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Dias Perfeitos, dias acabados: o trabalho manual na era do pós-trabalho

Ana Calzavara

Era pedra cantada que o Oscar de melhor filme estrangeiro daquela feira-livre que é a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas iria para Zona de interesse — o filme é mesmo belíssimo, e atende bem ao monopólio do direito à dor e ao luto que o Estado de Israel reclama ao arrepio da história e da vontade do mundo. Ninguém precisa ser ministro de Netanyahu para saber que o mesmíssimo filme, falando da indiferença dos israelenses extremistas com o massacre dos palestinos em vez da indiferença dos alemães nazistas com os judeus em Auschwitz, não carimbaria nem o passaporte para os EUA. Até porque a estatueta representa — imagine só — um anacroníssimo cavaleiro cruzado europeu. Na onda que derrubou estátuas mundo afora alguns anos atrás, a estatueta do Oscar passou ilesa, irrefletida e intocada, tamanho o peso da indústria cultural dos EUA na nossa retina moral.

Se Zona de interesse está na zona de interesse do Ocidente, Dias perfeitos, um dos outros concorrentes a melhor filme estrangeiro, era o patinho feio do baile. Nem o tema nem a história de bastidores sobre a produção empolgam. O filme conta o dia a dia de um assíduo limpador de banheiros públicos na Tóquio contemporânea. E a narrativa nasceu de uma proposta do produtor Kojy Yanai a Wim Wenders para conhecer e divulgar o Tokio Toilet Project, uma iniciativa que reuniu arquitetos, designers de moda, decoradores, engenheiros de design industrial e artistas plásticos, todos premiados e reconhecidos, para repaginar dezessete banheiros públicos da cidade. O resultado da iniciativa de Tóquio, a bem da verdade, impressiona: um misto de high-tech e senso estético orgulhosamente dedicado a um espaço que reúne xixi, cocô e toda sujidade visível e não visível dos seres humanos, onde suor, oleosidade e células descamativas se tornam incubadoras de Staphylococcus aureus, Salmonella, Escherichia coli e outras sutilezas. Mas o que impressiona mesmo — e que não comoveu os jurados da Academia — é o que Wenders tirou de um assunto ao mesmo tempo tão esquisito e banal. Entre um lavar aqui e um esfregar ali de torneiras, válvulas de descargas, sanitários, mictórios e maçanetas de portas, Dias perfeitos se transforma na poderosa alegoria de uma questão que pulsa no coração do século XXI: o papel do trabalho manual na formação da subjetividade, num mundo que aposta na dissolução digital do próprio trabalho.

Wenders narra doze dias da vida de Hirayama (Kōji Yakusho), um homem solitário no alto dos seus 60 anos. Repetidamente, vemos Hirayama viver um roteiro ritualizado. Ele se levanta, faz o asseio pessoal, carrega seu pequeno furgão azul de produtos químicos, compra café enlatado de uma máquina automática de venda, entra no carro, escolhe uma fita cassete da coleção de clássicos norte-americanos dos anos 1970, escuta a música durante o caminho, para de banheiro público em banheiro público, limpa-os com a paixão obsessiva de um miniaturista ou relojoeiro suíço, almoça num parque público, onde toma fotos das copas frondosas das árvores com uma antiga câmara analógica, torna a limpar privadas com engenho e arte, banha-se depois do trabalho numa casa de termas, janta numa lanchonete enfiada numa estação de metrô, volta para casa, lê um livro e dorme.

Nos dias de folga (sábado? domingo?), Hirayama vai de bicicleta ao templo, leva a roupa suja à lavanderia e passa na fotóptica, onde deixa o rolo de filme das fotos tiradas na semana e recolhe o da semana anterior. Retorna para casa, suja a sala só para limpá-la de novo e rebobina as fitas cassetes com bic (se você não sabe o que é isso, dá um Google). Seleciona as fotos reveladas, passa no sebo para comprar a leitura da semana seguinte e retorna para casa. A folga é a disciplina por outros meios. Os doze dias de Hirayama ecoam os doze trabalhos de Hércules.

Dias perfeitos não explica por que Hirayama busca obsessivamente a iteração, sugere apenas alguns contornos.

Como Hirayama anda sempre envolto numa névoa espessa de silêncio enigmático (sua primeira fala é com uma criança perdida num dos banheiros públicos aos 10 minutos de filme), nos resta escutar o que ele escuta para acessar seu interior. As canções que o faxineiro bota no toca-fitas do seu furgãozinho repetem a ideia de algo irremediavelmente perdido no passado. A primeira — “The Rising Sun”, do Animals — diz que a casa do “sol nascente” (também apelido do Japão) foi a “ruína de muita gente”. Depois, “Pale Blue Eyes”, do Velvet, sussurra um “tudo o que eu tive, mas não pude manter”. Por fim, uma canção japonesa alude a “mãos que já pegaram peixes mas que hoje sentem só ventos frios”. Como o coro no teatro antigo, as letras pop sugerem que a experiência de Hirayama se cristaliza num vazio que se precipita em abismo. Sua personalidade traz, para falar como Merleau-Ponty, a marca de uma “mordida do mundo”. Uma sombra declina para dentro dele.

As mensagens do rock-cum-coro se reforçam quando pedaços da vida passada de Hirayama fraturam a superfície regrada da sua vida presente. No sexto dia, uma sobrinha adolescente busca refúgio em sua casa depois de se desentender com a mãe. O tio a acolhe por dois dias, até que a irmã de Hirayama aparece para usca-la. Sua roupa, seu carro, seu motorista particular, sua fala, tudo mostra que ela é da seleta elite japonesa. Sabemos (sempre por ela, pois nosso personagem quase não fala) que Hirayama rompeu relações com o pai, a cuja aparente fortuna renuncia. Quando ouve a pergunta se andava limpando banheiros públicos, Hirayama levanta o rosto e meneia a cabeça com um orgulho senhorial.

Se o passado é uma sombra que não nos é dado ver senão sentir, Hirayama faz do trabalho manual sua luz no presente. Entre o momento em que entra no banheiro sujo e estende a mão em direção a um pedaço de papel amassado no chão, entre aquele segundo que transita da autoagressão para o alívio, é bonito vê-lo limpar a sujeira dos outros com a certeza de quem estabelece um vínculo consigo. A limpeza é um ato interior, alcança o invisível. Externamente, sua mão esfregadora persegue o tubo de água embutido na parede. Seus dedos caçam as manchas na parte de baixo das porcelanas. Seus olhos se valem de espelhos com cabos curvos, como aqueles espelhinhos clínicos bucais dos dentistas, para surpreender a imundície mais escondida. Não importa se os outros verão. Hirayama sente, e isso basta. Sua sincronização com o que faz é plena. O trabalho manual não é só fonte de renda. É o aqui e o agora absolutos. Condiciona o modo como ele se instala no ser, no tempo e no mundo.

O valor do trabalho manual, por onde Hirayama ritualiza a vida e encontra sua redenção, é ponto fugaz no carrossel da vida digital que gira à sua volta. A economia do Vale do Silício, os nômades digitais, o rentismo do Airbnb, a monetização do TikTok, Instagram ou X: toda essa enfiada de algoritmos torna Hirayama tão pitoresco e fora do lugar como os próprios banheiros públicos de Tóquio. Seu subordinado, o jovem e chatola Takashi, é vítima, ator e testemunha desse mundo. Ligado nas redes sociais, desprendido da materialidade do entorno, Takashi esfrega a privada olhando para a tela brilhante do celular. Não vê o que limpa enquanto Hirayama limpa o que ninguém vê. Apaixonado pela jovem Aya, Takashi não tem dinheiro para sair com ela à noite e se pergunta: “Não dá para se apaixonar sem dinheiro; isso é a era moderna?”. Desprendido do agora, vive a ansiedade do futuro. O jovem tenta vender as cassetes de Hirayama num sebo onde valem algumas centenas de dólares. Para ele, o mundo do trabalho não remunera nem redime nem dignifica. A saída para suas dores só pode se dar na circulação, na especulação, na apropriação do alheio de graça e sua venda a um bom preço. Takashi encarna (com didatismo excessivo) a inconstância evanescente do digitalismo predatório.

Ao algoritmo, Hirayama opõe o ritmo do agora: o momento presente no interior de um padrão repetitivo mais amplo que parece dissolvê-lo sob o peso da insignificância, mas que na verdade o estabiliza. É aí que o faxineiro busca a luz que atravessa as sombras de sua alma. A síntese do jogo entre sombra e luz está nas fotos que Hirayama tira — com sua câmara analógica, é claro — das copas das árvores. São sempre as mesmas fotos das mesmas copas no mesmo parque. Mas o seu valor não está nesses objetos. Nasce, antes, da relação instantânea, irreproduzível, portanto especial, que se forma quando as folhas das árvores, agitadas pelo vento, vão toldando e filtrando os raios do sol em diferentes desenhos dinâmicos. O japonês tem uma palavra para essa encenação bruxuleante que malha o chão: komorebi. Literalmente, o sol que escapa da árvore. A luz que escapa da sombra.

A tensão entre o presente e os outros tempos (o passado que oprime, o futuro que angustia) é a contradição que Dias perfeitos explora. Às vezes, Hirayama parece inspirador. No sulco viciado que cava no curso da vida, ele subverte o automatismo com que os outros tecem suas relações com o mundo: o dinheiro, a experiência digital, o imediatismo, a esfera da circulação, a apropriação especulativa. A repetição deliberada dele desnaturaliza a repetição espontânea dos outros. É uma revolução às avessas: pela via da não mudança.

Mas nem tudo é redentor. O que desespera na vida de Hirayama é sua tentativa de buscar a estabilização da experiência do tempo num tempo que já passou, que já não existe mais. Como lembra Adorno, não há constância na parte quando o todo é instável. O paradoxo talvez seja elaborado na cena que Wenders reserva para o final, uma homenagem ao teatro de sombras japonês. Interagindo com uma personagem que aparece no último dia, Hirayama busca descobrir se duas sombras se tornam mais densas quando superpostas. Seu interlocutor está em estado terminal, assim como o valor do trabalho manual na era digital. Mas os dois se divertem naquele intenso agora brincando de pega-pega de sombras. Parece que é possível viver o instante pleno. Mas por mais quanto tempo ainda? Em latim, perfeito quer dizer ótimo, mas significa principalmente acabado. Qual das duas perfeições rege a vida de Hirayama?