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O Supremo e o arquipélago

Arquipélago de São Pedro e São Paulo, Pernambuco.

Clube.

O arquipélago de São Pedro e São Paulo é uma das porções de terra mais ao leste do Brasil, só perdendo, nesse quesito, para outro arquipélago: o de Trindade e Martim Vaz, algumas léguas mais afastado do nosso continente e mais próximo do meridiano de Greenwich. Ambos, no entanto, estão rigorosamente no meio do nada ― ou, como se convencionou chamar, do Oceano Atlântico, essa versão hídrica do nada, ornamentada ademais com tubarões e piratas. Se a competição de distâncias, entretanto, se estendesse na direção de outros pontos cardeais, então São Pedro e São Paulo se sagraria vencedor: é o território brasileiro mais ao norte do globo, fazendo do Oiapoque praticamente um Chuí continental. É preciso, no entanto, que eu me corrija ligeiramente (gesto extemporâneo ao espírito do texto) e previna o leitor de alguns mal-entendidos: dizer de São Pedro e São Paulo que se trata, em primeiro lugar, de um “arquipélago” e, em segundo lugar, de uma porção de “terra” exige de nós algum grau de abstração e complacência. Não com relação aos termos técnicos e científicos, cuja definição, para ser sincero, ignoro por completo; mas, com respeito ao imaginário popular, esse guia incorrigível e juiz impiedoso, cujas projeções e expectativas não convém contrariar.

Uma rápida busca no Google nos informa que, em tempos remotos, o Arquipélago de São Pedro e São Paulo (ou ASPSP, para os amantes de siglas) se chamava, mais apropriadamente, “rochedo” ou (meu preferido) “penedo”. Mais apropriadamente ― e meu preferido ― porque (apesar de a etimologia me refutar) “penedo” nos remete (a nós, cujas sinapses se dão como numa máquina de pinball) a “pena”, em suas mais variadas acepções; a “empenado”, também considerados os seus múltiplos significados; a “alma penada”, com todas as suas flutuações de sentido; e, por fim, a “Penadinho”, ao menos para as gerações que, como a minha, foram desasnadas pelos gibis de Maurício de Souza. E, como essa mesma busca no Google nos permite ver, as características superficiais de São Pedro e São Paulo estão em maior harmonia com esse universo semântico do que com aquele delimitado pela noção de arquipélago, cujos homólogos ilustres (arquirrival, arqui-inimigo, arquidiocese e até monarquia) dificultam sobremaneira (de novo, para nós, portadores de cérebros espasmódicos) a associação intuitiva com o objeto em questão. Herdeiros da arché clássica (aqui a etimologia não pode me punir) e de suas conotações elevadas, tais vocábulos estão em franca dissintonia com a realidade sensível de São Pedro e São Paulo ― que, por sua vez, “penedo” e similares apreendem tão bem.

Além disso, não me parece ocioso aludir, nesse caso, ao efeito acumulado da exposição constante de nossas mentes ao mundo das celebridades. De lá aprendemos (e não das aulas de geografia, naturalmente) o que vem a ser um arquipélago: um lugar paradisíaco, em que ricaços constroem mansões irregulares e artistas da Globo alimentam tartarugas ― ou promovem orgias, longe (mas não o suficiente) dos olhares indiscretos da sociedade. Não há nada de paradisíaco, à primeira vista, no arquipélago de São Pedro e São Paulo. De maneira muito literal (e pouco polida), trata-se de uma pontinha do assoalho oceânico (que subiu em demasia, por conta de uma enorme falha geológica) lavado de merda de pássaro ― e não qualquer pássaro, mas aves “mansas e estúpidas”, segundo as famosas palavras do naturalista britânico Charles Darwin, que aportou lá o seu Beagle, no ainda rochedo de São Pedro e São Paulo, em 1832.

Quase sem nenhuma vegetação, boa parte dos 13 mil metros quadrados (pouco mais do que um campo de futebol) de sua superfície rochosa está recoberta pelo guano ― esse adubo natural, formado a partir do excremento das viuvinhas e atobás que habitam o arquipélago ―, que acaba por conferir às porções mais elevadas da ilha Belmonte (sua maior ilha) uma típica coloração perolada. Se a superfície emersa é diminuta, aquilo que está encoberto pelas águas salgadas do oceano surpreende por suas dimensões: uma bruta de uma cordilheira (o termo técnico seria “elevação morfológica submarina”) com 100 quilômetros de comprimento por 20 de largura, e aproximadamente 3.800 metros de altura (ou profundidade). Não fosse o azar de ter nascido no fundo do mar, a “montanha” de São Pedro e São Paulo seria a mais alta do Brasil (para efeito de comparação, o Pico da Neblina, detentor do título de maior altitude brasileira, tem cerca de 3.014 metros de altura). Em face dessas informações, a própria existência do arquipélago ― enquanto arquipélago ― parece um milagre: seus tímidos 18 metros de altura, comparados aos 3.800 da montanha que o escora, se tornam, com efeito, insignificantes (menos de 0,5% do tamanho total). 0,5% a menos de altura e o rochedo, portanto, não seria visível, seu cume coincidindo perfeitamente com o nível atual do oceano, o que acabaria por reduzi-lo a uma espécie de bicho-papão de navios, que lhes puxa os pés sorrateiramente (toda vez que ousam sobrenavegá-lo) para um naufrágio certeiro.

Por falar em naufrágio, cumpre dizer que o próprio nome do arquipélago provém de um: conta o Livro das Armadas que, em 20 de abril de 1511, uma das caravelas da esquadra portuguesa comandada pelo Capitão-mor Dom Garcia de Noronha, com destino à Índia, encalhou no rochedo, até então desconhecido. Tratava-se justamente da caravela São Pedro, sob comando do capitão Manuel de Castro Alcoforado, cuja tripulação foi salva, em seguida, por outra caravela, de nome São Paulo. Da solidariedade dos santos veio o nome da pedra (que tem pedra no nome); do batismo acidental seu destino certeiro: nascida da falha, natural e humana, remida por pares. Na época não se poderia saber, mas esse foi talvez o mais grave acidente náutico da história e Manuel de Castro Alcoforado deveria receber o título post mortem de pior piloto de todos os tempos: afinal, quão desastrado é preciso ser um comandante para colidir seu navio diretamente com o fundo do mar?

A descoberta, no entanto, de que o rochedo consiste de um soerguimento do manto abissal (e não de erupções vulcânicas, como a maior parte das ilhas) é bastante recente. Não saberia datar com precisão (nem é este aqui o nosso objetivo), mas arriscaria dizer que é, em alguma medida, contemporânea (e seguramente devedora) da comprovação da hipótese da deriva continental ― também ela recente, datando, surpreendentemente, apenas do final dos anos 1950, começo dos anos 1960. A história dessa comprovação é fascinante e se mistura com a biografia da geóloga americana Marie Tharp, uma das cientistas mais importantes (e mais injustiçadas) do século XX. Tharp foi a cartógrafa responsável por elaborar um mapa, extremamente detalhado, do fundo do oceano Atlântico, que, entre outras coisas, demonstrou a existência de enormes vales e rachaduras em seu assoalho, o que refutava a hipótese, até então vigente, de que o “chão do mundo” era uma superfície relativamente homogênea e inteiriça (e não um conjunto de placas “boiando” sobre um núcleo viscoso, em constante atrito entre si).

Tharp, entretanto, nunca pôde pôr os pés no navio equipado com o sonar que realizou as medições para seu estudo, uma vez que mulheres trazem muita má sorte em alto mar ― como todo misógino supersticioso bem sabe (e na época não faltavam misóginos supersticiosos, cientistas e marujos). De seu laboratório em terra firme, portanto, coube à cientista analisar cuidadosa e pacientemente os dados coletados a bordo, para então concluir que o fundo do mar não era lisinho e uniforme como se pensava. As reações à publicação de seu trabalho foram intensas, vindas desde seu colega e colaborador de pesquisa, Bruce Heezen, até o cineasta, oceanógrafo e celebridade dos mares, Jacques Cousteau. Esse último, aliás, num momento à la São Tomé de Aqualung, resolveu filmar o fundo do mar para provar, de uma vez por todas, que os dados de Tharp estavam errados. Qual não foi a surpresa do explorador francês ao descobrir que seu filme, ao invés de desacreditar as afirmações da geóloga americana, servia apenas para corroborá-las. Jacques (assim como boa parte da comunidade científica da época) custou a acreditar, mas no fim teve de se convencer de que Tharp tinha razão.

Antes de avançarmos, cumpre ainda dizer que a promoção do rochedo ao estatuto de arquipélago se deu apenas por volta dos anos 1990 ― e por razões muito mais jurídico-econômicas do que propriamente “ontológicas” ou técnico-científicas (fica aqui um aprendizado importante para Plutão). O item 3 do artigo 121 da Convenção das Nações Unidas sobre o direito do Mar, ratificado pelo Brasil em dezembro de 1988, afirma que: “Os rochedos que, por si próprios, não se prestam à habitação humana ou à vida econômica não devem ter Zona Econômica Exclusiva nem plataforma continental”. Para garantir, portanto, uma ZEE ao rochedo de São Pedro e São Paulo (e com isso expandir consideravelmente a área de nossa “Amazônia Azul”) o governo brasileiro decidiu ocupá-lo permanentemente, com pesquisadores e militares. Acompanhando essa medida, veio a decisão também de rebatizá-lo: a partir de então, o rochedo passou a ser chamado de arquipélago (não sei bem se por uma precaução jurídica plausível ou se por pura interpretação de texto deficiente).

O antigo e primeiro farol do rochedo, construído apenas nos anos 1930 e desde então abandonado, foi substituído por um mais moderno ― de fibra de vidro, mais resistente à ressaca do mar e aos abalos sísmicos, comuns na região ―, por volta de 1995. Foi nessa época também que se iniciaram os estudos para a construção de sua Estação Científica, inaugurada em 1998, que abriga atualmente o Programa Arquipélago e as equipes de pesquisadores que por lá se revezam a cada quinze dias, sempre com o apoio da Marinha brasileira. Biólogos, geólogos, oceanógrafos e militares se juntaram, portanto, de maneira definitiva, à fauna do local ― e, exceção feita a uma ou outra equipe de televisão, os habitantes permanentes da ilha não costumam receber visitantes (pelo menos é o que se pensava, até alguns meses atrás).


Quando imagens de uma réplica do plenário do STF, instalada na parte baixa da ilha Belmonte, começaram a pipocar nos grupos de Whatsapp de jornalistas dos principais veículos de comunicação do país, um murmurinho tomou conta das redações. Os espíritos, contagiados por um misto de excitação e incredulidade, passaram a alternar entre a certeza categórica e a dúvida petrificante, numa velocidade inusitada. Hipóteses sofisticadas (enunciadas em tom notavelmente assertivo) e perguntas desconcertantes (imbuídas de sobriedade) se desafiavam e se sucediam mutuamente ― a dynamis antitetiké dos antigos pirrônicos operando a pleno vapor. Se, por um lado, a tese de uma fake news, plantada por bolsonaristas com o intuito de difamar e agredir a Suprema Corte, começava a ganhar força, por outro, a verossimilhança das imagens (reforçada, ademais, pela opinião de especialistas, que não conseguiam encontrar traços de falsificação), somada ao mais completo e enigmático silêncio dos ministros e da assessoria de imprensa do STF, reacendia a dúvida na cabeça dos jornalistas, de modo insistente e persuasivo.

Até onde se conseguiu apurar, sabia-se apenas que as imagens haviam sido obtidas, pela primeira vez, por um jornalista do Agora RN, um jornal de Natal, no Rio Grande do Norte, que estava infiltrado (ao menos foi essa a versão que o jornalista apresentou aos colegas) há alguns meses num grupo bolsonarista local, intitulado Patriota Potiguar. As fotos haviam sido compartilhadas por um membro anônimo do grupo ― cuja única identificação era “VERÁS QUE UM FILHO TEU NÃO FOGE À LUTA” (em caixa alta no original) e uma imagem de Bolsonaro vestido de Capitão América com as cores brasileiras ―, que, no entanto, ao compartilhá-las, disse que as havia obtido num outro grupo bolsonarista, já extinto. Segundo sua versão, confusíssima (tanto na forma como no conteúdo), o compartilhamento original havia sido feito ainda num terceiro grupo, por um membro que ele não sabia dizer se era da Marinha ou se tinha amigos ou familiares na Marinha (a partir desse ponto, a história começava a ficar exponencialmente confusa e praticamente impossível de apurar).

A narrativa que passou a acompanhar o compartilhamento das imagens nos grupos bolsonaristas (e que logo viralizou nesse ecossistema) insinuava que, às escondidas e esbanjando dinheiro público, os ministros do STF haviam organizado uma sessão plenária em Fernando de Noronha (erraram de arquipélago), para julgar um processo-bomba contra o Executivo. A respeito de qual seria o objeto do julgamento, os vereditos variavam: havia desde quem afirmasse se tratar de um pedido da oposição para que o Supremo aprovasse a vacinação compulsória em todos os Estados brasileiros, até quem defendesse se tratar de uma autorização do Judiciário para uma contraintervenção militar sino-venezuelana em solo nacional (havia quem defendesse uma versão dessa teoria da conspiração com um arco de alianças ainda mais amplo, indo desde a China comunista até o recém empossado governo americano de Joe Biden, cujo infiltrado no Brasil seria o youtuber Felipe Neto). Por qual razão essa sessão extraoficial havia ocorrido numa ilha ― que só foi identificada acertadamente como sendo o arquipélago de São Pedro e São Paulo quando as imagens chegaram ao conhecimento da imprensa ―, ninguém sabia dizer ao certo, mas diziam assim mesmo: farra com prostitutas; necessidade de grande sigilo; uma artimanha jurídica para burlar a Constituição Federal, que não valeria em águas internacionais (supondo ser esse o caso); etc. etc. etc.

Enquanto os jornalistas aguardavam um posicionamento oficial do Supremo (sobretudo na forma de uma negativa), que estranhamente não vinha, a circulação das imagens nas mídias digitais já havia se tornado um fato público e, portanto, noticioso por si só, independentemente da narrativa na qual se desejava enquadrá-las. Mauricio Stycer, o primeiro jornalista de peso a resolver publicá-las, deu o furo com a seguinte manchete: “Réplica misteriosa do plenário do STF em ilha intriga internautas”. Mônica Bergamo e Lauro Jardim logo o seguiram, mas procurando conferir um acento político ao episódio, ao ressaltar o silêncio ensurdecedor do Supremo e demais instituições com respeito à veracidade ou falsidade das imagens. “Logo eles terão que se pronunciar”, se dizia nos corredores de Brasília e nas redações dos jornais de todo país ― ou então: “logo alguém abre o bico e ficamos todos sabendo”. Era um pouco essa a expectativa que tomava conta das pessoas logo após a publicação das imagens pela grande imprensa.

No entanto, três dias se passaram sob o mais absoluto silêncio. Ninguém do STF, nenhum dos ministros ou seus assessores de imprensa comentou o assunto. Mais estranho ainda: ninguém do Legislativo ou do Executivo se pronunciou sobre o caso. Nenhum olavista, nenhum ministro militar, nenhum dos filhos desmiolados do presidente ou o próprio presidente parecia saber da existência ou se importar com aquelas imagens ― e as especulações que as rondavam há dias. A indiferença com relação a elas parecia incomodar mais, àquela altura, do que uma eventual confirmação de sua autenticidade ― que, por si só seria perturbadora para muitos. “Estamos na merda: nem a Sadi conseguiu a informação!”. “Puta que pariu…, nem a Sadi? O caso é grave mesmo!”, ouvia-se melancolicamente no cafezinho das redações.

A névoa que encobria a questão há quase uma semana só começou a se dissipar, e ainda assim parcialmente, quando Felipe Recondo, do portal de notícias jurídicas Jota, publicou uma nota que, para surpresa de todos, confirmava a veracidade das imagens. Segundo o jornalista, especialista em STF, um juiz assistente (nem a sua identidade nem a identidade do ministro ao qual é subordinado foram reveladas) confirmou ao blog, em tom inusitadamente descontraído, se tratar de imagens autênticas. E foi além: ainda como quem conta uma trivialidade, disse, apenas levemente admirado: “Ninguém por aqui entendeu nada, viu? Por que raios transferir uma sessão plenária para uma ilha, no meio do oceano? Que eu saiba isso nunca aconteceu antes…”.

A confirmação da veracidade das imagens, somada à revelação, entremetida, de que uma sessão oficial do Supremo havia ocorrido fora de Brasília (numa ilha, no meio do oceano Atlântico), trouxe mais questões do que alívio àqueles que ao longo de uma semana estavam imersos na mais pura confusão. Parte dessa inquietação, não verbalizada, que começava a tomar conta de alguns, vinha da sensação, profundamente vertiginosa, de que a realidade se torcia diante dos olhos. Como se a confirmação factual do inusitado não significasse apenas flutuação estatística, mas a subversão radical do próprio regime de normalidade, vigente desde a prisca idade. Como se, a partir daquele momento, o conhecimento acumulado pela humanidade ao longo dos séculos fosse subitamente suspenso ― e passasse a não mais valer como guia seguro para a reflexão e ação no mundo real. O desespero causado por essa suspensão forçada do juízo ― uma espécie de epokhé acidental ―, longe de se assemelhar à ataraxia dos antigos, conduziu uma parte considerável das equipes de jornalismo ao acompanhamento psicológico profissional.

“É um acúmulo de fatores”, “a pandemia e o confinamento certamente contribuíram para o agravamento do quadro”, “você está somatizando o sofrimento, é preciso tirar alguns dias de folga”, diziam especialistas, amigos, leigos e o pessoal de RH do entorno daqueles que adoeceram em virtude do “efeito arquipélago” ― como se disse, de maneira um pouco condescendente, nos dias seguintes ao aparecimento dos primeiros casos. “Estão normalizando a loucura”, protestavam algumas das pessoas diagnosticadas com o transtorno. “Não é razoável que um evento insano como esse aconteça e, sobretudo, não é razoável que as pessoas reajam com naturalidade a isso”. Ao que se respondia, não sem um quê de cinismo: “você está traçando uma fronteira muito rígida entre o normal e o patológico, Robson. É preciso tomar cuidado para não internalizar pressupostos tão intransigentemente concebidos. Vou te recomendar uma semana de descanso, alguns bons ansiolíticos e leituras diárias da História da loucura, de M. Foucault”.

Discursos como esse, inesperados e desconcertantes, conferiam contornos ainda mais inusitados à situação e acabavam por agravá-la, fortalecendo a convicção daqueles que se recusavam a aceitar uma realidade aparentemente de ponta-cabeça. Ao invés de aliviar o sofrimento de seus pacientes, o médico malgré lui foucaultiano ― e episódios assemelhados ― servia apenas para alimentar a espiral de neuroses em que se encontravam capturados. A renúncia da realidade, como gesto derradeiro de lucidez, fazia com que esses indivíduos se refugiassem numa pretensa loucura justamente para escapar de uma loucura certa, incontestável ― a imagem de um complô generalizado, de orquestração intrincadíssima, adquiria, como se pode imaginar, cores vivazes diante de seus olhos.

Os que não iam tão longe, apesar da genuína solidariedade com os mais desafortunados, não o faziam apenas por medo da infâmia. Choravam duas vezes: uma pelo mal-estar represado no peito, outra pela falta de coragem em enunciá-lo. O medo do estigma, em tudo compreensível, não se traduzia, no entanto, em um desejo sóbrio de higidez. O instinto de autopreservação aparecia intimamente como um gesto ignóbil, digno da mais profunda vergonha e reprovação moral. Ilhados pelo medo e pela covardia, sentiam-se tão ou mais solitários do que aqueles que optavam, de modo mais ou menos consciente, pelo ostracismo que a loucura e a excentricidade conferem seguramente aos seus portadores, párias sociais por excelência. Meses depois, Luiz Felipe Pondé viria a publicar um livro, intitulado O anticogito, no qual apresentava uma interpretação filosófica original, mas mal desenvolvida, a respeito desse surto de desesperança. Mesmo seus desafetos tiveram de reconhecer o valor da obra, embora ressaltassem, com razão, que a exposição, desnecessária, das frustrações sexuais do autor em concomitância ao argumento filosófico obscurecia seus pontos fortes.

A história que veio a se conhecer depois, embora de modo muito fragmentado, era ainda mais inacreditável do que se poderia, a princípio, supor. É verdade que dela não se compreendeu os fundamentos, que permaneceram o tempo todo submersos, mas soube-se o suficiente para confiar na concretude de suas porções visíveis, livrando-as assim da suspeita, sempre presente, de se tratarem de meras miragens. Nas linhas que seguem, me esforçarei, portanto, em reproduzir, do modo mais fiel possível, os eventos sui generis ocorridos na ilha e do qual fizeram parte importantes figuras da política nacional. Penso que o introito inusitado que as antecedeu até aqui, se por um lado causa estranheza, o que é sempre censurável, cumpre ao menos a função de acostumar as pupilas do leitor ao ambiente esfumado no qual os episódios a seguir serão narrados.1

O embarque dos ministros no Araguari, navio-patrulha oceânico da Marinha brasileira, aportado em sua base naval de Natal, no Rio Grande do Norte, atrasou pelo menos três horas. Uma em virtude do atraso dos próprios ministros, que chegaram numa comitiva modesta, em voo fretado pela FAB; mais duas pela dificuldade técnica (bastante embaraçosa, em se tratando da Marinha) em acomodar as bagagens da tripulação no porão do navio. A maior dificuldade, ao que parece, foi fazer entrar no compartimento de bagagens uma enorme estátua de bronze de São Jorge, pesadíssima, de propriedade do ministro Dias Toffoli. O amuleto ciclópico costumava ficar no gabinete do ministro (que, segundo relatos, é bastante supersticioso), em Brasília. Mas, ao saber da viagem, e como condição para participar da sessão (uma vez que tem pavor do mar), o ministro exigiu o translado da peça em sua companhia.

“Deixa essa porra aí, vai Toffoli…, o navio precisa partir”, dizia um Gilmar Mendes impaciente, mas ao mesmo tempo sensibilizado com o sofrimento do colega, que, àquela altura, já despido do paletó e com as mangas da camisa branca arregaçadas, gesticulava como um flanelinha à beira do navio, mais atrapalhando do que auxiliando os doqueiros que tentavam, há mais de um hora, emprenhá-lo com o patuá brônzeo. Vermelho como um caqui maduro, suado como um lateral direito, Toffoli, auxiliado por seu capinha, tentava se recompor, já em seu acento, ao mesmo tempo em que lutava para justificar, junto aos colegas, sua crendice medieval travestida de bom senso. “Muito me espanta que Vossas Excelências não saibam, mas santo que está na Bíblia não presta. Dá um azar do cacete! Além do mais, São Pedro e São Paulo não se davam, basta ler sobre o incidente em Antioquia. Péssima ideia batizar o arquipélago com esse nome. Não à toa, o lugar tem abalos sísmicos…”. Os colegas gargalharam, no que foram logo seguidos pelo próprio Toffoli, forçado a reconhecer o conteúdo cômico de suas palavras assim que deixavam sua boca.

A viagem, de mais de três dias, transcorreu bem, sem nenhum incidente ― do lado de fora. Dentro do navio, por outro lado, marinheiros, assessores e os colegas ministros tiveram de assistir a um pequeno chilique protagonizado por Luiz Fux, que, ao que tudo indica, acabava de ser informado pela ministra Rosa Weber das dimensões e da geografia do local de destino. “Vossas Excelências enlouqueceram, é?”, perguntava o ministro, com os “s” todos chiados de seu sotaque carioca. “Como é que se aprova uma loucura dessa? O lugar é claramente insalubre!”, dizia Fux, apontando para a tela de seu Iphone, que exibia as imagens de sua busca no Google. “Mas, Luiz, você mesmo aprovou”, redarguiu a ministra Carmen Lúcia, em tom notadamente informal, tentando acalmar os ânimos e botar panos quentes na situação. Todos os ministros e ministras haviam aprovado a transferência daquela sessão para o arquipélago, mas, depois se veio a saber (por meio de assessores), Fux não havia lido todos os detalhes contidos na mensagem. Comentou-se que, ao bater os olhos na palavra “arquipélago”, o ministro se decidira imediata e precipitadamente em favor da transferência. “Vai ser ótimo, porra! A gente aproveita para relaxar um pouco. Quem sabe depois não rola até um chope e uma empada no Belmonte?”, se dizia, com exagero, das palavras proferidas pelo ministro na ocasião, que, segundo essa versão maliciosa dos fatos, teria confundido a ilha Belmonte com o famoso boteco homônimo de Copacabana.

A insalubridade da ilha aludida por Fux, um dado sensível da realidade, seria contornada na prática por um plano pouco convencional: de dia os ministros permaneceriam na ilha, onde ocorreriam as sessões, nos períodos da manhã e da tarde (a Estação Científica sofrera uma pequena reforma e fora levemente expandida, para melhor acomodar os ministros e suas equipes nos intervalos dos trabalhos); de noite eles seriam reconduzidos ao navio da Marinha, que durante toda a estadia (por volta de três dias) circunavegaria o arquipélago de modo ininterrupto, uma vez que, por conta de sua topologia, é impossível ancorar no local. Tudo isso especificado nas mensagens não lidas por Fux e aprovado previamente por todos os ministros. O translado diário dos magistrados, precedido pelo de seus assessores e funcionários, seria realizado por meio de botes, em três grupos de três mais um de dois, distribuídos sob critério de antiguidade, nesta ordem: Kássio Nunes, Alexandre de Moraes e Edson Fachin; Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux; Dias Toffoli, Carmen Lúcia e Ricardo Lewandowski; Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello.

Já no primeiro dia, entretanto, a ordem foi bagunçada, o que gerou irritação e protestos. Fux, que se levanta muito cedo, cismou que o convés do navio não era suficientemente estável para a prática segura de seus exercícios matinais (diários e quase sagrados). Acompanhado de seu manequim de sparring, kimono azul amarrado com sua faixa preta de jiu-jitsu e luvas de boxe trespassadas no pescoço, o magistrado convenceu, então, um dos barqueiros de plantão a levá-lo à ilha antes de seus colegas acordarem, com o céu ainda escuro. Lá, a cena do ministro jiujiteiro socando o joão-bobo, com uma faixa amarrada na cabeça, causou surpresa aos pesquisadores e pássaros que ainda se espreguiçavam. “Olha lá, o karatê kid…”, disse a bióloga Denise Freitas ao seu colega oceanógrafo Fábio Valim, enquanto cuspia a pasta de dente na pia, dentro da Estação Científica. Os dois riram e o apelido pegou, a ponto de incomodar o magistrado, que paradoxalmente (em parte para não demonstrar o melindre) fazia todo o possível para agradar e se integrar aos habitantes locais.

Logo na sessão da manhã, para iniciar bem os trabalhos, Fux, na qualidade de presidente da corte, pediu desculpas aos colegas por sua partida antecipada, que segundo lhe informaram seus assessores, preocupadíssimos, havia causado irritação sobretudo em Marco Aurélio, decano do tribunal, profundamente apegado aos ritos e tradições. “Vossa Excelência tem atitude muito nobre, ao se desculpar”, disse em resposta Marco Aurélio. “Mas, como vim a saber depois, a razão de Vossa Excelência ter nos deixado para trás me parece justa. Portanto, com as devidas vênias, e se meus colegas concordarem, gostaria de propor uma exceção à ordem dos embarques: que o ministro Fux possa embarcar mais cedo, em horário conveniente, para a prática adequada de seus exercícios. Afinal, mens sana in corpore sano”, concluiu o ministro com a citação em latim.

Ainda na sessão matinal, os magistrados se viram forçados a improvisar uma nova regra, inusitada e pouco confortável aos capinhas, seus assistentes de plenário. Esses passaram a se posicionar ao lado direito dos ministros, portando um grande guarda-chuva preto, de cetim, que os cobria completamente durante toda a sessão. Isso, porque, em sua primeiríssima intervenção no plenário, a ministra Carmen Lúcia havia sido alvejada por uma cagada de pássaro teleguiada, que a atingira pesadamente no ombro esquerdo. Para evitar futuros constrangimentos, a norma ad hoc fora, portanto, instituída. A cena, que já era pitoresca, dos ministros e do plenário do STF instalados num rochedo, no meio do oceano Atlântico, ganhara agora contornos ainda mais preciosos. Tal como numa partida de tênis, os magistrados passaram então a ser escudados em seus assentos e o apelido de seus assistentes acabou por ganhar uma conotação inesperada.

A sessão da tarde, por sua vez, transcorreu sem nenhum incidente, sendo interrompida apenas para a reaplicação do filtro solar (recusada, no entanto, por Fux, Kássio Nunes e Alexandre de Moraes). Ao fim de um dia bastante produtivo de trabalho, os ministros, extenuados, se recolheram no Araguari e tiveram uma plácida noite de sono. O dia seguinte seria ainda mais solar e harmonioso que o anterior, tanto externa como internamente. Ainda bem cedo, Fux chegou à ilha, como previsto, para a prática de seus exercícios. Dessa vez, no entanto, foi mais bem-sucedido em suas tentativas lisonjeiras de se aproximar dos pesquisadores locais. Num gesto revestido de informalidade, mas levemente afetado, pediu à geóloga Tânia Mascarenhas, da Universidade Federal de Pernambuco, para se refrescar e se hidratar com sua mangueira, que a pesquisadora utilizava para lavar o alpendre da Estação Científica. A demagogia miúda funcionou, como de costume, e a solicitação do ministro foi prontamente atendida: lavou as mãos e o rosto, refrescou o cocoruto e a nuca e, tal como um labrador, sorveu gordas porções de água sem encostar a boca na mangueira, posicionando-a transversalmente em relação ao eixo do corpo.

Ao longo do dia tudo transcorreu com perfeição: as divergências surgidas no plenário se dissolveram com facilidade, transformando-se organicamente em sínteses consensuais. Os reparos nas falas dos colegas foram todos feitos com suavidade e de modo oblíquo, sempre robustecendo seus pontos fracos e apurando seus pontos fortes, sem nunca os embotar. A escuta era sincera e paciente, as críticas compromissadas e generosas, reduzindo as desconfianças sem com isso aumentar correlatamente a sensação de vulnerabilidade. A individualidade dos pontos de vista não implicava a fragmentação do debate, mas, ao contrário, ressaltava seu caráter complementar ― a polifonia se assentava, por fim, em bases genuinamente democráticas e não, como se costuma dizer, num mero modus vivendi, como um aglomerado de vozes antagônicas e inconciliáveis.

Depois de um mate gelado, acompanhado de sequilhos, recém assados ― elogiadíssimos por Rosa Weber, que após beliscar uns oito ganhou de presente um Tupperware cheio deles para levar ao navio ―, se iniciaram os embarques da volta. Logo após a partida do último bote com os assessores, entretanto, o tempo começou a virar, rapidamente. A apreensão se tornara então visível no semblante dos barqueiros e em sua comunicação tensa com o navio. Apenas o primeiro bote com os ministros, levando Kássio Nunes, Alexandre de Moraes e Edson Fachin, conseguiu realizar a travessia. Mas quase virou, no momento em que atracava no Araguari, fazendo com que as demais viagens fossem então suspensas e os ministros remanescentes conduzidos a um abrigo na parte alta da ilha, aos pés do farol.

Por conta da tempestade e do mar agitado, o navio da Marinha teve de se afastar do arquipélago, e os ministros, com o cair da noite, começaram a se ver forçados a pernoitar na ilha. Fux, no entanto, protestou contra a ideia, alegando ser possível ainda uma travessia, com o mar mais calmo, após a estiagem. Embora o ministro negasse, suspeitou-se no momento que a principal razão que o fazia querer voltar, mesmo sob condições não ideais, era o temor de que seu boneco de socos, levado pelos assessores, não fosse trazido a tempo no dia seguinte, comprometendo assim a realização de seus treinos ao acordar. A falta de luz natural, no entanto, tornava aquela missão arriscada e pouco recomendável ― por sua posição no globo, o sol se põe no arquipélago bastante cedo, ainda por volta das cinco horas da tarde, mergulhando-o depois disso na mais completa escuridão. Lewandowski, que desde o início tentava tranquilizar os colegas e chamá-los à razão (sobretudo Toffoli, que àquela altura estava verde e afônico), iniciou sutilmente um movimento entre os ministros em favor da permanência na ilha.

O cálculo que o magistrado fazia, naquele momento, era também de natureza política, embora só o tenha confidenciado, de modo desabrido, a Marco Aurélio, Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, numa rodinha: “Se um bote desses vira, o filho da puta nomeia mais três”. Ainda que nenhum dos ministros ousasse dizer, a imagem de Teori Zavascki, morto em acidente de avião há mais de quatro anos, vinha assaltando a memória de todos desde o repique do primeiro bote. Convencidos por Lewandowski de que uma noite de sono desconfortável, nos beliches da Estação Científica, não era nada, se comparada ao risco que o tombamento de um dos botes representava ao país e sobretudo àquela corte, os magistrados foram então conduzidos aos seus dormitórios, reformados e ampliados recentemente ― embora jamais se imaginasse instalar ali figuras tão egrégias.

Marco Aurélio logo defendeu a tese de que a prerrogativa dos embarques, por ordem de antiguidade, deveria ser aplicada também à ocupação dos beliches, sobretudo com respeito aos andares superiores ― em seu ver, mais valiosos e cobiçados. Carmen Lúcia e Rosa Weber, que já os haviam ocupado com ligeireza, o ignoraram solenemente. Gilmar Mendes, atento à movimentação das colegas, tentou copiá-las, sem que ninguém o visse, mas falhou miseravelmente. Depois, culpando o ciático por não conseguir escalar o beliche, o ministro afirmou, com dissimulação, não ter preferência por nenhum dos andares, podendo, portanto, ocupar uma das camas de baixo ― e qualificando, por fim, a proposta do colega decano de “caprichosa” e “exagerada”. Toffoli, catatônico, foi logo largado, como um saco de cimento, numa das camas inferiores, onde adormeceu de imediato. Lewandowski, Barroso e Fux externaram aos colegas, quase em uníssono, sua total indiferença com relação à ordem das camas, no que estavam sendo apenas sinceros.

Virando-se na direção de Barroso, Fux buscou então conciliar: “Fiquem as damas e os mais antigos nos andares superiores e nós, os “Luízes”, nos instalamos nos inferiores. E está tudo resolvido”. Marco Aurélio, afagado, sorriu com satisfação. Lewandowski deu de ombros e se encaminhou para uma das camas no andar de cima. Carmen Lúcia e Rosa Weber, sem recusar a oferta, fizeram questão de dizer a Fux, no entanto, que “a bonomia de Vossa Excelência não será aceita como gesto cavalheiresco, mas como reparação histórica”, rindo maliciosamente da expressão de confusão no rosto do colega. Divididas as camas e feitas as toaletes ― desta vez, Marco Aurélio não ousou impor regra alguma e a ordem dos banhos se deu de modo completamente espontâneo ―, os ministros, como num acampamento de férias, foram todos se deitar ― à exceção de Barroso, que, munido de um livro, se encarregou de apagar as luzes do dormitório antes de sair, em busca de um local adequado para sua leitura.


Suado e aturdido, Gilmar Mendes acordou subitamente de um pesadelo, no meio da madrugada, em apneia. Com as bochechas e os lábios dormentes, a respiração ainda ofegante e sentindo palpitações, o ministro caçou seus óculos ao lado da cama e, na ponta dos pés, se dirigiu para fora do quarto, tomando cuidado, no escuro, para não tropeçar e acordar seus colegas, que no momento dormiam profundamente. Já na cozinha, encheu de água um antigo copo de geleia ― que o lembrara, por um instante, dos copos bico-de-jaca de seu gabinete, em Brasília ― e adicionou uma pitada de açúcar. Ainda tentando se acalmar, saiu para o alpendre da Estação Científica, em busca de ar fresco.

O pesadelo que acometera o ministro naquela noite o vinha acometendo, seguidamente, há meses. Um enorme animal marinho, provavelmente um cetáceo, o engolia por inteiro, como um grande Tylenol, forçando-o a viver em seu interior. A identificação com a figura bíblica de Jonas, entretanto, repugnava o magistrado profundamente, o que só vinha a agravar seu sofrimento. Nos últimos tempos, apesar do persistente mal-estar, o pesadelo, no entanto, havia se convertido numa experiência estranhamente familiar e as cenas que se desenrolavam no ventre da baleia começaram, aos poucos, a se misturar com eventos do cotidiano. Esse passou a ser o local, por exemplo, em que o ministro tomava café com sua esposa, recebia seus convidados, assistia suas séries, ou, simplesmente, guardava suas gravatas e seus ternos de linho. Aos poucos, a baleia se tornara sua cidade, sua casa, a ponto de se sentir mais seguro dentro dela do que de um grande navio, como o Araguari. Desta vez, contudo, o pesadelo o acometera de modo distinto e com um desfecho até então inédito ― mas, até certo ponto, esperado e temido pelo ministro.

Uma luz branca, fortíssima, penetrava de súbito o interior da baleia, cegando Gilmar momentaneamente. Sabendo se tratar de um salvamento divino, o magistrado, contudo, era tomado de angústia e pavor infinitos, resistindo a ele com força. A possibilidade de se ver apartado daquele mundo medonho e hostil (porém já habitual) era insuportável, e a aflição que invadia o ministro começava a se manifestar agora fisicamente, como uma dor aguda no peito, que o impedia de respirar. Ao perceber, no entanto, que seria inútil continuar resistindo, Gilmar, por fim, se entregava resignado, dizendo, em tom de súplica e confissão: “Leva-me, Pai. Carrega em teus braços este Jonas arrependido”. Ao que ouvia então em resposta, mas numa voz estranhamente humana e familiar: “Vossa Excelência nunca foi Jonas. Não vê, Gilmar, que a baleia é você?”. Ao abrir os olhos, o ministro via seu colega Luís Roberto Barroso montado num cavalo branco, vestido (de modo resplandecente) com as roupas e as armas de São Jorge. Sua lança empunhada o atravessava na altura do ventre. Ao olhar para trás, Gilmar, trespassado, dava-se conta, no entanto, de que a ponta da arma era curva, como um anzol, e que suas pernas ― que acreditava estarem se agitando no ar, enquanto era puxado para fora ― se confundiam, na verdade, com a língua do cetáceo, que se debatia furiosamente, em consonância a seus comandos cerebrais.

Ao sair para o alpendre, ainda bastante atordoado pelo desfecho do sonho, o ministro deu de cara então com a bióloga Denise Freitas, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, fumando um baseado da grossura de sua caneta Montblanc. Diante do pânico da pesquisadora, estampado em seu rosto, Gilmar se apressou em dizer, num tom ao mesmo tempo descontraído e tranquilizador: “Relaxe, minha filha, eu sou ministro do Supremo, não sou agente da PF. Além do mais, não sou moralista. É só não encostar no meu ‘feudinho’ do Mato Grosso e você vai ver que eu sou até progressista”. A bióloga riu frouxamente, apesar da tensão e do susto residuais, e num gesto pouco refletido ofereceu o cigarro a Gilmar, que o aceitou, sem cerimônias ― babando, contudo, no baseado. Enquanto fumavam, Gilmar se mostrou genuinamente interessado pela pesquisa da jovem, que lhe explicava, com dedicação, que para a maior parte das espécies marinhas o arquipélago funcionava como um enorme restaurante de beira de estrada, em que paravam apenas para se reabastecer de alimentos.

Quando a conversa já ia se encaminhando para o fim, Gilmar perguntou, distraído: “Me diga uma coisa, menina, um bando de cientistas e de marinheiros, no meio do nada, por semanas… O que vocês fazem, afinal, para se divertir por aqui?”. Denise, não se sabe se por efeito da droga ou se pela desinibição que a cena insólita lhe havia inesperadamente incutido, disse, sem pestanejar (enquanto soprava uma espessa fumaça no ar, com a voz tipicamente arquejante): “Maconha e pente, ministro”, gargalhando de modo debochado em seguida, sobretudo por conta da expressão de confusão no rosto do magistrado ― que sairia do encontro se perguntando, afinal, “que tipo de maconheiros são estes, obcecados em pentear os cabelos?”, sem suspeitar da conotação sexual que a expressão adquirira no funk carioca.

Ao invés de retornar diretamente ao seu dormitório, Gilmar decidiu antes caminhar um pouco sobre as pedras, admirando em silêncio o céu densamente estrelado, enquanto buscava ainda colocar em ordem o redemoinho de ideias em que havia se convertido sua cabeça. Alguns metros adiante, no entanto, o ministro ouviu um choro intenso e abafado, que o retirou do estado meditabundo em que se encontrava, interrompendo seu exercício peripatético e inspirando-lhe, ademais, um sentimento de genuína comiseração no peito. Contornando um pequeno rochedo, Gilmar deparou com o colega Luís Roberto Barroso, em posição fetal, agarrado a uma garrafa de single malt, desfalcada em aproximadamente dois terços. “O que é isso, Roberto?!”, deixou escapar o ministro, genuinamente surpreso e apreensivo com a cena. Levemente desconcertado, mas mantendo certa altivez, Barroso buscou se aprumar em seus trajes de dormir improvisados, enquanto estancava o choro e secava suas lágrimas na manga da camiseta.

“Não estou legal…”, disse Barroso, já sentado nos ísquios, mas com a cabeça ainda baixa, escorada por uma das mãos, que, massageando o cenho, encobria parcialmente seu rosto. “Ninguém está!”, replicou Gilmar, indicando ao colega, com um gesto expansivo, que se sentaria ao seu lado, mesmo sem ter sido convidado. Barroso, não fazendo menção de impedi-lo, chegou-se um pouco para o lado, e, depois de um cutucão no braço, passou ao colega a garrafa com o resto de uísque ― que, apesar do esforço, não havia conseguido terminar. Enquanto bebia, Gilmar começou um discurso inoportuno, no início, mas que, em algum momento, se endireitou, ganhou vulto e até mesmo algumas notas de grandiloquência. Em linhas gerais, dizia o magistrado que “vivemos um momento sinistro, Roberto! Precisamos, mais do que nunca, estar unidos, apesar das mágoas e das diferenças. Este é o momento de construir pontes ― e não de erguer muros. É o momento de nos darmos as mãos, de repactuarmos a sociedade brasileira entorno de uma agenda de solidariedade, frente à truculência e ao obscurantismo protofascistas”.

O tom melodramático da fala, somado ao efeito do álcool, fez vibrar, apesar de sua falta de brilho, as cordas profundas do coração de Barroso. O choro, que já havia cessado, retornou desta vez com violência, destampando comportas de sua alma há muito tempo fechadas. A emoção se permitiu manifestar em forma de gratidão: Barroso lembrou do período em que enfrentou um câncer de esôfago bastante agressivo ― quando ainda era procurador do Estado, no Rio de Janeiro ― e da ligação, emocionada, que Gilmar lhe fizera na época. Ao ouvi-lo, foi a vez do colega desatar a chorar ― e fazer uma confissão inesperada. Com a voz embargada, disse o ministro: “de todos nós, Roberto, você é claramente o mais estudado, o mais refinado intelectualmente. O modo como emposta a voz, como constrói as frases e fundamenta os votos, com elegância e precisão. O Supremo precisava de você, cara! Sua cura foi salvamento divino, disso não tenho a menor dúvida. Eu e o Britto sempre soubemos”, concluiu Gilmar, fazendo referência ao ex-ministro Carlos Ayres Britto, que, na época, ao saber da doença de Barroso, cuidou de fazer o contato entre ele e o médium João de Deus, a quem até hoje o ministro credita, em parte, sua cura.

Surpreso e verdadeiramente tocado com a fala de Gilmar, Barroso baixou de vez a guarda (ou o que havia sobrado dela, aquilo que o álcool ainda não havia dissolvido). Foi sua vez, então, de confessar sua admiração secreta pelo colega: “E de que vale isto, Gilmar, num país como o Brasil? Erudição é treino, vaidade, prática solitária. Combina com os carpetes dos anfiteatros, com as palestras que dou em Stanford, mas não com a realpolitik de Brasília. Nisso você é um bruxo. Insuperável. E tem conseguido defender a corte muito mais do que eu. Meu puritanismo serve para a escrita empolada de livros, mas não para fazer política, mudar vidas. É preciso ser um pouco gangster para lidar com os gangsters…”, disse o ministro, marcando a pronúncia americana das palavras em inglês. Gilmar riu. “É verdade, prosseguiu Barroso, às vezes fico pensando: no frigir dos ovos, talvez valha mais um ministro meio ‘porta de cadeia’, como o Alexandre, do que um de perfil técnico e garantista. Vai barrar a nomeação de um Ramagem e seguramente não vai terminar como o Teori…”

“Não seja tão severo com você mesmo”, replicou Gilmar. “Você tem uma trajetória, cara, uma história muito bonita. E não é verdade, afinal, que essa militância, mais discreta e paciente, não surta efeito algum, sobretudo a longo prazo. Há algo daquilo que fazemos que verdadeiramente fica, embora sua circulação e modo de apreensão não estejam diretamente sob nosso controle.” Os magistrados, chorosos, se abraçaram. O afeto corporal intensificou o choro e seu efeito terapêutico. Em meio aos soluços, fragmentos de palavras e resquícios de mágoa confundidos com admiração continuaram a ser expectorados. “Você tem um legado, cara…” “Você tem habilidade política, jogo de cintura…” “Você fala bem, escreve livros…” “Você sabe se comunicar, pautar a imprensa…” Barroso, visivelmente mais abalado, chorava de cabeça baixa, apoiado no ombro do colega, que o consolava. Gilmar, levado pela emoção e pelo calor do momento, ergueu, num gesto simbólico, a cabeça de Barroso, beijando-lhe a testa com carinho fraterno.

Com as bochechas coladas, os rostos cada vez mais próximos e os dispositivos de coerção mental cada vez mais distantes ou inoperantes, os corpos dos ministros foram aos poucos assumindo o controle da situação, guiando, instintivamente, cada um de seus gestos e movimentos. O ritmo da respiração mudou, a frequência e a intensidade dos batimentos cardíacos também. Os lábios, magnetizados, acabaram por se tocar, catalisando o desejo que se acumulava fisicamente. O atrito entre as línguas, lubrificadas pelo álcool, a saliva e o choro, estimulou a aproximação das demais partes do corpo: tórax, abdômen e púbis gradualmente se encontraram, pressionando-se mutuamente, ora de modo suave ora de modo intenso. Enquanto isso, as mãos e os braços se ocupavam de manter a tensão e de imprimir velocidade ao embalo dos corpos, sucessivamente retardando, sustentando e realizando seus impulsos e desejos.

Entregues ao prazer, os ministros puderam esquecer momentaneamente os problemas e aflições que os dominavam há pouco. As carícias progrediam, acompanhadas e atiçadas pela exploração mútua dos corpos. Seus beijos tórridos foram, contudo, interrompidos por um grito de dor primitivo. Barroso, com a boca ensanguentada, emitia agora um berro gutural, que rasgava o silêncio da madrugada. Gilmar, agindo por reflexo, havia fechado instintivamente a mandíbula, aguilhoando a língua do colega com os incisivos. Em meio à excitação, sua mente, no entanto, fora assaltada pela lembrança pavorosa do pesadelo recente, o que acabou desencadeando a contração involuntária de seus músculos mastigatórios. Ainda tentando dimensionar a gravidade da situação, Gilmar buscava, desesperadamente, acalmar e sobretudo silenciar o colega, que com seus gritos acabaria fatalmente acordando toda a população da ilha.

Barroso, no entanto, se esquivava das investidas de Gilmar e continuava a urrar de dor. Não tardou muito para que as luzes da Estação Científica se acendessem e todos seus habitantes se pusessem para fora, a procurar a origem dos gritos. Quando as primeiras pessoas chegaram ao local, encontraram um Barroso transtornado, pressionando a língua ferida com a camiseta e dizendo, com dificuldade: “Ele me mordeu, ele me mordeu!”. Gilmar, com os olhos arregalados, se dedicava apenas a encarar o chão, em silêncio, sentado com as pernas cruzadas e a cabeça apoiada nas duas mãos, em concha. Depois, quando conseguiu articular algumas frases, inventou uma história improvável, que não convenceu a ninguém. Afirmou ter encontrado o colega desacordado, ao lado da garrafa de uísque e numa tentativa atrapalhada de respiração boca a boca o acidente havia então ocorrido. “Eu sofro muito com a ATM, deve ter sido por isso…”

No dia seguinte, bem cedo ― depois do atendimento médico adequado, que lhe rendeu três pontos na língua ―, Barroso, movido por um desejo de transparência republicana (mesmo se tratando de um assunto da vida privada), relatou em detalhes, aos colegas que ousaram lhe perguntar, o que de fato havia ocorrido entre ele e Gilmar na noite anterior. A surpresa e o constrangimento contagiaram os colegas, que, solidários, lhe prometeram sigilo em relação aos acontecimentos ― um sigilo, no entanto, não solicitado e em relação ao qual o ministro se manteria completamente indiferente. Gilmar, por outro lado, não tocou mais no assunto, nem no restante do tempo em que ainda permaneceram na ilha (por conta do incidente, o retorno ao continente foi antecipado), nem depois do retorno da comitiva a Brasília. Barroso e os colegas tampouco o procuraram para conversar, respeitando diligentemente sua opção por ficar em silêncio e por impor uma espécie de veto tácito ao assunto ― mesmo depois da publicação de uma nota, que fazia alusão ao episódio (de maneira bastante conjectural), na imprensa.


Gilmar Mendes, mal informado por seus assessores, acreditou que o ministro Barroso (que, em sua opinião, já havia agido com indesculpável indiscrição junto aos colegas de corte) havia confirmado também o episódio na imprensa (quando, na verdade, ele não havia), e, como consequência, deu uma declaração apressada (de cariz abertamente homofóbico) aos jornalistas, em que atestava o conteúdo da nota. Segundo sua versão, entretanto, a iniciativa para o beijo havia partido somente de Barroso, “esse pervertido imparável!”, como repetiu, ao menos oito vezes, em desabafos a amigos próximos. “Eu tentei repeli-lo, eu tentei repeli-lo!”, dizia o ministro, envergonhado e aos prantos, em estado de verdadeiro desamparo juvenil. Uma vez confirmado o episódio por uma das partes, Barroso se limitou a escrever uma nota seca, em que dizia, com dignidade, que “não havia nada de que se envergonhar ali, a não ser o fato de ter tido a experiência tão tarde e com sujeito tão repugnante.”

As redes sociais enlouqueceram com a declaração de Barroso. Uma enxurrada de memes, montagens e hashtags foi produzida em curto espaço de tempo. Os perfis no Instagram e páginas no Facebook de coletivos e militantes LGBT comemoraram a nota progressista do ministro como um gol em final de Copa do Mundo. Sua declaração, ademais, ganhou repercussão internacional, sendo saudada por personalidades que iam desde o historiador James Green até a popstar Nicki Minaj. Um trio elétrico, batizado de “Barroso, amigo das yags”, foi prometido pela Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo para o ano seguinte, se a situação sanitária permitisse. As máscaras com o rosto dos ministros foram as mais vendidas no retorno triunfal do carnaval, que viria a ocorrer, de modo oficial e normalizado, apenas em 2023, coincidindo com o retorno, igualmente celebrado, de Luís Inácio Lula da Silva à presidência da República ― Bolsonaro, derrotado no pleito, não compareceria à cerimônia de posse e os petistas, em momento de lucidez, proporiam que Dilma Rousseff fizesse a transferência da faixa (o que seria, naturalmente, barrado pelo STF, sob a alegação precária de ferir a liturgia do cerimonial).


Sozinho em seu gabinete, Gilmar encheu um de seus copos bico-de-jaca (enfileirados cuidadosamente sobre uma antiga bandeja de prata) de gelo e uísque. Com vertigem e nauseado, o ministro procurou se reclinar em sua cadeira de couro, contemplando, pelas frestas da persiana, a vista entrecortada de sua janela. Seu semblante apático contrastava, no entanto, com a tempestade que lhe ocorria internamente. Massageando o peito por cima do paletó, na altura do coração, Gilmar encontrou, em seu bolso, uma folha de caderno dobrada. Ao abri-la, deparou com um poema, bastante singelo, escrito a lápis numa caligrafia um pouco infantil.

Vinde e vede o céu florir
Extasiado pela visão no mar
Emoldurando de luz o meu sonhar
Uma construção mágica a se exibir
Vinde e vede o sol sorrir
Colorindo de raios o rochedo
No oceano azul de voraz sossego
Monumento divino a reluzir
Vinde e vede a inóspita beleza
Povoar-se de divinas emoções
A extasiados e perplexos guardiões
Ostentando sua infinita realeza

Antes de embarcar no Araguari, na viagem de volta ao continente, Gilmar fora abordado por um eletricista da Marinha, de nome Sidney, que lhe entregara o poema de presente, pedindo ajuda, ademais, para a publicação de seu livro de poesias. Sem jeito de recusar, o magistrado apenas agradeceu, constrangido, a lembrança (que, em seu ver, tinha ares de exotismo), metendo em seguida o papel dobrado no bolso do paletó, balançando a cabeça positivamente, sem dizer nada, e exibindo um discreto sorriso amarelo no rosto. A lembrança da ocasião, depurada pela simplicidade dos versos (que fazia ecoar, aliás, a simplicidade dos modos do poeta), tocou fundamente o ministro, que, comovido, se pôs a chorar de modo bastante triste, mas silencioso e tranquilo. Recomposto, enxugou as lágrimas com um lenço de algodão, tomou novamente o poema em mãos e, sem emoção, amassou-o e jogou-o no lixo, dizendo a si mesmo, mentalmente (enquanto alisava sua gravata de seda junto ao corpo): “Jonas é o caralho…”