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As palavras e as coisas

Escola Estadual Ministro Miguel Mendonça, Contagem.

Clube. Foto: Desali.

A manhã do dia 31 de Março de 2024 nasceu comum, com o céu azul tingido por esparsas nuvens brancas. Havia chovido nos dois dias anteriores e a temperatura era amena. No entanto, essa mesma manhã era também, digamos, especial: depois de longa interrupção, eram retomadas as aulas nas escolas públicas de Minas Gerais. A pandemia causada pela Covid-19 ainda se fazia presente, com informações de mortos e internados saltando aqui e acolá, mas o país já estava tomado por uma insólita sensação de calmaria, como se o pior (sem que fosse possível definir com precisão ao que corresponderia o “pior”) já houvesse passado. A Escola Estadual Ministro Miguel Mendonça, no bairro Nacional, periferia de Contagem, abria as suas portas.

Às 06h27, Emanuel, zelador e porteiro da escola, abriu as duas enferrujadas abas metálicas do portão e não havia ninguém à espera. Os que possuíam boa memória se lembrariam da algazarra anterior. Crianças e adolescentes chegando de todas as direções da rua Benjamin Constant, escorrendo sonolentas desde a praça. A mercearia, aberta desde os primeiros sinais do dia, abrigava a fila de meninos e meninas comprando chicletes e pipocas doces artificiais. Na calçada, esperando o momento de entrar, ou degustando um café improvisado, os alunos se misturavam aos idosos da fila do posto de saúde. Agora, apesar da volta às aulas ser fato impactante, as ruas amanheceram calmas. Em verdade, fazia já alguns anos que as ruas estavam silenciosas. Desertas, a um olhar mais atento.

Emanuel esperou ainda alguns minutos até que chegassem os primeiros alunos. Vinham aos poucos, em número ínfimo comparado a antes. De mochilas nas costas, cumprimentavam o porteiro, que pedia para que esperassem na escada. Ainda não havia chegado ninguém da direção e era preciso receber as instruções: ninguém sabia para qual sala ir nem quais aulas ou atividades seriam realizadas. Pouco a pouco mais alunos chegavam e se amontoavam na escada. De diferentes idades, aparentando serem cada um de uma turma diferente. Já perto das 07h00 apareceu Sandro, o professor de Português, comendo uma maçã e carregando uma bolsa. Perguntou a Emanuel sobre a diretora e o porteiro disse não haver mais ninguém na escola. Todos que chegaram estavam ali, na escada, esperando. Emanuel disse não saber sequer se a diretoria anterior seria mantida: quem lhe telefonara convocando para o trabalho fora a Secretaria de Educação.

O professor anunciou que iria vasculhar a escola à procura de alguma instrução. Passou pelas salas administrativas do térreo, abriu as portas, e, de fato, não encontrou ninguém. Percebeu algumas anotações impressas coladas atrás das portas ou abandonadas em cima das mesas. Todas datadas de 2019 e 2020. Incomodado, Sandro subiu a rampa de acesso ao segundo andar, determinado a prosseguir com a busca na parte que abrigava os refeitórios e as salas do ensino médio. Ao chegar no limiar da rampa, já perto da quadra de futebol, percebeu algo estranho, grande, razoavelmente alto, tomar a sua visão. Continuou a subida com passos mais firmes, a respiração revelando o esforço, até abandonar o piso inclinado e atingir o pátio que conduzia à quadra. Ainda cansado, distinguiu melhor o que lhe chamava a atenção: uma grande estrutura com cadeiras cromadas e assentos de couro, um carpete com cores distintas, à semelhança de coisa cara, e um grande balcão em forma de U fazendo as vezes de mesa, estava posicionado bem no meio da quadra, à igual distância de cada uma das traves amarronzadas pela ferrugem.

Atônito, Sandro caminhou em direção à estrutura. De perto, notou um púlpito e tudo rescendia a um espaço de debates e reuniões. Analisou o carpete e se agachou para tocar o tecido. Era macio e o professor achou a textura aprazível. Caminhava seguindo a forma do enorme balcão quando escutou os ruídos dos alunos subindo a rampa. Se dirigiu até o limite do carpete, a faixa onde se vê a divisão entre o tecido de cor mostarda e o chão desbotado da quadra, à espera de que a turba cumprisse o caminho. Emanuel estava junto deles e não havia muitos mais do que quando subira. Ao atingir o fim da rampa, os alunos mais novos, as crianças, percebiam a estrutura assombrosa e o professor de pé, participando da composição, e então começavam a correr, excitadas por aquilo que lhes parecia uma novidade. Os alunos chegaram até Sandro e lhe perguntaram o que era aquela estrutura toda. O professor não fazia ideia. Perguntaram também a Emanuel, que respondeu ter visto a construção assim que chegou, mas não sabia a procedência. O porteiro imaginava ser um palco para um discurso da diretora, uma celebração da volta às aulas, algo “do governo”, mas que não tinha recebido nenhuma informação. Ninguém sabia de nada.

Sandro, pediu, então, que os alunos esperassem ali, no balcão. Ressaltou para que tomassem cuidado com o espaço, sobretudo com as cadeiras. Ninguém sabia a quem pertencia tudo aquilo. Os alunos se espalharam pela estrutura, distribuindo-se sem ordem nem padrão. Tímidos, sem a disposição para apropriar-se das coisas, olhavam tudo como móvel de casa alheia. Alguns poucos, mais desinibidos, sentavam-se nas cadeiras e percorriam o espaço mais livremente. Um pequeno grupo com três alunos amigos compartilhavam um pacote de salgadinhos no centro do carpete. O professor e o porteiro seguiram até a biblioteca, mas não conseguiram abri-la. Tentaram também abrir cada uma das seis salas de aula da parte superior. Sem sucesso: estavam trancadas. Emanuel, o porteiro, disse não ter as chaves e, então Sandro saltou a grade ao lado da última sala, para ganhar acesso ao corredor vizinho às janelas das salas. O professor caminhava olhando através dos vidros. As salas estavam sujas e vazias, como em 2020. Sandro tentou abrir as janelas, mas estavam fechadas com cadeados, por dentro. Era impossível: não havia maneira de entrar nas salas, nem ninguém que os ajudasse.

O professor e o porteiro voltaram à quadra. Os alunos já ocupavam a estrutura montada com mais desenvoltura, mas ao perceberem o retorno do professor, fingiram se comportar. O professor perguntou aos alunos onde estariam seus colegas. Os jovens estudantes dão notícias esparsas e incertas: uns haviam se mudado, outros abandonado a escola, outros até mesmo haviam sido presos. E havia aqueles que estavam mortos. O porteiro também emenda a sua gazeta e relata mortes e desaparecimentos de conhecidos. A cada revelação sobre algum aluno ou professor ausente crescia a certeza de que ali estavam todos, os que sobraram. Talvez aparecesse mais gente. Mas ninguém afirmava nenhuma certeza. Naquele momento, eles eram a escola.

Emanuel mencionou que o horário usual de aula já havia começado há 10 minutos e Sandro propôs formar uma turma única, com todos os alunos presentes: teriam aula, era o motivo de estarem ali. Como as salas estavam trancadas, a aula ocorreria ali mesmo, naquela estrutura. Os alunos se assustaram, mas alguns gostaram da ideia: era uma novidade. Depois de certo alvoroço, Jonatha, aluno do ensino fundamental, 12 anos de idade, fez finalmente uma pergunta básica, até então sufocada pela excitação: “com o que se parece isso aqui?”. O professor repassou a questão à turma e iniciou-se uma ronda de especulações: um palco de show, uma mesa de buffet caro, uma sala de reuniões, um consultório médico muito grande, a sala de imprensa onde se anunciam contratações de jogadores de futebol, o lugar de leilões do Detran, um tribunal. Ravi, jovem energético, multi repetente, afirmou com veemência que aquilo se parecia com um tribunal: “já vi coisa igual isso aqui”. Alguns colegas fizeram troça, lembrando que o colega já havia sido preso. Ravi, sem se alterar, disse já ter visto tribunais em séries e em filmes. Era aquilo ali. Alguns concordam e Jonatha volta a falar: “parece o lugar onde aqueles velhos de gravata falavam na televisão antigamente”. A lembrança de Jonatha despertou a memória dos alunos que, em acordo com o colega, lembraram-se do tribunal federal onde os velhos de antes falavam difícil e prendiam pessoas importantes. Sandro, que acompanhava a discussão com certo gosto, concordou com os alunos e disse que a estrutura, de fato, se parecia muito com o antigo Superior Tribunal Federal, a última instância de julgamentos no Brasil, onde os juízes superiores, os mais poderosos do país, decidiam sobre questões fundamentais, de leis a processos penais.

Sandro diz que, como a aula transcorreria em um tribunal, eles deviam realizar uma sessão de julgamento. Ravi não gostou da ideia e perguntou o que, afinal, o professor queria julgar. Natália, aluna do ensino médio, uma das mais velhas presentes, reclamou, e disse que julgar, naquele momento, equivalia à perseguição. Sandro respondeu aos reclamantes: não se trataria de julgar ninguém. A vida de cada um não interessava naquele momento. Ele era professor de português e queria dar aula. Se dirigindo à turma toda, Sandro revelou a sua ideia: fazer da aula um julgamento do idioma. Eles iriam decidir e votar sobre questões da língua, do que falam. O professor desenvolve a proposta: “Vamos decidir sobre o significado das palavras. Se o que a gente aprendeu sobre elas está certo ou não”. Completou afirmando que ele sentia existir uma diferença entre o sentido e a realidade das palavras no Brasil, entre o que era vivido e o ensinado. O professor, propôs, portanto, organizar o tribunal entre as palavras e as coisas. A garotada, sonolenta e sem muita excitação, topou.

O professor perguntou aos alunos se havia alguma palavra da qual eles achavam o significado impreciso ou confuso. Uma aluna, Camila, respondeu não entender direito o que significava “rua”. Mais ainda, ela menciona se sentir confusa para entender a diferença entre rua, avenida ou alameda. Outros alunos concordaram. Pensavam que a diferença de nomeação se devia à extensão ou largura das vias, mas que costumeiramente a relação era sabotada: havia vias enormes denominadas como ruas e vias estreitas nomeadas como avenidas. Sandro concordou que essa era uma palavra imprecisa, que o uso por vezes abandonava um padrão. O professor mencionou que, por vezes, as nomenclaturas são antigas, vem do momento em que a via foi criada e que, portanto, uma rua pode ter nascido estreita e, com o passar do tempo, foi se alargando e ganhando tamanho a ponto de ser, de fato, uma avenida. Sandro ressaltou que esse exemplo mostrava como as palavras têm história e que os seus significados dependem do momento em que são proferidas. Uma rua em 1910 pode ser uma avenida em 2014. Os alunos concordaram com o professor e um breve consenso se formou: uma rua deveria ser a via de pequeno ou médio porte, sem separação de tráfico interno e sem canteiros de divisão. Qualquer trilha com organização de duas ou mais pistas de circulação e que fosse considerada grande à percepção visual já mereceria a alcunha de avenida.

A discussão despertou os alunos que mencionaram outras palavras “complicadas” de definir. Jennifer, aluna da oitava série, mencionou não captar o conceito da palavra “planta”. Seria uma palavra reservada ao vegetal sem tronco? Aos vegetais de pequeno porte? Uma planta poderia dar frutos ou seria composta exclusivamente por folhas? Pode-se comer ou não as plantas? A discussão do tópico foi intensa. A tentativa de definição adveio da memória das coisas concretas e, majoritariamente, formou-se o consenso de que as samambaias, as espadas de São Jorge e as damas da noite eram exemplos de planta. A partir dos exemplos tentou-se estabelecer critérios para a definição do conceito: eram todas de pequeno porte, com estrutura fibrosa — sem madeira — e tinha função ornamental, sem gerar expectativa de exploração. Eram “coisa pra deixar quieta”, definiu Camila sob a ampla concordância dos colegas. Diante da classificação dos alunos, se o vegetal fosse grande ou “tivesse madeira”, seria considerado uma árvore. Se fosse de comer ou gerasse frutos comestíveis, seriam considerados legumes ou “folhas” — e, confusos pela tarefa classificatória, não investiram muito em definir essa outra palavra. O estabelecimento do conceito “folha” foi também responsável por apaziguar a celeuma em torno da alface que quase foi considerada uma planta pelos alunos (houve quem, inclusive, ressaltasse a sua qualidade estética e defendesse a sua função decorativa). Para fins de precisão, também se estabeleceu que o que “entrasse pra dentro da terra” seria considerado raiz. As plantas, portanto, podiam ter estrutura sólida, caules rígidos e porte vertical. Foi considerado que plantas também poderiam ter flores e raízes (desde que, mesmo enraizadas, mantivesse parte considerável de sua estrutura pra fora do solo). Quando o acordo de definição estava próximo, William, infante aluno da terceira série, chocou os colegas ao perguntar se maconha era planta. Houve risos e Sandro precisou interferir para bloquear a irritação de Geiza, evangélica fervorosa, mais preocupada com a origem da indagação do coleguinha do que com a tarefa em si. O professor retomou a discussão, relembrou os tópicos elencados e concluiu, junto aos alunos, que a maconha, sim, era uma planta. William estava inspirado e perguntou, então, porque se podia fumar a maconha e não a samambaia, e porque uma era proibida e outra não. Diante da nova algazarra, Sandro propôs incluir a propriedade de ser queimado para fins recreativos como uma das qualidades das plantas junto dos outros itens anteriormente elencados.

Como Geiza e Jonatha divergiam sobre o que poderia ser considerado ornamental, o professor decidiu abrir uma votação e deu a eles a chance de proferirem seus votos em público. Segundo Jonatha, ornamental era tudo aquilo para o qual não era necessário pagar para olhar ou desfrutar. Geiza investia contra a classificação de maconha como planta, afinal, lembrava, o desfrute da chamada “erva” dependia de pagamento, de compra. Jonatha cativou os colegas ao mencionar que a compra da maconha era gerada por uma questão legal: a sua proibição inibia as pessoas de a plantarem e, assim, os apreciadores eram obrigados a pagar aos que são autorizados ou que decidem o correr o risco do cultivo. O estudante arrematou dizendo que a colega não entendia a maconha como planta por aderir à circunstância e não à coisa: era a conjuntura histórica, e não sua estrutura física e biológica, que impedia a maconha de se efetuar plenamente como planta perante a sociedade. Geiza não soube contestar tal afirmação e tal silêncio se refletiu em sua derrota em plenário. Sandro, sem esconder a satisfação em observar o avanço da pauta, propôs seguir o jogo, ou melhor, o julgamento.

O professor perguntou se havia mais alguma palavra a ser esclarecida e um dos alunos, Gael, mencionou a “solidariedade”. Sandro se intrigou com a proposta e pediu que o aluno detalhasse a imprecisão. Gael respondeu não entender se a solidariedade tem um limite, no sentido de ser extensiva a todos, ou se cada um poderia regular até quais pessoas ou situações, até onde, portanto, aplicaria a sua solidariedade. O professor perguntou ao aluno se ele próprio sentia que sua solidariedade tinha algum limite, e o jovem respondeu não ter solidariedade com pessoas ruins, por exemplo. A maioria concordou com o colega, mas Sandro, sentindo que o tema seria sensível, sugeriu voltar atrás. Perguntou à turma se todos tinham uma definição de solidariedade formada. Alguns alunos responderam e, para surpresa do professor, sem muita dificuldade, formaram um consenso de que solidariedade se referiria a um sentimento de aproximação, à identificação, com o outro. Ravi lembrou o aspecto prático da palavra, que poderia descrever também ações e não apenas sentimentos, e a turma concordou com ele. Mas, mesmo a resolução do caso sem necessidade de plenário, não apaziguou os ânimos. Alguns alunos lembraram a questão colocada e sintetizaram o problema: que outro era esse com o qual nos solidarizamos? Sandro lembrou que nada na palavra parecia indicar que o sentimento era obrigatório, mas Geiza afirmou que, mesmo sem ser obrigatório, ele era necessário, marcando negativamente quem o recusasse. Era, então, importante esmiuçar uma palavra que representa um sentimento tão forte para todos, algo fundamental “desde Cristo”, como completou Camila. Sandro então, retomou a investigação provocando. Perguntou se eles achavam que pessoas ruins, então, não mereciam solidariedade. Só um aluno apresentou exceção: Ravi, que disse depender da situação. O professor lhe conferiu a fala e Ravi sustentou a defesa de que uma pessoa má em um contexto poderia se comportar bem em outro. E o contrário também: conheceu pessoas tidas e referidas como exemplos que em determinada situação se comportaram como bárbaros monstros.

A intervenção de Ravi mudou o jogo e os alunos se tornaram pensativos. Gael pede a palavra e argumenta que a maldade é uma mancha indelével. Quem fez o mal uma vez, por mais que aja bem posteriormente, está com o espírito marcado, ensombrado. Só o perdão da vítima poderia reparar o mal cometido. A celeuma dividiu o grupo: uns concordando com Gael, argumentaram que é preciso conter a intolerância “sem massagem”. Outros apoiavam Ravi, apontando o argumento de Gael como extremo. O professor retomou o tema da aula e pediu para ambos formularem as suas definições de solidariedade. Gael começou e disse que, pra ele, solidariedade seria então a identificação com a humanidade do outro, devendo tal sentimento estar associado a pessoas dignas de serem reconhecidas como humanas, e, portanto censurável para aqueles que envergonhassem o gênero humano. Ravi retrucou com retórica deslizante. Começou concordando com a definição do colega: a solidariedade, de fato, deveria ser definida como o reconhecimento da humanidade entre nós, seres humanos. E, por isso mesmo, a humanidade deveria ser reconhecida como falha, imperfeita, passível de erros, perdões e retomadas. Ravi sustentou que, por mais que a solidariedade varie de acordo com a consciência e a situação, era preciso estabelecer um limiar mínimo, situações a partir das quais a solidariedade se afirmaria independente das pessoas ou circunstâncias. Para Ravi, esse patamar básico seria o sofrimento indigno, o açoite recebido de maneira imerecida, e detalhou: “o certo que sofre, sempre merece nossa solidariedade. Mas o errado que ganha um castigo acima do erro que cometeu, merece nossa solidariedade também”.

O professor, percebendo o dilema, levou a questão a plenário. Com margem apertada, Ravi venceu a disputa. Geiza, surpreendentemente, votou com Ravi e pediu licença para expor seu voto. Ela concordava que a solidariedade era o reconhecimento de humanidade naqueles que sofrem. Segundo Geiza, sofrer era atividade comum a todos os vivos. O cachorro, o tigre e a girafa também sofriam. Pela sua observação na vida concreta (e também nos documentários sobre a vida animal, fez questão de pontuar), até mesmo os animais tidos como irracionais reconheciam situações em que o semelhante sofria e corriam em socorro, quando possível. Geiza sentia, portanto, que a zebra, o lince e o alce tinham solidariedade, mesmo que animal, puramente instintiva e reservada à mera sobrevivência. Lhe parecia uma vergonha que os lobos se auxiliassem a correr dos predadores, e os humanos não se ajudassem a fugir da miséria.

Sandro percebeu uma brecha aberta pela reflexão dos alunos e revolveu investigar mais a fundo. Anunciou à turma que a discussão realizada por eles o lembrou de outra palavra “complicada”: direitos. O professor perguntou se todos tinham segurança sobre o que significava a palavra. Natália, que já havia votado com Gael na disputa anterior, desenvolveu o argumento seguindo uma linha semelhante, e disse que o problema da definição dos direitos era, também, a sua extrema extensão. Natália reconhecia que algumas coisas deveriam ser básicas, comuns e acessíveis a todos. Água, comida, médico e escola representariam os direitos para ela. Mas ressaltou também que o acesso a tais benesses não deveria ser automático. Havia que merecer. Sandro perguntou se, para ela, o merecimento significava também ser uma boa pessoa, mas a aluna respondeu desviando da moral: como o acesso a esses direitos era uma oferta da sociedade, só aqueles que contribuíssem pro todo mereciam desfrutar do que a própria sociedade lhe proveria. “Se a sociedade alimenta, então devemos todos alimentar a sociedade”. William, o jovem intrigando com as plantas recreativas, fez uma ponderação importante: havia aqueles cuja contribuição era repelida pela sociedade, os que eram jogados sistematicamente para a margem, pra fora da convivência social. Ravi pediu a palavra e disse entender o professor: os direitos estavam, sim, relacionados à solidariedade. No sentido de que a solidariedade era o sentimento despertado pela indignidade gerada pela ausência de direitos. Num mundo com direitos respeitados, completou o jovem, a solidariedade seria quase supérflua. Sandro achou a afirmação um tanto exagerada, mas afirmou ter gostado do argumento de Ravi. O professor pediu que ele detalhasse, então, a relação entre direitos e dignidade. O jovem proclamou que os direitos seriam uma garantia de que o ser humano não seria igualado ao bicho. Para ele, os direitos eram um pacto pela garantia da existência humana digna, um acordo entre os homens e mulheres para prover o mínimo de condições para alguém viver. E por ser o mínimo não seria justo exigir nada em troca: “seria como se Deus cobrasse pelo aluguel dos nossos pulmões”, finalizou o estudante.

A defesa apaixonada de Ravi teve impacto. Gael pediu a palavra para fazer um aparte. Gael agradeceu ao colega e afirmou concordar com o exposto por Ravi. Estava agora claro: direitos e solidariedade são palavras-chão, formam o solo para que possamos caminhar. Garantir o mínimo de condições de vida e nos compadecer pela indignidade sofrida pelo outro são, de fato, o básico para definição da espécie. Um pouco envergonhado, Gael diz ter pensado errado. Se lembrou de quando cortaram a luz de sua casa e passou seis dias sem eletricidade sequer para tomar um banho quente. Gael era pobre, mas não miserável. No entanto, mesmo temporariamente, flertou com a escassez. O aluno se recordou do seu cheiro, da sua vergonha perto dos vizinhos, dos dias inteiros trancados olhando para o teto enquanto o sol descia, do silêncio humilhado do pai comendo à mesa enquanto esperava um empréstimo para pagar a conta. Gael finalizou o argumento ressaltando que ele sabia o quanto dói não ter as coisas e revela a sua percepção: exigir um padrão de comportamento como contrapartida para oferecer condições mínimas de sobrevivência, era deslocar excessivamente a definição da palavra “humanidade” para o terreno dos sentimentos, da moral. Gael ressaltou o quanto o mundo concreto é decisivo para a efetuação da humanidade (enquanto conceito e realidade) e que, até mesmo para sentir-se humano, ter certas coisas era fundamental. Por seis dias, sentiu-se bicho. Viu seu pai sentir-se abaixo de qualquer classificação. Gael finalizou sua intervenção anunciando que revia o seu voto anterior e concordava com a definição de solidariedade sugerida por Ravi: a identificação mínima da humanidade entre nós.

A aula — o julgamento: o jogo prosseguiu adentrando a manhã. Diversas palavras foram definidas, redefinidas e significadas. Por vezes, a fúria nomeadora ganhava velocidade, e os alunos, estremecidos pelo poder de redefinir o mundo, ousavam trocar as palavras de lugar, construindo novas relações entre os nomes e as coisas, segundo eles mais verdadeiras e apropriadas do que as nomeações originais. Desse modo a fábrica foi renomeada como açougue, o banco como chicote, o trabalho como corrente, e também houve novas denominações compostas: as veias se tornaram os rios de dentro, a bunda as montanhas do corpo, as portas e janelas ganharam, respectivamente, os nomes de “cus e olhos das casas”, o exército foi renomeado como uma colônia de varejeiras e a História do Brasil rebatizada como “linha sucessiva de assassinatos”. Houve quem sugerisse, por vezes, abandonar o exercício de nomeação autônoma e confirmar os significados em livros, dicionários, na Wikipédia ou no Google, mas tal zelador da prudência sempre foi voto vencido facilmente. A propriedade nomeadora revitalizava. Os alunos e o professor pareciam despertos, como quem acaba de acordar, ou abre os olhos após a doença.

Um dos alunos perguntou que palavra melhor designaria a eles, ali, naquele instante. O professor perguntou qual palavra ele colocava em dúvida: aluno ou professor. O jovem respondeu que a sua questão não era necessariamente sobre nenhuma das palavras. Seu desejo era encontrar um nome que representasse a todos, aluno e professor, com qualidade de amplitude, mas que fugisse da generalidade neutra de termos como “humanidade”. Para o aluno, a denominação ampla haveria de ser fiel ao tempo e retratar a dimensão contingencial da existência: ali, naquele momento, eles formavam um grupo diferente de outras reuniões de humanos em outros tempos. Ravi propôs que palavra “sobreviventes” os representasse a todos, e que o tempo fosse definido como “ofensa”. A aprovação foi unânime.

Emanuel, que durante toda a aula permaneceu sentado perto da grade que circundava a quadra, anunciou a Sandro que estavam já perto do fim do horário regular da aula. O professor anunciou a turma que poderiam ter ainda uma análise. Coube ao próprio porteiro quebrar o silêncio: com bastante timidez, Emanuel gostaria de colocar em questão a palavra “ano”. Para ele o problema estava no pressuposto de que a palavra se referia a uma unidade finita de tempo. Ele, particularmente, não sentia o mesmo: não sabia mais diferenciar os anos e desconfiava que a palavra ensinada não se adequava à sua vivência. O professor concordou enfaticamente com o enunciado, e formulou uma pergunta ainda mais ampla para o colegiado da turma: seria possível que no Brasil até mesmo a palavra “tempo” não fizesse sentido? Todos os sobreviventes se pronunciaram sobre a questão. Houve um momento de desavença quando Natália perguntou que ano era aquele em que falavam. Ela, com pragmatismo frustrante, respondeu 2024. Ravi respondeu que seguramente havia elementos de 1929. William apostava em 1937, Geiza afirmou categoricamente perceber indícios de 1535 e, Sandro, o professor, afirmou perceber que ainda havia ecos de 1964. Com as diferenças de ponto de vista, coube ao professor fazer a relatoria de uma proposta de consenso: a palavra tempo, em sua dimensão extensiva e em seu caráter sucessivo não se aplicava à vivência brasileira, devendo, portanto, ser substituída pela palavra “labirinto”. A numeração dos labirintos não preocupou a turma e, para acomodar Natália, adotaram a numeração de sua predileção: estavam todos no Labirinto 2024.

Sandro anunciou o fim da aula e, quando recolhia a sua pasta, um jovem perguntou se haveria a chance de proibirem alguma palavra. Sandro questionou qual palavra o rapaz sugeria a proibição e a resposta foi: “acordo”. O professor sorri e responde: “no Brasil, infelizmente, a viagem ao passado nunca chega ao ano zero”.