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Introdução ao curso Adorno e a dialética negativa1

Desde muito cedo, Ruy esteve ligado às duas pontas que formam o principal de seu trabalho: lógica e política. Não houve primeiro um Ruy lógico e apenas depois um Ruy político. Na verdade, essa talvez seja uma das principais diferenças da obra de Ruy com algumas outras que também acentuam o desenvolvimento lógico da dialética crítica. É que a militância, para Ruy, veio antes da filosofia. Se há uma ordem, é essa que vai da política para a lógica, e não o contrário. Pois a militância política de Ruy em grupos trotskistas começa ainda muito cedo, quando ele tinha por volta de 16 para 17 anos, em razão da influência do irmão Boris.2 A filosofia chega em um segundo momento. E chega de forma um pouco confusa, contando a trajetória posterior de Ruy, porque no início ele se envolve com filosofia da ciência, ainda nos anos 1950, traduzindo livros sobre o assunto e escrevendo resenhas publicadas no Estadão, apadrinhado por Antonio Candido. Depois, é por intermédio dos problemas da prática política, especialmente o problema da fundamentação (ética? lógica?) dessa prática e o da relação entre meios e fins, ou entre a violência dos meios e a não violência dos fins, que ele chega na lógica e mais especialmente nessa lógica muito peculiar que é a dialética.

Já a partir dos anos 1960, o projeto de Ruy está estabelecido: pensar a política através da reconstrução da dialética marxista, ou melhor, investir a dialética na política.3 No final dessa década e ao longo da seguinte, ele começa a apresentar os primeiros esboços e textos que executam esse projeto, especialmente o texto a respeito da dialética do humanismo e do anti-humanismo, que é uma espécie de plataforma a partir da qual ele entende o funcionamento da dialética e se permite passar a outras temáticas correlatas.4 Cabe lembrar que o contexto em que Ruy elabora esses desenvolvimentos é de uma ofensiva inaudita à dialética, ofensiva que marca igualmente um refluxo, e mesmo veto, a Hegel, especialmente na França. Sobre isso, bastaria lembrar que toda a vaga estruturalista e pós-estruturalista fazia de tudo para se desvencilhar desse entulho antiquado, ainda presente em algumas temáticas existencialistas.5 Na segunda metade da década de 1970 e também na seguinte, a situação piora. O veto antes dirigido a Hegel e à dialética se estende igualmente ao marxismo, que sofre uma crise teórica repentina. Com a ascensão de uma crítica midiática da União Soviética, representada especialmente pelos Nouveaux Philopsophes, maoístas de outrora que, desiludidos, “descobriram” a crítica ao totalitarismo, já realizada na França há pelo menos quatro décadas por outros grupos e autores sérios. Era a senha para legitimar o raciocínio simplista de responsabilizar Marx e o marxismo pelos gulags. Em suma, verifica-se um retrocesso do pensamento dialético em geral e também do pensamento crítico.6

É na primeira metade dessa década de 1980 que Ruy abandona toda perspectiva bolchevique, e mesmo marxista, ao menos no que tange à política de Marx, e remodela seu projeto, que ganha uma nova configuração.7 Agora, trata-se não apenas da reconstrução da dialética de Marx, mas também de sua crítica. Assim, Ruy estrutura sua obra através de três eixos convergentes que se desenrolam de forma simultânea: crítica dos totalitarismos e da teoria e prática bolchevique; reconstrução e crítica da política e da apresentação da história de Marx; materiais para uma nova dialética. Há aí uma diferenciação, que inclui continuidades e descontinuidades, entre dialética, marxismo, bolchevismo e totalitarismo. Ruy acha que a primeira, desde que tenhamos consciência de seus limites, deve ser reabilitada; o segundo ficou parcialmente abalado, mas é preciso saber onde o marxismo caducou e onde não; o terceiro está esgotado, como alternativa emancipatória que se interverteu e o quarto deve ser inteiramente rechaçado. Para além da análise de cada um desses momentos, seria preciso desvendar os nexos que os conectam e Ruy também se coloca essa tarefa. Afinal, quais seriam os laços que atam dialética, marxismo, bolchevismo e totalitarismo? Não se trata, por certo, de uma linha reta que nos conduz necessariamente do primeiro ao último. Porém, é preciso perceber que o último está inscrito nos anteriores, mas inscrito como virtualidade apenas, virtualidade que se reduz a cada vez que passamos para o elemento anterior. Ou seja, os rastros do totalitarismo estão contidos em gérmen no bolchevismo, mas com uma virtualidade forte; já no marxismo, há uma virtualidade mais fraca, mas ainda presente, que pode conduzir ao bolchevismo e, dele, ao totalitarismo; na dialética, a relação com o totalitarismo fica ainda mais distante, mas não se apaga por completo.

Para entender melhor essas passagens, comecemos pelo primeiro eixo, o trabalho crítico de Ruy a respeito do bolchevismo e dos totalitarismos. Esse trabalho está principalmente contido em suas obras que tratam de história política, como A esquerda difícil, Outro dia e O ciclo do totalitarismo. Nos livros, apresenta-se um balanço crítico das experiências, reformistas ou revolucionárias, da esquerda no século XX, com amplo espaço para a historiografia crítica, mas não reacionária, combinada com desenvolvimentos teóricos que nos conduzem a dispor de materiais para repensar a filosofia da história. Contudo, a história entra aí não só como filosofia da história, mas como história de fato, minúcias empíricas de determinado período, datas, personagens, eventos, a história de carne e osso. É que esse trabalho empírico prévio se afigurava imprescindível para fazer cair por terra as versões oficiais, e falseadas, elaboradas pelo bolchevismo, seja em sua vertente leninista, trotskista ou stalinista. Reconstruída uma interpretação mais condizente, que contraria muita mistificação que ainda hoje corre com força, impõe-se o balanço teórico da experiência totalitária e de sua relação com a teoria e prática do bolchevismo.

Após a emergência dos totalitarismos, fica evidenciada uma fraqueza na política bolchevique, mas fraqueza que, como veremos, também se encontra na própria teoria marxista. A redução da política aos conflitos socioeconômicos não é capaz de sustentar uma análise suficientemente lúcida do nazismo ou do comunismo. Lendo os clássicos da filosofia política, além de Lefort, Castoriadis e Hannah Arendt, e também estudando a pré-história, a gênese e a realidade histórica dos regimes totalitários, Ruy reabilita a autonomia do político, conferindo-lhe estatuto próprio. Por isso, uma nova apresentação da história deve pensá-la não apenas como encadeamento de modos de produção, mas também de modos de poder.8 Pois o modo de produção não revela, por si, a verdade de um regime político. Não é mais possível pensar que a organização do poder é um flatus vocis que apenas mascara uma dominação de origem econômica, o que significaria dizer que, em última instância, não há diferenças significativas entre várias formas possíveis de regime político, pois em todos eles os trabalhadores são igualmente explorados — esse, aliás, é um topos do discurso leninista. Acontece que, no caso das formações totalitárias, há uma inversão nas determinações habituais, inversão com a qual o bolchevismo, mas também o marxismo, não é capaz de lidar. É que nos totalitarismos o modo de produção não é mais o fundamento do exercício do poder. Trata-se de um tipo de dominação que, diferentemente do capitalismo, não se apresenta de forma oculta, mas como um tipo arcaico-moderno que reabilita elementos de uma dominação direta, mas por meio de mediações estranhas à coerção econômica. Nesse sentido, o totalitarismo aparece como uma revanche da teoria política contra o marxismo, porque mostra que as questões do poder não podem ser reduzidas a pautas econômico-administrativas e tampouco desapareceriam com uma eventual revolução proletária — o marxismo, apesar de tudo, ainda se mostra como excessivamente “sociologista”.9

Depois da crítica do totalitarismo e do bolchevismo, ainda seria preciso realizar os passos anteriores, reconstituindo, interrogando e criticando o próprio marxismo e, enfim, a dialética. Entretanto, para voltar ao marxismo, é preciso limpar o terreno. Não se pode, como muitos fizeram, criticar o marxismo tomando por base suas versões vulgares. O primeiro passo é reconstruir o que Ruy chama “o melhor marxismo”10 para realizar sua crítica e só assim colocar a pergunta: o que, na política marxista, abriu caminho para o descaminho que foi sua realização prática? Em certa medida, a crítica do bolchevismo já nos encaminha para uma crítica da própria política marxista, pois ambos têm continuidades notáveis. Entretanto, Ruy não confunde bolchevismo e marxismo. O primeiro, após uma crítica rigorosa, não se sustenta nem como teoria, nem como prática, dadas suas conexões evidentes com a realização do totalitarismo e com a negação da democracia como forma burguesa de dominação. Para o segundo, a situação é mais complexa, já que ele não pode ser imediatamente conectado com apenas uma prática e nem sequer a uma só expressão teórica, mesmo no interior da obra de seu fundador. Em outras palavras, a política e a apresentação da história em Marx não são idênticas às dos bolcheviques, ainda que muitos traços da versão original, mesmo que simplificados ou até mesmo degradados, encontram-se no último.

Para realizar a crítica da política de Marx, Ruy mostra até que ponto a experiência totalitária pode ser legitimamente vista como uma possibilidade inscrita no interior do universo teórico de Marx e não apenas do bolchevismo. Essa reconstrução e posterior crítica da política marxista está contida em alguns textos privilegiados, como na parte final de O capital e a lógica de Hegel, também no posfácio do livro, denominado A política de Marx, que depois se tornou um capítulo independente de A esquerda difícil, a introdução inserida no terceiro volume de O sentido da dialética e também em alguns textos de Outro dia e O ciclo do totalitarismo. Já a reconstrução crítica da dialética marxista, com privilégio para o tema da crítica do valor e da apresentação da história, está cristalizada não apenas na série Marx: lógica e política, que mais tarde seria rebatizada como O sentido da dialética, mas também na segunda série, essa menos conhecida, de livros que procuravam reconstruir a relação entre a dialética hegeliana e a marxista. Dessa série, foram publicados os volumes I e III, chamados, respectivamente, Dialética hegeliana e dialética marxista e o recém-traduzido O capital e a lógica de Hegel. O segundo volume não foi viu a luz do dia. Ruy guardava um rascunho dele, mas dizia ser excessivamente didático. Em alguns momentos, ele manifestava a vontade de publicá-lo e, em outros, dizia o oposto. De toda forma, cada um desses volumes também funciona como obra independente.

Qual a crítica de Ruy à política de Marx? Por um lado, a dialética marxista aparece como muito avançada no campo da teoria, como uma dialética crítica e limitada, porque não apenas ela determina, de forma imanente, os limites dos objetos ao acompanhar seus movimentos internos, mas também porque ela determina seus próprios limites no interior do objeto. Assim, ao ser devidamente investida, ela é capaz de demonstrar, por exemplo, tanto os limites de posturas idealistas, como no caso da dialética hegeliana, quanto de objetos como o capital. Por outro lado, no campo da prática política, é como se a dialética marxista se tornasse inteiramente positiva, abrindo caminho para uma ideia de reconciliação total. Nesse sentido, não há em Marx exatamente teoria política, mas crítica da política. Uma crítica que, em sua dimensão prática, autoriza um movimento rumo à realização de um universal concreto como totalidade positiva. É assim que, filosoficamente, o comunismo aparece em Marx. Ou seja, a dialética de Marx reabilita um momento de identidade no campo da teoria, pois não pode haver movimento infinito, há a limitação, mas a desliga na prática, onde o movimento se direciona a um infinito. Ora, é principalmente nesse desenvolvimento dialético da política marxista que Ruy localiza aquela virtualidade latente do totalitarismo. Digamos que a ideia de um absoluto prático, especialmente se os fins não são tematizados com clareza, o comunismo se tornando um “movimento” apenas, corre o risco de se interverter na dominação total: a emancipação final acaba se revertendo em regime totalitário,11 afinal, ambos compartilham a abolição das mediações.

Essa compreensão está ancorada no estudo crítico do totalitarismo e do bolchevismo. Mas não bastaria apenas esse estudo de viés historiográfico. O que Ruy nos apresenta é um movimento que conduz da história à filosofia da história. É com esse tipo de mediação que Ruy consegue perceber o que na teoria marxista permitiu que formas de luta e regimes regressivos fossem criados sob essa bandeira. Chegado esse ponto, passa-se da política à apresentação da história, pois o que justifica a prática na teoria marxista é a compreensão adequada do desenvolvimento histórico e de suas tendências imanentes. Ruy também pretende ir além da apresentação marxista da história, a qual ele reconstitui detalhadamente ao longo dos tomos de Marx: lógica e política, mas com a qual já não se identifica, tendo em vista que ela foi incapaz de dar conta desse tertius histórico que se tornou o acontecimento mais enigmático do século XX: o advento dos totalitarismos. Pois na apresentação da história de Marx, não há espaço para uma terceira forma social. Ou seja, no modelo clássico, ou estamos diante do capitalismo, ou estamos diante do socialismo, não havendo alternativa. A barbárie, é bem verdade, é aventada como hipótese, mas uma barbárie realizada no interior de uma forma social que se mantém capitalista. Não há possibilidade de barbárie fora do capitalismo, e muito menos espaço para uma nova forma social.12

Tanto como política quanto como apresentação da história, o marxismo se mostra incapaz diante da história do século XX e também insuficiente em suas formulações teóricas. Entretanto, feita a crítica do marxismo, isso implica em um abandono da dialética? Primeiro seria preciso pontuar que a crítica do marxismo não implica nem que toda a teoria de Marx seja abandonada. Na “Introdução” de A esquerda difícil:

Parece evidente que o marxismo não pode ser mais a referência central do pensamento socialista; mas, ao mesmo tempo, também parece evidente que ele comporta um certo número de elementos críticos, sem dúvida — para alguns deles pelo menos — encontráveis em outro lugar, mas que, no corpus marxiano, aparecem em forma mais rigorosa. De minha parte, a crítica do marxismo nunca significou uma negação absoluta, mas uma negação que conserva certos elementos, pelo menos no interior de determinadas “regiões”. Isso não exclui a ideia de que mesmo o “melhor marxismo” deve ser criticado. Lá onde ele erra, ele o faz mesmo nas suas melhores versões.13

Em nota de rodapé à introdução do tomo III de Marx, Ruy escreve: “O próprio fato de que me situo no interior da tradição da dialética já implica em conservar como ‘momento’ alguma coisa do marxismo (…) o modelo dialético que me serve de referência é — junto com a dialética de Adorno — mais o da dialética de Marx do que a hegeliana”.14 Sendo uma lógica sui generis, a dialética não se subtrai totalmente ao conteúdo daquilo que apresenta, ela não pode ser reduzida a um grau zero de conteúdo e se apresentar como pura forma. Isso significa que a crítica dialética do marxismo implica, sim, em algum afastamento com relação ao modelo manejado por Marx, só que esse modelo é antes incorporado por meio de sua supressão do que propriamente descartado. Se a política e apresentação da história devem ser radicalmente transformadas, a crítica do capitalismo não é deixada de lado, mesmo que ela não possa ser mantida tal e qual.15 E se nem o marxismo cai por completo, mesmo após a crítica de sua melhor versão, isso significa que a dialética também se mantém, ainda que modificada.

Para introduzir o terceiro eixo do projeto de Ruy, aquele para o qual os anteriores convergem, comecemos por uma citação. Escreve Ruy no primeiro tomo de Marx: lógica e política: “sabemos que a dialética vai mais longe do que o marxismo, que não haverá novos marxismos, mas que pode haver novas dialéticas”.16 O objetivo seria alcançar uma nova dialética, trabalho que Ruy não concluiu, mas para o qual deixou materiais. Nesse sentido, podemos ler a obra de Ruy também como uma reconstrução da história da dialética moderna, com a finalidade de, realizando um balanço dos modelos anteriores, construir um novo. Dentro desse eixo de criação de uma nova dialética, haveria alguns momentos privilegiados: primeiro, a crítica do entendimento e da pseudodialética; segundo, a reconstrução crítica da dialética marxista; terceiro, a consciência quanto aos limites da dialética; e, quarto, o que pode soar paradoxal, a reabilitação do entendimento crítico.

Os dois primeiros momentos estão entrelaçados. É através da crítica das falsas leituras, apologéticas ou não, que Ruy reconstrói o sentido original da dialética marxista. No que se refere às formas do entendimento, o alvo privilegiado para essa reconstrução foi o althusserismo, tanto na figura de seu mestre quanto de epígonos. Mas não só. O confronto com outras tradições e autores também está presente: fenomenologia, neopositivismo, Wittgenstein, marxismo analítico… Todos aparecem como momentos necessários de elucidação da dialética, à medida que ela aparece com mais nitidez através desse movimento interno aos objetos nos quais é investida. Porém, não são apenas as formas do entendimento que representam uma fuga da dialética. A dialética vulgar é outra impostura e que por muito tempo se passou por uma dialética séria.17 Essa tradição é aquela que não sabe ao certo do que trata a dialética e usa a palavra de forma mais ou menos indiscriminada, não raro como sinônimo de alguma relação de reciprocidade que seria perfeitamente compreensível no universo do entendimento. Essa vulgaridade transborda para o âmbito da lógica, da economia, da política, da filosofia da história, como se a dialética fosse uma senha, uma palavra mágica, apenas para iniciados, capaz de resolver todo e qualquer problema, e com a vantagem de nunca elucidar em detalhes nenhum deles, oferecendo uma solução abstrata. A má dialética se torna não apenas rígida, mas separada do objeto, um pensamento à parte, metafísica fantasmagórica, porque desvencilhada do movimento do real e incapaz de autolimitação. De par com as leituras unilaterais do entendimento e com os malabarismos da pseudodialética, caminha outra atitude: a da aceitação ou rejeição acrítica do marxismo. Com frequência, tanto pseudodialéticos quanto antidialéticos, tanto marxistas quanto antimarxistas estão, com raras exceções, aquém de dialética e de Marx, e não além deles.18 Mas Ruy não se contenta com esse resultado, pois toda essa operação reconstrutiva, bastante trabalhosa, é apenas o passo necessário, como mostramos, para se alcançar o “melhor marxismo” e, assim, se sentir devidamente autorizado a criticá-lo, o que Ruy também faz.

Passamos então para o terceiro momento, sobre a consciência dos limites da dialética. Em certo sentido, o movimento em direção à dialética também é um movimento de negação da epistemologia, como teoria subjetiva da ciência, em direção à lógica, como teoria objetiva da ciência — o que significa se afastar de parte expressiva do pensamento francês do século XX.19 A dialética não é um método, uma visão de mundo ou uma apresentação das regras do pensamento, ela pretende ir às coisas, ela só pode acontecer nos objetos, e não à parte, pois se crê subsumida às regras que lhe são impostas por cada um deles, o que de resto explica as imensas dificuldades, senão a impossibilidade, de se formalizar a dialética à maneira da lógica tradicional, uma vez que ela não pode ser subtraída por completo de todo conteúdo. A dialética não pressupõe, de início, uma identidade entre o Ser e o Pensar. No interior da dialética, a relação Ser-Pensar só pode existir como mediação, o que significa que ela é um resultado, não uma identidade posta de início. Toda tradição epistemológica ora retorna a algum modelo racionalista pré-crítico, que resulta em uma filosofia na qual há identidade imediata entre Ser e Pensar, perdendo o momento da mediação, ora um empirismo igualmente pré-crítico, em que Ser e Pensar se distanciam a tal ponto que abrem as portas para o solipsismo, o relativismo e o ceticismo, ora a um kantismo, ou neo-kantismo, mal disfarçado, o que a faz recair na cisão a priori entre Ser e Pensar. A dialética moderna se pretende uma lógica que incorpora, suprimindo, as epistemologias modernas e, portanto, vai além delas.

Mas mesmo corretamente definida como lógica, a empreitada dialética não está imune a riscos que lhe são inerentes. E aqui estamos mais no campo dos perigos do que da incompreensão. São dois os perigos conexos: o desconhecimento dos próprios limites e o formalismo. Parece haver um impulso interno à dialética que pode levá-la a se tornar uma especulação febril e estéril, um jogo de palavras, que passa a se ocupar apenas de si mesmo e se satisfaz com o mero virtuosismo de sua verborragia. Assim, ela paira sobre o objeto, mas gira em falso, sem adentrá-lo. O segundo pecado da dialética, que é quase um resultado necessário do primeiro, é que ela degenera em formalismo. Sobre isso, Ruy escreve:

O formalismo é, de certo modo, a “maldição” da dialética. A questão da dialética poderia ainda uma vez ser formulada sob essa forma: como dialetizar o objeto sem cair, entretanto, em uma “dialética” formal? Como vimos nos textos contra Schelling, este era o problema de Hegel. Como vemos aqui, este também foi um dos problemas de Marx. O problema de uma dialética pós-marxista não se reduz a isso, mas passa também por aí.20

Ao não ser capaz de ser investida no objeto e de estar subordinada às exigências que ele lhe impõe, a dialética se torna um conjunto de fórmulas que parecem poder se aplicar a todo e qualquer objeto de forma indiscriminada, alcançando, no entanto, sempre os mesmos resultados, os quais ela, ao invés de encontrar no objeto, sub-repticiamente nele coloca. Em outros termos, seria uma dialética a priori, infensa a toda abertura ao real, e que só pode encontrar aquilo que já está nela mesma.

Na interpretação de Ruy, dos três modelos, o hegeliano é o que menos conhece limites, talvez pelo próprio papel pioneiro que cumpre. A dialética acaba, de forma ilegítima, alçando voo para onde ela não pode chegar; é, em muitos momentos, ainda que nem sempre, a hipóstase do conceito e do especulativo. O modelo de Marx é mais cuidadoso no âmbito da teoria, mas ainda investe uma espécie de dialética infinita no âmbito da prática, o que tem algumas ressonâncias hegelianas no desconhecimento dos limites, mas também não é estranho ao universo filosófico de Fichte. Ainda assim, ao menos no âmbito teórico, Marx está ciente dos limites da dialética e mesmo de objetos que não são totalmente suscetíveis a ela. Já o modelo de Adorno aparece como duplamente limitado, tanto no âmbito da teoria, em que a dialética já não tem passe livre nem mesmo no discurso filosófico, e menos ainda no âmbito da prática, o que não significa abrir mão de alguma perspectiva de reconciliação. Para Ruy, quanto a esse ponto, dos limites, sem dúvida o modelo adorniano é o que chega mais longe, porque é o que demonstra a maior autoconsciência dos perigos de uma dialética desenfreada — não por acaso, o pensamento kantiano plasma a filosofia de Adorno, muitas vezes como antídoto aos impulsos desmedidos da dialética. Como Ruy também sublinhou, há em Adorno não apenas crítica hegeliana a Kant, mas também crítica kantiana a Hegel.21

O último movimento de Ruy em direção a uma nova dialética é de reconsiderar o papel do entendimento. Como já assinalamos, isso pode parecer paradoxal, uma vez que no início do projeto estava a crítica ao entendimento. Entretanto, o que surge no horizonte a partir da experiência histórica do século XX é a revalorização de certo tipo de entendimento, sem que isso signifique, como muitos pretenderam, o fim da dialética. É que, como se sabe, a dialética marxista não se contentou em ser uma teoria. Pelo contrário. Ela pretendeu realizar a filosofia, e realizá-la como instância prática de transformação do mundo. Uma transformação que, no “melhor marxismo”, não despreza a teoria sem mais, mas certamente fazia uma crítica de toda postura teorizante ou meramente especulativa.22 A interpretação do mundo não desaparecia, mas agora era posta a serviço de sua transformação prática por meio da atividade política. Acontece que, tudo somado, essa incursão da filosofia pelo campo da prática foi um fracasso retumbante. Pior: um dos regimes totalitários do século XX reclamou para si o monopólio do pensamento dialético e foi exercido em seu nome. Como foi possível que uma lógica que representa um dos pontos altos do idealismo alemão se revertesse em discurso dominante de um regime totalitário? Como reconstruir o sentido da dialética após esse acontecimento? Ou melhor: ela ainda guarda alguma legitimidade após ter se tornado ideologia dominante de um regime despótico, ou está totalmente comprometida com a dominação? Em suma, o que fazer da dialética?

Dialética oficial do Leste, a Diamat subvertia os principais procedimentos lógicos esperados de uma dialética moderna. Para ficar em um exemplo, a negação dialética, por exemplo, se tornava negação simples, abstrata. Portanto, já não se tratava da dialética em si, mas de uma forma unilateral e, a seu modo, mistificante. E, no entanto, se a dialética pôde ser subvertida a ponto de servir como justificação de um regime autocrático, não basta afastar esse fato dizendo que não se tratou de verdadeira dialética, o que seria uma solução fácil. Afinal, bem ou mal, lá estão os conceitos, as referências, o vocabulário. Além de criticar essa forma degenerada, Ruy dá um passo além. Na Introdução ao terceiro tomo de Marx lógica e política, ele escreve:

(…) Lá onde uma espécie de “dialética” se tornou ideologia, a identidade e portanto o entendimento ganham uma outra dimensão crítica. Sem dúvida, (…) a crítica dessa ideologia consiste em parte em restabelecer o verdadeiro sentido da dialética. (…) [Mas] Vê-se que os papeis se invertem: a dialética — sem dúvida a sua caricatura — se torna ideologia, e a “faculdade de identificação”, o entendimento, vem a ser instância crítica. Assim, da apresentação anterior, centrada até certo ponto na análise das formas totalitárias, e em particular no “totalitarismo de esquerda”, resulta uma revalorização do entendimento. (…) Descobre-se ou se redescobre a função crítica do entendimento.23

Então o entendimento crítico, e com ele a identidade como identidade, são reabilitados, mas no interior de um quadro de enriquecimento da dialética, e não de seu desaparecimento.

A partir da efetivação dos quatro elementos que listamos, podemos caminhar em direção ao que seria o modelo dialético de Ruy. A dialética de Ruy aparece como tributária, de forma crítica, dos três modelos anteriores: internaliza a sintaxe hegeliana, mas ciente dos perigos e limites teóricos da dialética; tal como Marx, retem a abertura da dialética para o entendimento no campo da teoria, mas restringe o alcance da dialética na prática política.

E quanto a Adorno? O que no projeto de Ruy se deve a esse modelo e em que medida ele se distancia dele? Cito novamente uma nota de rodapé à introdução do tomo III Marx lógica e política: Escreve Ruy: “(…) a dialética de Adorno, a qual, sem ser o ‘modelo’, foi minha referência mais próxima entre as três dialéticas da modernidade”.24 Em mais de um momento, Ruy anunciou uma espécie de balanço da dialética negativa.25 Balanço que passaria por responder algumas perguntas: qual a relação de Adorno com a dialética hegeliana e a marxista? Qual o papel do entendimento no discurso adorniano? Qual é o teor da negação e da contradição no interior da dialética negativa de Adorno? Questões que, evidentemente, estão além de nossa apresentação. Mas podemos dizer, em linhas gerais, que a dialética de Ruy conserva da dialética negativa adorniana um balanço crítico dos modelos anteriores, a posição de universais — ser humano e natureza — em vista da dinâmica história do século XX, a análise das transformações do capitalismo e o estatuto de uma dialética como filosofia não filosófica.26

Por outro lado, também há diferenças. A esse respeito, um trecho final do livro O capital e a lógica de Hegel: “É um pouco uma ‘lei de desenvolvimento’ na história da dialética que cada nova dialética situa a forma anterior no nível de um dos extremos da antinomia que ela crítica”.27 Essa antinomia que Ruy fala é aquela da superstição e do Aufklärung. Para qual extremo da antinomia Ruy situaria a dialética adorniana? Os textos não dão uma resposta específica, mas pelo teor das reservas que Ruy apresenta, podemos presumir que ele colocaria algumas passagens da dialética de Adorno mais do lado da superstição do que do Aufklärung. Esse juízo não vale para a obra de Adorno em geral, mas para alguns momentos, mesmo nos textos de maturidade, como a Dialética negativa. Isso porque, apesar de uma leitura crítica bastante equilibrada, Adorno parece por vezes colocar a dialética de Marx mais para o lado de um Aufklärung desenfreado do que da superstição, o que a faria por vezes derrapar em um progressismo, tanto prático quanto produtivo, injustificado. Esse juízo um pouco sumário — pois, por certo, a leitura adorniana da obra de Marx é mais complexa — vale sobretudo para a apreciação bastante crítica que Adorno faz do modelo presente na Ideologia alemã. Nela, encontra-se uma perspectiva aufklärer radicalizada, materialista e historicista, em que toda postura teorizante surge como falsa consciência, inclusive, ou principalmente, a filosofia. O que se desenha é um primado unilateral da práxis: rebaixada a um detrito ideológico com falsas pretensões universalistas, a teoria deve ser superada para a efetiva transformação do mundo. Adorno enxerga nesse modelo do primado da práxis, que Marx elevou à última potência na Ideologia alemã, as deficiências que afetarão o destino histórico do marxismo,28 especialmente no movimento revolucionário, mesmo que a ideia de práxis em Marx visasse à abolição da prática burguesa de dominação do homem e da natureza.29

Essa avaliação da dialética marxista como pendendo excessivamente para o esclarecimento faz com que, em diversos momentos, Adorno abra espaço para as tradições românticas da Kulturkritik, acolhendo também a superstição, contra os impulsos protototalitários de um Aufklärung sem limites. Sobre esse ponto, cabe lembrar que Adorno deve algo, mesmo que ele a incorpore de forma crítica, à tradição conservadora, e até reacionária, que vai de Schelling a Nietzsche. Mas onde estaria exatamente a superstição na dialética adorniana? No caso da Dialética negativa, na ênfase, para Ruy demasiada, na não identidade. Adorno faz uma crítica da noção lógica de contradição, apresentando-a apenas como polo de oposição à identidade. Para além de sua forma lógica estrita, Adorno pretende ampliar a ideia de contradição para que ela se torne não identidade, expressão de todo resíduo, diferença, de tudo aquilo que não pode ser imediatamente reduzido à identidade. Ruy acha que seria excessivo abrir mão de uma concepção lógica de contradição. Ruy gostaria de não alargar tanto o que se entente como oposição à identidade, sob pena de abrir as portas para muito mais do que a dialética poderia acolher sem perder seu vínculo com a razão. Corre-se o risco, a despeito de quais fossem as intenções de Adorno, de absolutizar a não identidade, como aliás aconteceu com certos representantes do pós-estruturalismo francês que tentaram se aproximar da Dialética negativa, e perder de vista o papel crítico que a identidade pode exercer em relação a determinados objetos, entre eles, inclusive a própria dialética em seus modelos deformados. É nítido como, contra a dialética oficial, o Diamat, Adorno se restringe a opor a dialética negativa, mas, para Ruy, isso ainda é insuficiente. A crítica da política em Adorno, por mais que aponte na direção correta, não é tão desenvolvida e sua dialética às vezes parece ficar ao largo desse debate, mesmo que ele não compactuasse com os regimes do leste. Por isso, Ruy acopla a essa dialética os resultados provenientes de uma crítica minuciosa da política, que já fazia parte de sua trajetória, mas que ele desenvolve a partir da leitura especialmente de alguns autores franceses, como Merleau-Ponty, Lefort e Castoriadis. Então a dialética de Ruy aparece como, mais que negativa no sentido adorniano, crítica. O que significa que ela está menos preocupada em resguardar o não idêntico, o não conceitual, o irredutível, o singular, do que com o movimento imanente que expõe as contradições e limites lógicos dos objetos nos quais ela é investida. Não há propriamente incompatibilidade entre os dois projetos. Como dissemos, as aproximações teóricas são grandes, e ainda que Ruy condene algo desse clamor pelo não idêntico como uma recaída ao menos parcial na superstição, é verdade que ele tece inúmeros elogios à obra. Em todo caso, é notável o pendor auflärer da dialética de Ruy. É ele mesmo que diz: “No plano da ideologia geral, impõe-se uma posição que não seria nem Iluminismo, nem anti-iluminismo, seria (…) Aufklärung crítica (incorporando, de certo modo, a razão romântica, porém sem posição desta última)”.30

De certo modo, isso indica que é sobretudo em seu último momento que a dialética de Ruy se afasta daquela de Adorno. Quando Ruy se propõe a passar da crítica da política à crítica filosófica, mostrando como a emergência de um totalitarismo de esquerda exigiria a reformulação da própria lógica dialética, ele se distancia de Adorno. Pois nesse movimento, Ruy não se limita a dizer que a dialética, tornada a ideologia oficial de um regime totalitário, foi incompreendida. Mesmo que não seja errado falar no desvio que a Diamat representou em relação à dialética clássica, isso ainda parece muito insuficiente. O destino histórico da dialética exigiria bem mais do que essa saída pela tangente. E, no entanto, é o que faz Adorno. Sem dúvida, ele tem consciência de uma possível afinidade entre dialética e formas autoritárias, mas não desenvolve o raciocínio. A reforma da dialética em Adorno não passa por aí, pois mesmo que na Dialética negativa haja passagens críticas ao Leste e à Diamat, nenhuma delas vai na direção de explicar um possível nexo entre (pseudo)dialética e totalitarismo. Em seu ensaio “Conteúdo da experiência”, presente no livro Três estudos sobre Hegel, Adorno diz:

São os elementos mais reacionários de Hegel e não os progressistas-liberais que prepararam o solo para a crítica socialista posterior do utopismo abstrato; é verdade que para fornecer mais tarde, na própria história do socialismo, os pretextos para uma repressão renovada. A difamação atual, frequente nos países do Leste, em relação a todo pensamento que se eleva por sobre a obstinada imediatez daquilo que lá é posto sob o conceito de práxis, é a prova mais drástica disso. Apenas não se deveria imputar a Hegel a culpa pelo abuso de seus motivos, cobrindo com o manto da ideologia o horror contínuo. A verdade dialética se expõe a tal abuso: sua essência é frágil.31

Que Adorno não queira responsabilizar Hegel pela subversão totalitária da dialética é compreensível, mas isso parece muito pouco para dar o problema por encerrado. Afinal, por que é frágil a essência da verdade dialética? E essa essência frágil a condena a ser instrumentalizada como retórica ideológica? Aqui, Ruy parece ter ido além; não apenas diagnosticou o problema, mas ofereceu uma solução: reabilitar o entendimento crítico no interior da lógica dialética.

Dentro desse esquema, onde entra, afinal, o curso sobre a Dialética negativa? O curso, o último de Ruy em Paris VIII, aconteceu de 1996 até 1999, com a leitura quase integral da obra. Sua importância se justifica por Adorno fazer convergir os três eixos que Ruy assumiu para seu trabalho: foi crítico do totalitarismo, grande leitor de Hegel e Marx e remodelou a dialética. Ruy vai, portanto, no mesmo sentido, ainda que, como vimos, seus resultados sejam um tanto diferentes, o que não nos impede de perceber a nítida influência da obra de Adorno desde muito cedo. Sobre isso, não seria exagerado dizer que Ruy se inscreve, desde o início da série Marx: lógica e política, como um herdeiro das inquietações e problemáticas abertas pela obra de Adorno. No entanto, mesmo desenvolvendo uma reconstrução conceitual da crítica da economia política, Ruy não abre mão de pensar a política, o que parece ter acontecido entre muitos dos discípulos de Adorno — aliás, isso bastaria para não exagerar as proximidades entre a obra de Ruy e aquela dos proponentes da Marx Neue-Lektüre ou da Wertkritik.32

Como ponto de chegada, o projeto para o quinto volume de Marx lógica e política33 era o de escrever nada menos que uma nova dialética, que usaria como base não apenas os materiais anteriores, mas também, e principalmente, um mergulho crítico na Dialética negativa. O que podemos vislumbrar ao ouvir o curso sobre a Dialética negativa é, assim, uma prévia desse trabalho. Ou seja, a continuidade do que Ruy havia planejado, mas, infelizmente, não pôde concluir.