e segurança dos trabalhadores, com implicações também nos gastos públicos com saúde e previdência.

Neste texto, nosso foco é a saúde de entregadores por aplicativos ― “ponta do iceberg” do fenômeno da uberização em expansão na sociedade capitalista atual. Para tal, é necessário considerar tanto os fatores de riscos já conhecidos, como os desafios relativos a esta nova configuração de trabalho, incorporando ainda os trazidos com a pandemia de covid-19. Tal análise deve contemplar tanto os fatores associados a formas anteriores de realização do trabalho de entrega quanto as questões relacionadas à precariedade de condições de trabalho e de proteção social relativas à informalização e não pode contornar os elementos ligados ao controle do trabalho por algoritmos (Liberato, Oliveira & Silva, 2020; Uchôa-de-Oliveira, 2020), bem como as dissimetrias de poder de decisão entre as partes envolvidas, embora ocultadas por uma aura de neutralidade e objetividade desses sistemas. Além disso, assinala-se a importância de que essa discussão se dê ainda pela via das relações de consumo e das dissimetrias também nelas presentes.

Gerenciamento algorítmico e saúde no trabalho por aplicativos

As novas tecnologias de comunicação e informação possibilitam a definição de uma forma de controle do trabalho que se processa sem intervenção humana explícita por uma fórmula computacional de decisões automáticas tomadas com base em modelos estatísticos ou regras de decisão (Eurofound, 2018), configurando o que se tem denominado “gerenciamento algorítmico” (Dugan et al, 2020). Essa forma de governança do trabalho, que não prescreve os meios e condições para sua realização, longe de conferir autonomia aos trabalhadores, gera um aumento das responsabilidades por eles assumidas, pelas quais não são necessariamente remunerados. Na relação com entregadores por aplicativos, ela possibilita que as empresas se distanciem ainda mais da realidade por eles vivida e deliberadamente ignorem as condições concretas em que o trabalho se realiza, assegurando-se a elas um custo mínimo, tanto em relação aos meios de produção ― como combustível, reparos das bicicletas e motocicletas e os próprios smartphones ― quanto em relação à força de trabalho (Fontes, 2017), remunerada apenas pelo resultado final alcançado. Em vez de liberdade, fazer a gestão do seu tempo e dos meios de trabalho se coloca como uma necessidade.

Ademais, esse modo de gerenciamento por algoritmos alcança talvez o mais alto patamar do ideal gerencialista de se distanciar dos problemas concretos de trabalho. Um exemplo são os trajetos indicados pelos aplicativos que ignoram as especificidades da realização do percurso por bicicletas, acarretando ampliação do esforço, dos riscos e/ou do tempo dispendidos para a realização do serviço. Nos grupos de discussão (Encontros sobre o trabalho) realizados remotamente com oito entregadores em setembro de 2020, os participantes reforçaram a informação de que, de modo geral, quando atuam por aplicativos, têm precisado estender sua jornada de trabalho por conta da diminuição dos valores pagos pelas entregas durante a pandemia. No que tange às condições de trabalho, relatam dificuldades de acesso a uma alimentação adequada, a locais apropriados para tal, assim como para a realização de pausas, necessidades fisiológicas e carregamento dos celulares. No que se refere aos meios de trabalho, além de arcar com os custos, assumem de forma solitária o risco de perdê-los por desgaste, furtos ou assaltos. Diante desse quadro de precariedade de condições e (re)organização do trabalho, evidenciam-se os desafios que os entregadores enfrentam cotidianamente na preservação da saúde e da vida.

Dentre eles, destaca-se a exposição contínua ao risco de acidentes de trânsito, em relação aos quais as empresas ou não reconhecem sua responsabilidade ou dificultam o acesso à assistência e ao suporte, através de sistemas de comunicação quase unilaterais possibilitados por esse sistema algorítmico de gerenciamento. No que tange ao adoecimento físico, relatam-se problemas posturais ligados à carga excessiva muitas vezes transportada, à fadiga pela jornada extensa e a problemas gastrointestinais e renais relacionados à alimentação e hidratação deficientes e irregulares. Há ainda relatos sobre excessiva exposição à poluição e à ampliação do risco de acidentes e adoecimento relacionado ao trabalho realizado em dias chuvosos.

No plano psicossocial, ressalta-se a associação das imprevisibilidades das situações concretas de trabalho (como, por exemplo, furar o pneu) à forma ― pouco transparente e ilusoriamente neutra ― como as empresas-plataforma estabelecem os critérios e referências de remuneração, incentivos e punições, gerando, por exemplo, o receio de ser bloqueado ― temporária, ou permanentemente, de forma explícita ou velada ― caso o trabalhador não corresponda a esses critérios. Resulta da imprevisibilidade de recrutamento e instabilidade dos parâmetros de desempenho, remuneração e permanência nos aplicativos, a vivência de uma insegurança constante em relação à manutenção de seu sustento ― definida por uma participante como “uma noia psicológica” ― que os impulsionam a se submeter cada vez mais a esses critérios, mesmo que não muito conhecidos, se esforçando e se arriscando sempre mais na busca pelo trabalho, podendo não obter as vantagens prometidas.

Relações de consumo e o valor social (do trabalho) dos entregadores

Além dos riscos já indicados a que se expõem, o de contaminação é uma realidade na rotina dos entregadores nesse contexto de pandemia. Há indícios de que eles têm tido baixo nível de proteção estatal e de apoio das empresas nas medidas de prevenção e proteção contra a doença. Segundo análise dos dados da PNAD-Covid19 em 2020 (Lapa, 2021), apenas 11% dos entregadores realizaram testes-diagnósticos. Dentre eles, aproximadamente 4,5% testaram positivo, número significativamente acima do índice geral da população brasileira, que estava em 3,04%. Apesar de serem considerados trabalhadores essenciais, que contribuem para o isolamento de uma parte significativa da população nos grandes centros, os entregadores são ao mesmo tempo “evitados” por aqueles que fazem uso dos seus serviços ― mesmo que não diretamente, mas por demarcações territoriais em que se subentende que eles não podem ocupar. Um exemplo é a circulação de vídeos de denúncia de situações em que entregadores são ostensiva ou indiretamente indicados a se retirar de áreas públicas como calçadas, pátio e áreas internas de shoppings, muitas vezes a pedido de lojistas e moradores locais.

Além do distanciamento físico, chama a atenção um distanciamento social entre os que prestam e os que consomem os serviços de entrega, muitas vezes na forma de indiferença dos últimos em relação às condições de vida e trabalho dos primeiros. Participantes da pesquisa relatam situações que ferem sua dignidade, como a de não terem acesso a banheiro e à água para beber, por exemplo. Afirmam muitas vezes serem tratados como pessoas que não são merecedoras de confiança, os primeiros a serem culpabilizados pelos problemas. Nas palavras de um participante da pesquisa: “(…) ou você é um pobre coitado, ou você é um cara que vai roubar lanche ou vai fazer alguma besteira, né?”. Ao expressar como são percebidos ― carentes ou perigosos ― esse trabalhador chama a atenção para o cotidiano humilhante não apenas de muitos entregadores por aplicativos, mas de dezenas de milhões de brasileiros (especialmente mulheres pobres e pretos) que, considerados despreparados para o trabalho produtivo no capitalismo altamente competitivo de hoje (Souza, 2011), são relegados a subempregos e ao desvalor do seu trabalho e muitas vezes de si próprios.

Nas metrópoles, a profissão de entregador ciclista já existia de forma dispersa, mas se expande e se firma como uma ocupação ao ser oferecida como oportunidade de trabalho de modo centralizado pelas empresas‐aplicativo de entregas. Bikeboys desempenham a mesma atividade que motoboys, só que de forma ainda mais precária e arriscada. (…) a participação significativa de jovens negros nesse trabalho está relacionada com essa precarização. (Abílio, 2020).

Assédios e discriminações ― que se caracterizam como parte estruturante e histórica do trabalho precário em nosso país ―, parecem se agudizar com a prestação destes serviços a partir de aplicativos que contribuem para um maior distanciamento e desvinculação da relação entre trabalhadores e consumidores, ampliando a invisibilidade social de suas condições de trabalho e de vida. Jessé de Souza (2011) chama a atenção de que a naturalização da desigualdade social é justamente o que permite indefinidamente sua reprodução cotidiana. Trata-se, segundo ele, de uma verdadeira luta de classes, que se apresenta de forma cotidiana, invisível e silenciada. E as empresas tendem a instrumentalizar-se dessa situação, como, por exemplo, o iFood na veiculação de peças publicitárias divulgando valores irreais de remuneração numa tentativa de jogar os clientes contra os entregadores durante o “Breque dos Apps”, visando, de acordo com um participante da pesquisa, “transformar a gente em vilão, em culpado”.

Produção de saúde?

Uma das formas identificadas de os trabalhadores esboçarem resistência aos aplicativos e à precariedade do trabalho a eles associadas passa por tentar (re)estabelecer o vínculo comercial diretamente com os clientes a partir da prestação de serviços particulares. Esta alternativa ― que, segundo os participantes, não é viável como única maneira de atuar, não caracterizando propriamente uma saída efetiva da utilização dos aplicativos ― vem sendo experimentada, tanto individualmente como em rede, pelos trabalhadores. Redes que se estabelecem muitas vezes a partir da socialização resultante do trabalho por aplicativo nas ruas das grandes cidades. Neste sentido, identificamos a realização de serviços a partir de grupos de WhatsApp de motofretistas em São Paulo que compartilham os pedidos de seus clientes em função da disponibilidade e localização de cada um no momento da solicitação, bem como da tentativa de formação de uma cooperativa de entregadores ― ciclistas e motociclistas ― no Rio de Janeiro. Elas partem da definição de uma tabela de valores, que consideram mais justos e possibilitam um serviço de melhor qualidade e feitos com menor custo para a sua saúde e segurança. Atendem clientes que podem pagar e que estreitam a confiança nas redes de trabalhadores em questão.

Seriam estas uma forma de adequar o meio aos seus próprios valores e normas? Se sim, envolvem a possibilidade de se orgulhar pela qualidade do serviço prestado, componente importante da conquista da saúde no trabalho. Deve-se ressaltar, entretanto, alguns desafios aí presentes: a restrição a pequenos “nichos” de clientes amparando (e podendo amparar) tais iniciativas; impossibilidade de concorrência com as grandes empresas; dificuldades de recursos para apoiar a própria rede de trabalhadores com relação às questões de saúde e segurança.

Que saúde?

Por fim, é importante situar de que saúde falamos. Da subversão que é afirmar a saúde como potência de vida, que deveria estar ao alcance de todas e todos. De entendê-la não como mera ausência de doença ou como regras impostas de fora sobre como se deve ou não viver. Saúde, sim, como uma conquista não apenas individual, mas coletiva, do modo que se quer viver, da possibilidade de (re)criar as normas de vida em sociedade. Neste sentido, trabalhar precisa ser compreendido como central na determinação dos processos saúde-doença que experimentamos ao longo da vida. Assim, lutar por uma atividade de trabalho que se realize a partir de normas próprias é também lutar por saúde (Canguilhem, 2001).

A concepção de uma saúde que contemple em si a historicidade humana numa perspectiva biopsicossocial, incorporando seu caráter ao mesmo tempo concreto e subjetivo, singular e coletivo, é imperativa para compreender o quadro em que vêm se configurando as situações de trabalho em meio a processos da chamada uberização, não apenas no que tange a adoecimento e sofrimento, mas também ao que pulsa como estratégias de defesa e de luta contra as nocividades.

Neste sentido, é necessário apressar-se a olhar o cotidiano de trabalho, escutar o que ele tem a dizer sobre as formas de governança externas e distanciadas dos problemas concretos a partir do ponto de vista do trabalho, dos trabalhadores e seus saberes, preferencialmente em diálogo entre eles próprios e deles com os saberes acadêmicos. Ter em conta as formas de coletivização em curso em meio a esta “categoria” tão diversa e “instável” no tempo e espaço; se aproximar para tentar compreendê-las e apoiá-las, mesmo cientes de seus limites frente à exploração que se processa. Formas que se expressam desde o apoio em redes de solidariedade necessárias ao dia a dia de trabalho e enfrentamento de suas variabilidades, até movimentações mais amplas reivindicando melhorias das condições de trabalho às empresas, passando por tentativas de se aproximar do poder estatal com vistas ao estabelecimento de regulações e políticas públicas, bem como de buscar caminhos alternativos de realização do trabalho de entrega para além das empresas-aplicativo.

Sabemos que os caminhos são desafiadores e hoje particularmente tortuosos em nosso país. E, neste processo de luta, gostaríamos de ressaltar também o papel dos consumidores, chamando-os a uma participação mais efetiva na crítica dessa nova conformação do trabalho, que também se configura em modos de governança da vida social mais ampla. Caberia, então, pensarmos mais numa instância de cidadania do que de consumo, numa construção conjunta que passa pela pressão do mercado e do estado também a partir dos cidadãos. Além disso, devemos não somente pleitear que o trabalho possa ser vivido com mais saúde, mas mais amplamente: que a saúde também possa ser produzida a partir da experiência humana do trabalho. Nosso horizonte não pode ser nada menos que esse.