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O luto entre o passado e o futuro

Uma leitura de John, de Julia de Souza

Ana Calzavara

Quando peguei em mãos John, de Julia de Souza, imaginava como esse livro de ensaios fragmentados poderia dialogar com questões que já me acompanham. Nos últimos anos, a memória tem sido um tema presente em minha vida, em meu trabalho como escritora e pesquisadora. No doutorado, estou investigando como a poesia brasileira contemporânea elabora arquivos para contar histórias do Brasil. E este ano lanço pela Edições Macondo Expansão marítima, um livro sobre minha relação com meu pai.

No entanto, fui surpreendida. Ainda que existam afinidades e aspectos que se repetem, o percurso de John me leva para destinos e questões diferentes das memórias que venho pesquisando. Se, em muitos livros de poesia contemporânea, encontramos uma produção de memórias que vem à rebote de perdas e lacunas provocadas por processos históricos e opressões sociais, em John a perda de memória é de outra ordem, a perda se dá por um lapso fisiológico.

John é o testemunho de uma filha que acompanha o adoecimento e a morte do pai — diagnosticado com demência — e, atravessada por esse luto, faz perguntas sobre seu próprio futuro.

Apesar das diferenças, este parece ser um ponto em comum entre as produções contemporâneas voltadas para o passado: a insistência em elaborar e contar como algo aconteceu, na verdade, fala muito sobre o que ainda pode ser vivido e imaginado. Como Derrida afirma em Mal de arquivo, “O arquivo sempre foi um penhor e, como todo penhor, um penhor do futuro.” O gesto de arquivar e todas as escolhas que o precedem, desde a seleção do que é arquivável, ou seja, do que se considera como digno de se lembrar, até a forma como se escolhe guardar, imprimir, registrar, “comanda aquilo que no próprio passado intuía e construía o que quer que fosse como antecipação do futuro”.

Se o arquivo é um penhor, o que ele guarda pode ser uma dívida ou um empréstimo. De qualquer forma, trata-se de um registro cuja cobrança ou valor se projeta em um futuro. No caso de John, o registro é tanto a lembrança de quem o pai foi quanto daquilo que aconteceu com ele, ao mesmo tempo em que é um processo de trabalho de luto. Registrar é conviver com a perda, prolongá-la, não deixar que a memória e a dor cheguem a um fim. Mas como esse registro se projeta no futuro?

A resposta talvez esteja na mão e na perspectiva que compõem esse testemunho: a filha, como alguém que sucede o pai, já é alguém que se encontra em um outro tempo. Quando ela se ocupa de escrever sobre seu pai, se posiciona em um lugar ambíguo que é, simultaneamente, um futuro que pode ser, através do reflexo paterno, um passado em continuidade.

Escrever sobre o pai e a doença que vai, aos poucos, restringindo sua autonomia e subjetividade é selecionar o que dessa história e desse luto deve ser lembrado e compartilhado para além do tempo presente. Mas é também um meio de se enxergar através dos contornos desse pai. Há uma pergunta que parece habitar um lugar entre as brechas dos fragmentos de John, uma pergunta nunca enunciada, mas que se faz insistentemente presente: O que do destino desse pai pode dizer sobre o futuro que ainda resta para essa filha?

Assim, enquanto relembra o passado do pai, Julia Souza, de alguma forma, já circunscreve o tempo presente da escrita como uma realidade que vai passar, sendo o próprio registro um arquivo de si mesma, ou seja, um arquivo do que ela também um dia vai perder. Afinal, os livros, um pouco como os filhos, ultrapassam a vida das pessoas que os escrevem.

Por isso, produzir arquivos íntimos a partir da literatura é um gesto radicalmente distinto da escrita de um diário, por exemplo. Por mais íntimo que seja o conteúdo de um texto, ao ser publicado, ao ser pensado e escrito em uma forma literária, esse registro torna-se público. No caso de John, isto implica em tornar um trabalho de luto em algo que ultrapassa os limites de um círculo familiar, de uma subjetividade individual. Essa é uma ação que por si só levanta questões, inclusive para a sua autora que indaga em um dos fragmentos: “Afinal, a quem interessa o luto do outro? Tem importância coletiva o luto por uma morte localizada, pontual — um luto que é, no limite, burguês, de caráter privado? Por que esse luto, e não outros, é digno de nota?”

Este é um testemunho literário que, portanto, produz perguntas sobre o próprio gesto da escrita: Por que escrever sobre o próprio luto? Mas escrever sobre o luto não é sempre escrever sobre um luto particular? Por que tornar pública uma história íntima?

Questões que se desdobram em uma investigação sobre a forma, ou seja, sobre como contar essas memórias. No fragmento “Carimbo”, há um exemplo de uma escrita que se dobra sobre si mesma tomando como tema as hesitações que envolvem a sua própria produção enquanto o registro público de memórias íntimas: “me aflige a hipótese de carimbá-la de forma incontornável ou definitiva: cada linha escrita é também o apagamento de uma outra rememoração possível, de um outro viés ou versão do resgate e comentário do passado”.

Acho interessante o uso do verbo “carimbá-la”, como se o registro da memória se desse através de um carimbo, um material que, apesar de deixar uma marca, é ainda frágil e de proporções limitadas. Se consideramos o tamanho dos textos que compõem o livro, o carimbo pode ser interpretado como um objeto que determina também as condições desse registro: uma memória fragmentada que vai sendo contada em trechos curtos. Diante da aflição ou do receio de fixar a lembrança em uma forma definitiva, escrever em fragmentos torna-se uma estratégia para deixar espaços, entre uma quebra e outra, entre um texto e outro. Para não transformar aquilo de que se lembra em um monumento absoluto, a memória é escrita em pedaços.

Além de uma certa abertura, o fragmento também permite que a repetição seja um artifício de escrita. Em pedaços, as partes do livro podem se recombinar, criando novas leituras e encaixes. Em John, a repetição apresenta-se tanto como um sintoma próprio do luto que desfia a linearidade temporal quanto como possíveis dobras entre pai e filha.

O duplo, como um aspecto do infamiliar, o conceito freudiano que fala daquilo que nos é mais íntimo e por isso é também mais estranho, foi uma imagem que atravessou a escrita do meu livro Expansão marítima. A similaridade física com meu pai se tornou um tema de investigação: O que mais de meu pai, para além de suas feições, pode ter se repetido em mim?

No livro de Julia de Souza, a repetição como herança paterna é presente por exemplo na assinatura “J.S.” que é compartilhada com o pai. Assim, apropriando-se dessa assinatura ambígua, a filha começa a aparecer em meio a história que supostamente era a de seu pai.

No primeiro texto, “Bolso da camisa”, é anunciada a falta de memória de John como uma característica antiga, anterior ao diagnóstico de demência. Diante do lapso, a filha é convocada para socorrer o pai que com frequência não se lembra do nome de conhecidos. Algumas páginas depois, em “Latência”, o mesmo episódio se repete, no entanto, a perspectiva é outra. Agora é a filha quem confessa algo que não foi dito no primeiro fragmento: ela também costuma se esquecer do nome de pessoas, mesmo que se recorde dos seus rostos. Assim, entre um fragmento e outro, um mesmo elemento ou uma mesma história não só se repete, mas a sua repetição introduz algum tipo de mudança ampliando a perspectiva do que se testemunha. Em “Latência”, descobre-se, por exemplo, a diferença da filha que, ao contrário do pai, não tem uma filha ou um filho a quem recorrer diante do seu próprio lapso de memória:

Como nunca casei e estou cada vez mais convicta de que não vou ter filhos, faço meu melhor amigo me prometer que vai pagar pela minha internação em um asilo quando eu chegar a esse estado. Ele concorda, “É claro, temos um trato”; damos risada, a realização desse plano parece improvável, e, no entanto, nossa ligação de toda uma vida me traz alguma confiança. Mas e se ele não estiver vivo ou lúcido quando eu chegar a esse deserto?

A afirmação “quando eu chegar a esse deserto” dentro da pergunta sobre as possibilidades de ser ou não cuidada em um futuro distante talvez revele a antecipação que este arquivo guarda. Entre o processo de elaborar o luto e registrar — para não perder — o que se lembra da história de seu pai, a autora se depara com as questões que esse passado lança sobre o seu próprio tempo de vida.

Na sequência de “Latência”, há um fragmento um pouco maior intitulado como “Cabecinha”, um termo que pode ser interpretado tanto como irônico quanto como trágico. Nos três primeiros parágrafos desse texto não se encontra vestígios do pai, é um relato que se concentra na experiência de perda de lucidez, mas, dessa vez, é sobre a filha. Essa perda é vivenciada pela primeira vez ainda na adolescência, instaurando uma crise que abre uma fenda na percepção da realidade — e o modo como se relaciona com ela —, o que, em consequência, tem o efeito de uma ruptura que se mantém mesmo após a sua recuperação e a suposta volta à normalidade:

descobriria rapidamente que esse estado de desespero, exílio e estranhamento voltaria a me sequestrar muitas vezes ao longo da década seguinte, e além dela; e que a indeterminação, o vácuo e a cisão não apenas se repetiam, mas se sofisticavam a cada crise, como se a loucura também fosse uma espécie de expertise.

Se a filha ainda muito nova precisa encontrar formas de conviver com a loucura como uma parte de si mesma — como um estado que interrompe a normalidade e provoca quebras, deixando o tempo em pedaços —, o pai, quando mencionado nesse fragmento, não parece disposto a aceitar esse estado. Os adjetivos escolhidos pela autora para descrever a resposta de John a sua primeira crise são termos como “mudo”, “apolínea”, “austera”, “cindida”, “estoica”, seco”. Ao descrever a postura rígida do pai diante da fragilidade da filha, a autora dá pistas de como esse mesmo homem pode ter lidado com a sua progressiva perda de contato com aquilo que se compreende enquanto normalidade. Mas também apresenta indícios de como a filha precisou se responsabilizar sozinha por sua própria “cabecinha”. Que futuro aguarda uma adolescente que ouve de seu pai que não é aceitável arruinar a refeição dos outros com a sua loucura particular? Que futuro espera por uma filha que assiste a perda do pai temendo ser um prenúncio da sua própria vida? Se a filha que testemunha o destino do pai não se reproduz, quem irá cuidar do registro de sua memória? Talvez sejamos nós, possíveis e futuros leitores, acompanhando do outro lado da página a insistência desse arquivo.