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Curso Adorno e a dialética negativa — aula 1, 25/10/1996

Ruy Fausto1
transcrição e tradução Arthur Hussne

Vamos falar de uma série de problemas que o texto [Dialética negativa] suscita, mas pouco a pouco, pois é preciso tempo para discutir em profundidade. Sobretudo, é importante equilibrar a análise do detalhe e do conjunto, alternando comentários específicos e gerais, reproduzindo linhas gerais da argumentação de quando em quando para não se perder nas particularidades. Pois o risco é de comentar linha por linha e perder a visão de conjunto. Trata-se de um seminário que vou fazer nos próximos anos, se possível nos próximos cinco anos, que aliás são meus últimos na universidade. Com isso, depois de já ter trabalhado a Ciência da lógica de Hegel e O capital de Marx por mais de vinte anos, encerro meu ciclo na faculdade.

Considerações gerais: há muitos problemas de tradução [da Dialética negativa], mesmo que a tradução francesa não seja ruim. Eu uso a tradução inglesa, além da francesa, e também vou procurar a italiana. Cada tradutor dá sua versão dos trechos mais difíceis; eu darei minha tradução desses trechos controversos. Se eu hesitar em algum ponto, posso consultar meus amigos filósofos alemães. Pois o problema do texto é muito sério. Há sempre o risco de cair um pouco em questões de filologia, mas de qualquer forma é preciso ter um cuidado especial com o texto. O método: vamos ler o texto, decifrar, comentar e depois discutir. Faremos um pouco de história da filosofia, porque o problema de compreensão do texto é, em todos os níveis, enorme, mas também vamos além dessa explicação de texto usual. É um texto muito vivo; apesar de já ter seus trinta anos, foi escrito em 1966. Como os problemas que ele coloca são também os nossos, é impossível ter uma atitude meramente escolar.

Há o risco de ir muito rápido, porque há uma massa imensa de resultados que só se esclarecem para aqueles que têm um bom conhecimento tanto de Hegel quanto de Marx, ou seja, dos dois primeiros modelos da dialética moderna, pois parece difícil estudar uma dialética negativa sem conhecer as outras. Além deles, Kant também aparece como referência incontornável. Há também os autores que serão criticados, Heidegger, Wittgenstein e o positivismo lógico, e outros que aparecem: Schopenhauer, Nietzsche, Freud. Contudo, sem Hegel e Marx, até se pode compreender o que Adorno diz, mas não se chega muito longe, muitos elementos se perdem, ficam pelo caminho. Então fiquem alertas para esse problema de que nosso curso só pode ganhar seu sentido pleno se houver um estudo anterior pelo menos dos textos clássicos de Hegel e Marx, o que não é pouca coisa. No livro, não há tantas referências a Marx, mas Adorno possui uma compreensão profunda sobre ele, o que é muito raro. Essa compreensão que lhe permitiu assimilar o que há de mais interessante em Marx.

Mesmo que politicamente tenha havido gente mais aguçada, como Castoriadis ou Lefort, em filosofia, sem dúvida Adorno foi além. Em um nível filosófico, os frankfurtianos foram muito longe, em especial Adorno e Horkheimer. Horkheimer é um pouco mais velho, e talvez em certo momento tenha sido até um tipo de mestre de Adorno, mas principalmente Adorno é um mestre da dialética e sabia manejá-la como ninguém. Eles são alemães, o que dá uma vantagem evidente com relação ao conhecimento da herança da filosofia clássica alemã, sem precisar passar por problemas de tradução, isso já corta uma série de ruídos técnicos. O problema é que, depois de Adorno, os frankfurtianos perderam essa relação com a dialética. Mesmo que Habermas seja de interesse, com ele há uma desdialetização evidente do pensamento. Por isso podemos dizer que a dialética moderna tem três momentos: Hegel, Marx, Adorno — nem mais, nem menos.


Já no prefácio há uma ideia antissistema, um comentário sobre a conexão entre os modelos que ele utiliza e a parte geral do livro — que é um pouco o problema da relação entre o conteúdo desenvolvido e a fundação — e o tópico a respeito da relação com Hegel e Marx. É melhor não discutir agora todas essas questões a fundo, pois elas têm uma longa história, sobretudo na filosofia alemã, e ficaríamos muito tempo em cada uma delas. Vamos discuti-las pouco a pouco, pois como essas questões vão voltar mais tarde, acho que não é o caso de tentar esgotá-las apenas discutindo o prefácio.

Apesar de os modelos deverem elucidar o que é a dialética negativa, impelindo-a, de acordo com o seu próprio conceito, para o interior do domínio real, eles determinam, de um modo não muito diverso do assim chamado método exemplar, conceitos-chave de disciplinas filosóficas a fim de intervir nesses conceitos de maneira central.2

Encontramos a ideia de exemplaridade na Terceira Crítica de Kant; a obra do gênio é exemplar, dado que ela serve como modelo. Aqui em Adorno, os modelos tratam do real e não são mais abstratos. Isso faz lembrar das Ciências Reais de Hegel, que estão no segundo volume da Enciclopédia, em oposição à Lógica; não que a Lógica seja irreal, mas ela trata de um concreto específico. Já em Adorno, há um deslocamento desses sentidos, mas não se pode pensar que ele considera a parte geral como um método. Ao longo do texto, ele dá mais peso para essas partes que tratam do real. Os conceitos-chave vão ser encontrados nos modelos, porque é neles que ele vai falar sobre Kant, Hegel e a metafísica em geral.

Uma dialética da liberdade fará isso para a filosofia moral.3

Ele vai opor a Kant uma dialética da liberdade. Seria preciso uma reflexão minuciosa a respeito dessa parte, pois Adorno deve muito ao legado hegeliano, mas ele volta a Kant para realizar uma crítica que é original. É uma crítica de Kant que passa por Hegel, mas volta a Kant. É esse o centro do pensamento de Frankfurt, ainda que haja outras coisas, como Freud, mas no mundo filosófico as duas grandes referências são Kant e Hegel. Há uma espécie de curto-circuito entre uma crítica de Hegel a Kant e uma crítica de Kant a Hegel, de forma muito geral é esse o jogo, o que resulta em uma nova dialética.

O “espírito do mundo e a história natural”: para a filosofia da história.4

A noção de história natural do Homem é o que em Marx correspondia à pré-história, mas Adorno não usa esse último termo, ele prefere falar em história natural. Não se trata, claro, de história da natureza; na verdade, é uma história natural do Homem, ou seja, não uma história do Homem como sujeito, mas como suporte das relações sociais, uma história que é, por certo, filosófica.

O último capítulo gira, buscando seu caminho, em torno de questões metafísicas, no sentido de uma revolução axial da virada copernicana por meio de uma autorreflexão crítica.5

O primeiro capítulo se refere à moral e a Kant, o segundo à história filosófica e à crítica de Hegel e o terceiro passa por Kant, retomando a ideia da Revolução Copernicana, de uma mudança no centro da filosofia em direção ao sujeito, mas para invertê-la, alterar a herança kantiana e introduzir uma autorreflexão crítica. A temática, como a terminologia, é crítica, o que nos leva, sem dúvida, à filosofia crítica. O termo é central em Kant e também em Marx, mas não em Hegel. Já a noção de reflexão se encontra em Kant e em Hegel; nesse último, ela aparece, em parte, de maneira positiva, em parte, de maneira pejorativa, pois as filosofias da reflexão são as filosofias da finitude. Adorno retoma a noção de reflexão, e isso também representa um reavivamento da relação com Kant no interior da tradição dialética. Mas eu interrompo por aqui, porque ainda estamos no nível do prefácio e vamos retomar tudo isso mais adiante.

Há duas notas.

Ulrich Sonnemann está trabalhando em um livro que deve ter o título Antropologia Negativa. Nem ele nem o autor sabiam anteriormente dessa coincidência. Ela é sintoma de uma necessidade objetiva.6

Eu mesmo tentei caracterizar a antropologia do jovem Marx como negativa à medida em que se tem menos uma definição do Homem do que uma indicação e descrição do homem negado. Eu teria muito a dizer sobre a ideia de uma antropologia negativa, mas não é nosso foco aqui, e mesmo Adorno estabelece esse paralelo mais no sentido de sublinhar o caráter negativo de ambos os projetos.

Há uma nota final que é interessante:

O autor está preparado para a resistência que a dialética negativa provocará. Sem rancor, ele abre as portas a todos aqueles que, de um lado e do outro, venham a proclamar: nós sempre o dissemos, e, vejam, agora o autor é réu confesso. 7

Uma referência à relação muito crítica que ele tem vis-à-vis Marx, já esperando uma reação radical quanto a seu livro. O livro é metamarxista, por assim dizer. Ainda que ele não proscreva o marxismo, é o momento em que Adorno se mostra mais crítico a Marx, mesmo que por vezes essa crítica não apareça de forma explícita. Aliás, nosso problema é a relação de Adorno com Marx, que é também o problema de Adorno. Ele sempre reivindica o legado crítico de Marx e Hegel, mas aos poucos ele introduz motivos críticos que o levam relativamente longe de suas referências clássicas.

Esse é um problema que está sempre na ordem do dia: o da relação entre o pensamento de Frankfurt e o de Marx, e, de forma mais geral, o problema do destino do pensamento de Marx. Após uma virada um tanto caricatural, sobretudo na França, em que houve uma espécie de liquidação de Marx, agora há uma reabilitação que é igualmente um pouco apressada. Mas, de novo, esse é um problema que vai nos acompanhar durante todo o curso.


Esse começo do livro é clássico:

A filosofia, que um dia pareceu ultrapassada, mantém-se viva porque se perdeu o instante de sua realização. O juízo sumário de que ela simplesmente interpretou o mundo e é ao mesmo tempo deformada em si pela resignação diante da realidade torna-se um derrotismo da razão depois que a transformação do mundo fracassa. 8

Seria preciso separar a temática do balanço das revoluções daquela do balanço da obra de Marx, o que Adorno fará mais adiante. Nesse trecho, há as duas coisas juntas. De um lado, uma referência à última tese sobre Feuerbach, a famosa tese onze em que Marx diz: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”.9 Na verdade, a referência à Ideologia alemã trata apenas de uma fase do pensamento de Marx, o momento mais antifilosófico e anti-hegeliano, não do pensamento de Marx em geral, porque na maturidade é bastante diferente. De outro lado, há uma referência ao fato de que a transformação do mundo fracassou. Esse fracasso não se refere mais à Ideologia alemã, mas à história do século XX, que nos separa da época de Marx. Pois Marx escreveu que não bastava interpretar o mundo, que era preciso transformá-lo, mas essa transformação fracassou. Adorno pensa na URSS, sobre a qual, aliás, ele não tem ilusões, coisa rara nessa época. Ele pensa que essa revolução fracassou, mas não só essa, também todas as revoluções socialistas ou ditas socialistas. Há a ideia de um fracasso, de uma chance desperdiçada, de um kairós que foi perdido. Não só do destino de Outubro, mas também da Revolução Alemã de 1918, da Revolução Húngara e outras. Esse é o balanço que ele faz.

A respeito do tema do derrotismo da razão, Adorno prossegue:

Essa transformação não garante nenhum lugar a partir do qual a teoria como tal pudesse ser acusada concretamente de ser anacrônica — algo de que, agora como antes, ela continua sendo suspeita.10

Não haveria nenhuma instância prática no mundo, exterior à teoria, por exemplo, um partido, um movimento, um governo ou algum centro de racionalidade que poderia condenar concretamente a teoria como algo anacrônico. Essa ideia de uma superação da teoria pela prática aparece em vários momentos e está presente na própria Ideologia alemã quando Marx critica os filósofos de sua época, dizendo que havia instâncias do mundo prático que eram mais avançadas do que a teoria. Entretanto, em 1966, para Adorno, o mais avançado vem da teoria, não do mundo, ou seja, o discurso mais verdadeiro e crítico vem da filosofia e da teoria. Aliás, Adorno passa da filosofia para a teoria, em um deslizamento sutil, o que significa que a Teoria Crítica aparece, em algum sentido, como continuação da tradição filosófica.

Eu acredito que Adorno tinha razão, ainda que hoje as coisas tenham mudado um pouco; para aquela época, o julgamento é correto — nenhuma instância prática parecia à frente da teoria e menos ainda em posição de condená-la. Naquele momento, para retomar livremente uma expressão de Merleau-Ponty, era grande a quantidade de fantasmas que circulava pelo mundo, como aquele que dizia que a URSS era um modelo socialista.11 Era como se vivêssemos em um mundo de fantasmas, e hoje também vivemos, mas são outros e funcionam de forma diferente. Mas havia pequenos grupos que faziam teoria, havia lugares de verdade. Estou pensando em um período um pouco anterior à publicação do livro, ainda antes da invasão da Hungria. Havia os pensadores de Frankfurt na Alemanha; na França, Merleau-Ponty, uma voz um pouco isolada; em outra chave, também na França, a dupla Lefort-Castoriadis. São pequenos grupos ou autores, quase nada, mas que, no entanto, diziam verdades. O texto de Castoriadis sobre as relações de produção na Rússia, por exemplo, que é de 1948–49,12 vai se tornar um lugar comum apenas trinta anos mais tarde. Havia também todos os grupos dissidentes, mas que não iam longe o suficiente em sua crítica, como era o caso dos diferentes trotskismos. Os outros que citei iam muito mais longe na crítica. Basta ver o próprio texto de Adorno, que é formidável porque ele não tem nenhuma ilusão quanto ao Leste. Nós podemos lê-lo trinta anos depois e não há uma vírgula a ser alterada quanto às posições e opiniões políticas.

Talvez tenha sido insuficiente a interpretação que prometia colocá-la em prática.13

Adorno considera que a tese onze sobre Feuerbach é também uma interpretação, mas insuficiente. Se consideramos o contexto de Marx, a passagem à prática era insuficiente porque ainda lhe faltava a teoria. O discurso da Ideologia alemã é muito diferente daquele de O capital. Do ponto de vista da lógica, considero que seja um discurso até mesmo contraditório com relação ao que se encontra n’O capital — aí talvez seja o único lugar em que se pode pensar que os althusserianos dizem algo verdadeiro, ainda que a diferença não seja exatamente aquela para a qual eles chamam a atenção. Contudo, o problema não está, evidentemente, apenas na Ideologia alemã, mas no conjunto do projeto de Marx. É nesse sentido que devemos nos questionar se essa passagem à prática foi suficiente. Aqui, além de Marx, há uma pletora de referências, pois é todo um balanço do projeto revolucionário que está em questão. Sobre a prática e a passagem da teoria à prática, dou a indicação de um belo texto de Adorno: Notas marginais sobre teoria e práxis,14 de 1968 — na minha opinião, é um texto extraordinário.

O instante do qual depende a crítica da teoria não se deixa prolongar teoricamente.15

Não é possível prolongar o momento da crítica da teoria, então seria preciso ir além dele. A crítica da teoria é uma interpretação, mas uma que, na verdade, deseja uma ausência de filosofia e, hoje, já não podemos mais ficar apenas nesse momento de rejeição à teoria. Aqui, pode-se pensar ou que ainda se trata apenas da Ideologia alemã, pois foi ali que a crítica da teoria e da filosofia mais se aproximou de algo como o positivismo, ou que se trata do conjunto da obra de Marx, mas com a ressalva de que a relação de Marx com a prática se alterou ao longo do desenvolvimento de sua teoria.

A práxis, adiada por um tempo indeterminado, não é mais a instância de apelação contra a especulação satisfeita consigo mesma.16

Não houve um adiamento da prática no século XX, pelo contrário, houve todo tipo de movimento, de revolução. Mas ele considera que esses movimentos não foram bem-sucedidos e que, por razões diferentes, deram origem a novas formas de opressão e dominação. A partir dessa constatação, a atitude dos teóricos deve ser a de uma práxis adiada. É uma das posições possíveis nos anos 1950 e 1960. Como agir sobre o mundo? Havia gente que confiava nas grandes organizações, mas cada vez menos; havia um pequeno número de grupos dissidentes, que também tinham uma prática; e havia gente como Adorno, que abandona a práxis e se torna um teórico; esse logo seria o destino da dupla Lefort e Castoriadis. A possibilidade de uma práxis estava cada vez mais em questão, e, após a intervenção na Hungria, aconteceu um abandono da práxis por muita gente que foi aos poucos tomando distância dela.

Ao contrário, ela se mostra na maioria das vezes como o pretexto para que os executores estrangulem como vão o pensamento crítico do qual carecia a práxis transformadora.17

Esse trecho vale muito para nossa época, em que a teoria está na defensiva, pois em toda parte se trata de operacionalidade e utilidade, nos termos do sistema. Mas o trecho se dirige especialmente contra certo tipo de prática. Se vocês consultarem o texto a respeito da prática, que mencionei há pouco, verão que ele faz uma crítica contra o praticismo dos militantes de Maio de 68, gente que em nome da prática fazia uma espécie de terrorismo contra a teoria. Ele vai dizer que a questão “Que fazer?”, no fundo, é uma questão abstrata, pois se abandona as reflexões teóricas necessárias para se entregar a uma prática imediata. Temos uma crítica que vale muito para o movimento de 68 na Alemanha, mas a meu ver também para um número razoável de tendências do movimento francês da mesma época. Não significa que a partir disso devemos condenar 68 em geral, mas que houve certo número de problemas.

Sobre esse assunto, é importante lembrar que ocorreu um célebre choque entre Adorno e os estudantes na universidade e a partir desse embate ele escreveu esse texto sobre a prática. A meu ver, em linhas gerais, ele tinha razão. É preciso dizer que a certo momento ele chamou a polícia. Não acho que tenha sido muito amigável de sua parte, mas havia um clima de ameaça. Essa história foi muito usada contra ele, houve todo tipo de provocação e pouco tempo depois Adorno morre.18 Em suma, seria preciso ler esse trecho da Dialética negativa em conjunto com as Notas marginais sobre teoria e práxis.

Depois de quebrar a promessa de coincidir com a realidade ou ao menos de permanecer imediatamente diante de sua produção, a filosofia se viu obrigada a criticar a si mesma sem piedade.19

Aqui é o marxismo que aparece como representando a filosofia, sendo o herdeiro da filosofia clássica e de um gesto que é o de unificar a filosofia com a realidade. Faz pensar no texto do jovem Marx em que ele fala da filosofia que se torna mundo.20 Estamos em um momento em que a filosofia deve refletir sobre si mesma, pois ela não conseguiu efetuar essa passagem ao mundo, seja sob a forma do hegelianismo, seja sob a forma do marxismo.

O que outrora, em relação à aparência dos sentidos e a toda experiência orientada para o exterior, percebia-se como simplesmente não ingênuo tornou-se por sua vez, objetivamente, tão ingênuo quanto aqueles pobres formandos que Goethe recebera cento e cinquenta anos atrás e que se entregavam alegremente à especulação.21

Até agora era uma espécie de balanço do passado, do fracasso da realização da filosofia. Adorno havia começado com uma defesa da teoria diante da prática e, aos poucos, passa a uma crítica da própria teoria, como sendo o discurso que prometeu essa passagem à prática. Nesse trecho, se inicia uma análise interna sobre o que é hoje a filosofia face ao mundo. Aqui vem a ideia de que a filosofia se pretende como uma instância não ingênua vis-à-vis da experiência ordinária. Ela sempre se apresentou como uma instância capaz de reflexão crítica face ao mundo, mas ela também vai aparecer como dotada de uma ingenuidade excepcional. Como no tempo de Goethe, haveria, por parte dos candidatos que desejam fazer da filosofia seu métier, uma inocência com relação ao mundo, inocência que é fatal para a especulação filosófica. Ainda hoje é assim.

O que seria a não ingenuidade e a ingenuidade da filosofia? De um lado, ela se apresenta como menos ingênua que o mundo, pois a filosofia é capaz de criticar e desfazer certo número de ilusões, enquanto o senso comum se engana com relação a essas ilusões e acaba caindo nelas, por exemplo, a respeito da dialética transcendental. Por outro lado, a ingenuidade é que a filosofia se torna um mundo ilusório, pois ela não se dá conta de sua impotência face ao mundo. Ela vai apenas continuar jogando seu jogo, falando de uma série de coisas, mas ela aparece como pequena porque ela não está totalmente consciente de sua miudeza. É ingênua porque cai na ilusão de grandeza e, sem se dar conta disso, é esmagada pela potência do mundo.

Agora vem a comparação entre o filósofo e o técnico:

O arquiteto introvertido do pensamento mora por detrás da lua confiscada pelos técnicos extrovertidos.22

A década de 1960 foi o cenário da corrida espacial e particularmente da preparação para a viagem à lua. Nesse caso, Adorno chama a atenção para a assimetria chocante na comparação entre os meios técnicos e a filosofia. Hoje, se realizamos o trabalho filosófico, ficamos chocados com essa diferença. No século XVII já havia alguma consciência dessa relação; no XIX essa percepção fica mais aguda e até se pensou em colocar a ciência à serviço da filosofia, tentando fazer da ciência algo mais elevado. Mas atualmente essa diferença se tornou simplesmente esmagadora. Quando tentamos pensar um problema filosófico, temos diante de nós o sucesso estrondoso, mesmo que contraditório, da ciência — contraditório porque para o melhor e para o pior. Diante disso, a filosofia aparece como um jogo de criança. Enquanto falamos, por exemplo, de transcendental, eles inventam as coisas mais inacreditáveis, aparelhos novos, viagens à lua. É efetivamente um tipo de distância e de mal-estar do filósofo quanto à potência enorme da ciência.

Em face da sociedade dilatada de modo desmedido e dos progressos do conhecimento positivo da natureza, os edifícios conceituais nos quais, segundo os costumes filosóficos, o todo deveria poder ser alocado, assemelham-se aos restos da simples economia de mercado em meio ao capitalismo industrial tardio.23

De uma parte, o progresso científico e, de outra, a expansão da sociedade, em sentido intensivo e extensivo. Atualmente, temos o fenômeno que chamam de globalização, o desenvolvimento do mercado mundial a um nível que não conhecíamos, para o qual cabe a célebre frase de Marx: “A história universal não existiu sempre; a história como história universal é um resultado”.24 Por outro lado, Adorno vai tocar frequentemente na ideia de que, no interior dessa sociedade capitalista monstruosa, o trabalho do filósofo se apresenta como algo artesanal. Aliás, ele fala muito do trabalho docente como uma espécie de anomalia artesanal em um mundo completamente mecanizado; o professor é esse tipo meio estranho que vem e repete certo número de coisas que ele estudou e isso tem um ar de economia simples no interior do capitalismo avançado.

A respeito do tema da economia simples, precisaríamos retomar a distinção feita por Marx entre economia simples e capitalismo. Porque não basta haver produção de mercadoria para que exista capitalismo, já que esse último é um desenvolvimento específico da economia mercantil. Um desenvolvimento que, aliás, significa a negação da economia mercantil. Essa diferenciação se torna complexa porque, a rigor, não houve, historicamente, uma economia mercantil não capitalista, uma economia puramente simples. Então ela existe apenas como um estrato no interior da economia capitalista, mas como momento negado. Uma parte de meus trabalhos tentou esclarecer esse ponto, que também está presente, ainda que de outra forma, nos trabalhos de Braudel,25 de Pólanyi26 e num livro recente de Giovanni Arrighi, O longo século XX.27 É a ideia de uma economia capitalista que vai liquidar as formas mercantis de uma economia não capitalista. Essas formas podem até subsistir dentro do capitalismo, mas elas não se confundem com ele.

A desproporção entre o poder e todas as formas do espírito - uma desproporção que é agora lugar-comum — tornou-se tão enorme que acabou por marcar como vãs as tentativas, inspiradas pelo próprio conceito de espírito, de compreender aquilo que é predominante. Tal vontade de compreender revela uma exigência de poder que contradiz o que deveria ser compreendido.28

Há uma tal desproporção entre a potência e espírito que nos faz questionar: o que pode o espírito diante da potência do mundo? Toda tentativa de pensar e refletir sobre esse excesso de potência choca pela inanidade, como quando os frankfurtianos falam sobre a bomba. Há um verdadeiro impasse na tentativa de se pensar a potência, pois o espírito parece se contradizer quando tenta pensar essa potência que ele deve pensar. É uma impotência do discurso do filósofo que sempre foi real, mas que em nossa época se apresenta como um grande problema: com que direito falamos do mundo? Todos podem falar do mundo, mas falamos como se tivéssemos coisas a dizer, porque trabalhamos a partir de certa tradição que parece nos investir em uma posição de dizer algo sobre o mundo. Mas é legítima essa pretensão por parte dos que lidam com a filosofia? É essa a questão.

Em seguida, o problema de que o filósofo se tornou um tipo de especialista:

A regressão da filosofia a uma ciência particular, imposta pelas ciências particulares, é a expressão mais evidente de seu destino histórico. Se Kant, segundo suas próprias palavras, tinha se libertado do conceito escolar de filosofia e passado para o conceito cósmico dela, a filosofia foi agora obrigada a regredir ao seu conceito escolar.29

É uma referência a um texto do fim da Crítica da razão pura em que Kant opõe um conceito escolástico, ou escolar, da filosofia a um conceito mundial, não mundano, mas mundial (Weltbegriff), da filosofia, ao qual Kant se refere através da expressão em latim conceptus cosmicus. Está na seção final da primeira crítica, no penúltimo capítulo, que se chama “A Arquitetônica da Razão Pura”:

O conceito da filosofia é apenas um conceito escolástico, qual seja, o de um sistema do conhecimento que só é buscado como ciência, sem ter nada mais por fim do que a unidade sistemática desse saber, portanto a perfeição lógica do conhecimento. Mas há também um conceito mundial (conceptus comiscus), que sempre serviu de fundamento a essa denominação, notadamente quando foi como que personificado e representado como um modelo no ideal do filósofo. Desse ponto de vista, a filosofia é a ciência da remissão de todo conhecimento aos fins essenciais da razão humana (teleologia rationis humanae), e o filósofo não é um artista da razão, mas o legislador da razão humana. Nesse sentido, seria muito presunçoso denominar-se um filósofo e pretender ter-se igualado ao modelo que reside somente na ideia.30

Então há duas noções da filosofia, uma especialidade como qualquer outra, e a filosofia como um projeto de legislação racional para as coisas humanas em geral. Do primeiro ponto de vista, é possível se dizer filósofo; do segundo ponto de vista, torna-se algo pretensioso. Por conta disso que com frequência se diz que não se é filósofo, mas que se ensina a filosofia; professor de filosofia, mas não filósofo. Depois a expressão filósofo se banalizou e se tornou simplesmente alguém cujo métier é a filosofia.

Voltando a Adorno, ele mostra, no trecho que lemos anteriormente, que a filosofia regrediu a um conceito escolar em razão do avanço das ciências. A filosofia era um projeto, o que hoje pode soar pretensioso, então ela passa a ser estabelecida como um saber especializado, a tal ponto que podemos nos perguntar se um filósofo universitário tem mais competência que um especialista em resistência de materiais, um cardiologista ou um químico para falar sobre os assuntos do mundo. Frequentemente, diz-se que sim. Pois se estivermos mais próximos desses assuntos e formos capazes de trabalhá-los a partir da tradição, nos colocamos em uma posição mais favorável. Mas se a filosofia se torna algo puramente escolar, então somos especialistas como quaisquer outros e não temos mais uma autoridade particular para falar sobre o mundo.

Contudo, a situação se complica porque o lado escolar é necessário, é preciso passar por ele para se poder chegar a algo diferente. Nesse lado escolar, a filosofia se torna uma ciência particular. Qual é essa ciência? É a história da filosofia. Em certo sentido, para falar sobre o mundo, o especialista em história da filosofia é um especialista como qualquer outro. Mas há também o conceito cósmico de filosofia. Quando nos dedicamos à filosofia, é assim: por um lado, ela é nosso métier e precisamos necessariamente responder às suas exigências específicas, mas, de outro lado, há a reflexão sobre as coisas do mundo, e precisamos ter em mente que a reflexão sobre o mundo é mais importante, só que é também mais arriscada.

Se dissermos coisas vazias sobre o mundo, isso vale muito menos do que a boa filosofia escolar. Era essa a ilusão de muita gente aqui, era a deformação da casa, de acreditar que era possível ascender à filosofia cósmica sem ter passado e trabalhado a filosofia escolar. Acontece que a boa filosofia escolar é superior à má filosofia cósmica, à pseudofilosofia cósmica. O problema se coloca. Cada um tenta resolvê-lo a seu modo, mas é preciso tentar conjugar ambas as partes. É uma dualidade que um médico não enfrenta. Digamos que ele até pode se deparar com o problema, mas de forma muito menos aguda do que a nossa, à medida que os temas da tradição filosófica são os grandes temas do destino do mundo, do homem etc.

A despeito da doutrina do espírito absoluto, uma doutrina no âmbito da qual inseriu a filosofia, Hegel sabia que essa não era senão um mero fator da realidade, uma atividade baseada na divisão do trabalho; com isso, ele a restringiu.31

O paradoxo do hegelianismo: ele atribui à filosofia um lugar enorme, porque no espírito absoluto a filosofia aparece de certa forma como a totalidade sob a forma de pensamento. Ao mesmo tempo, muito mais que em outros filósofos, Hegel considerou a filosofia como uma atividade entre outras. A filosofia aparece como um discurso que chega tarde, apenas depois. Assim, também a impotência da filosofia é muito acentuada por Hegel. Ele, Hegel, é o realista por excelência, um filósofo que valorizava, talvez até em demasia, a história, aquilo que efetivamente aconteceu. Não se deve criticá-lo como se ele fosse um personagem que atacou César ou Napoleão por se considerar superior a eles, pois as temáticas do peso do mundo com relação à filosofia e da relativa impotência da filosofia são curiosamente hegelianas. A filosofia aparece como tudo, mas ao mesmo tempo como muito pouco. Ela é uma atividade como outras.

(fim da gravação)