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Desde sempre pós-: epistemologias subalternas na curadoria de cinema

Percepções curatoriais

Na introdução da sua antologia Pré-cinemas e Pós-cinemas (1997), Arlindo Machado confessa a dificuldade que teve em fechar o volume. Pré-cinemas e Pós-cinemas pretendia reunir ensaios inéditos de Machado que seguiam em duas direções diferentes e aparentemente contraditórias. Uma parte dos textos abordava dispositivos ópticos de antigamente, os festejados antepassados do cinema; a outra, formas audiovisuais emergentes baseadas na eletrônica e na informática. Era um projeto inusitado para meados da década de 1990, quando a maior parte dos estudos de mídia (se é que já podíamos chamá-los assim) se prendia a categorias muito específicas. Como transformar essa miscelânea de tópicos no esboço de um livro coeso, o autor se perguntava? O fio que conectava todos os capítulos era a onipresença do cinema como referência. Não obstante, sem um encadeamento linear ou uma tese subjacente, o livro não cumpria propriamente uma história do cinema. A bem da verdade, o cinema nem estava ali de fato. Ele apenas fornecia bases epistêmicas comuns por meio das quais o leitor poderia acessar outros fenômenos audiovisuais passados e futuros. Um tipo de paradigma.

O impasse de Machado só se resolveu quando achou um título paro o livro. A força da aliteração lhe permitiu integrar todos os ensaios da coletânea em uma única obra acadêmica. Mas não foi uma solução que lhe ocorreu espontaneamente: Machado pegou o título emprestado de um projeto abortado do Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS-SP). Pré-cinemas e Pós-cinemas havia sido originalmente concebida por Amir Labaki e Lucas Bambozzi, à época respectivamente diretor e curador de vídeo do museu, como uma exposição em comemoração ao centenário do cinema. Assim como o livro de Machado, o projeto da exposição capitalizava a importância do meio cinematográfico como pretexto para olhar para fora. A ideia mesma de cinema seria projetada sobre outras formas e práticas tecnológicas orbitando ao seu redor. O cinema, no auge de sua atualidade histórica, seria apresentado como um fenômeno tanto mais antigo quanto mais abundante do que as convenções ditavam.

Devido a mudanças na diretoria do museu, a exposição do MIS-SP nunca veio a se concretizar. Ao reconhecer a sua inspiração na introdução do livro, Machado traz à tona diálogos de bastidor que associam o trabalho acadêmico ao cultural. A reciclagem do argumento curatorial em um recorte editorial evidencia a reciprocidade entre a produção de conceitos e a reprodução de práticas. Ao mesmo tempo, ela revela o quanto uma investigação acadêmica pode depender de percepções curatoriais. O acadêmico, embora capaz de intuir proliferações do cinema por outros sistemas midiáticos, não conseguia articular essa condição autodiferencial nas estruturas de pensamento que estavam à sua disposição. Não ocorreu naturalmente a Machado a possibilidade de reconciliar a identidade cristalizada do meio cinematográfico com a crescente constelação de aparelhos que sua pesquisa exumava. Para os agentes culturais, por outro lado, essa reconciliação não demorou. Em verdade, estavam tão à vontade com a ideia que decidiram ser a melhor forma de representar o cinema no seu centenário.

Esta anedota ilustra uma lacuna epistêmica que poderíamos ser tentados a atribuir à marcha lenta da academia. A ciência toma tempo. Para chegar a certas proposições, cientistas precisam examinar exaustivamente suas hipóteses. Outras práticas culturais — as artes — não precisam passar pelo mesmo tipo de peneira, o que dá aos curadores uma certa vantagem dedutiva. Curadores podem lançar interpretações extraordinárias ao mundo mais rapidamente e com mais frequência do que qualquer cientista. Mas estariam eles corretos? A suspeita que sempre fica é que a compreensão curatorial de um determinado estado de coisas possa ser tão equivocada quanto é ousada. Ou pior, segundo o que Paul O'Neil (2007) identifica como a ascensão do “gesto curatorial” na década de 1990, que os curadores estejam se apropriando do significado de fenômenos socioculturais para criar suas próprias ordens discursivas. Afinal, ao curador não cabe descobrir fatos, mas sim compor coleções e exposições.

A proposta que pretendo avançar neste artigo demanda uma complexificação dessas diferenças entre o trabalho acadêmico e cultural. Meu argumento se baseia na reavaliação das condições de verdade na ciência moderna, bem como do papel do método na produção do conhecimento. Em última instância, pretendo defender a legitimidade científica das percepções curatoriais com base nas relações particulares que um curador pode estabelecer com seu campo de atividade. Ao fazê-lo, assumo que a distinção entre abordagens de pesquisa acadêmica e curatorial não esteja calcada no rigor, mas sim na sensibilidade. Isso não quer dizer que curadores estejam mais focados nos seus objetos de conhecimento do que acadêmicos. Pelo contrário, que, em virtude da prática, a percepção curatorial é levada a se desviar constantemente dos objetos para as suas circunstâncias e vice-versa. Quando se organiza uma mostra de cinema, por exemplo, um filme nunca existe por si só, mas entre todos os outros que poderiam ocupar o seu lugar. Em verdade, nem mesmo individualmente um filme ocorre em si: sua presença oscila ao longo de trocas materiais, autorizações institucionais e outros atos discursivos que muitas vezes caem dentro do escopo de trabalho curatorial. Essas articulações suscitam uma consciência ecológica que suspende a autodeterminação objetiva do meio, tornando palpável a sua heterogeneidade constitutinte.

Agora, não é de supreender que esse tipo de compreensão curatorial deixe a desejar no quesito rigor acadêmico. As ciências modernas são construídas a partir de uma epistemologia objetivista baseada na atomização e disciplinarização. Elas separam categoricamente sujeitos de objetos, bem como conhecimento de fabricação, e atribuem àqueles o poder exclusivo de decifrar o significado destes. O observador deve ficar à parte do mundo. A distância concede à teoria uma perspectiva neutra e totalizante. Curadores não podem desempenhar adequadamente esse papel porque atuam de maneira parcial à operação de seus objetos. Formas de conhecimento curatorial são, nesse sentido, incompatíveis com o sujeito universal da modernidade. Para reconciliar suas percepções com essa norma epistêmica, curadores devem renunciar à sua própria posição situada e conformá-la à ordem discursiva predominante.

A noção de Pré-cinemas e Pós-cinemas manifesta esse paradoxo. Por um lado, ela nos convida a participar da consciência curatorial sobre a transitoriedade inerente ao meio cinematográfico. O leitor é levado a apreciar o cinema menos como uma realidade eterna do que como um estágio momentâneo entre outros fenômenos — um entr’acte na história, como diria Siegfried Zielinski (1999). Mas, ao mesmo tempo, “Pré-cinemas e Pós-cinemas” trai uma adesão ao objetivismo moderno. Embora a expressão de fato traduza uma compreensão curatorial do cinema, ela enquadra essa compreensão como secundária à noção de cinema propriamente dita. Em outras palavras, a ideia de Pré-cinemas e Pós-cinemas subsume uma perspectiva curatorial do cinema em uma categoria derivada, subordinada a um cinema universal. Com isso, invalidamos o fato de que, sob uma perspectiva curatorial, todo cinema é desde sempre pós-.

A hierarquia moderna de saberes reflete e calcifica estruturas de poder dentro do meio cinematográfico. Quando mapeamos a distribuição de funções curatoriais para além de certas figuras de autoridade, o que descobrimos é uma vasta matriz de trabalho reprodutivo encarregada da manutenção de todas as práticas e instituições midiáticas. Isso implica que diversas visões de mundo neutralizadas por uma compreensão singular do cinema coincidem justamente com as das pessoas responsáveis por manter o meio funcionando de forma suave e contínua, como se fosse singular. Formas de pensamento curatorial com o cinema (em vez de sobre ele) põem à prova esse objetivismo universalizante. Ao fazê-lo, elas podem ser capazes de redimir posições subalternas, bem como exaltar a variabilidade ontológica da mídia interdita pela subordinação epistêmica.

O cinema nunca foi

Bruno Latour certa vez nos brindou com a desconcertante afirmação de que “nunca fomos modernos” (1993). O livro que carrega esse título pode ser lido hoje em dia como um ponto de transição no seu pensamento, que extrapola a sua abordagem etnográfica dos estudos de ciência e tecnologia (Latour & Woolgar, 1979) enquanto esboça parte da gramática e métodos da teoria ator-rede (Latour, 2005). Ao ser lançado, entretanto, Nous n’avons jamais été modernes se destacou como uma resposta enfática à consagração do Ocidente após a queda do Muro de Berlim. Em um gesto de antropologia simétrica, Latour voltou sua atenção para os “modernos” e dissecou a Modernidade como um conjunto de ilusões “que eles têm sobre si mesmos e querem generalizar para todos” (1993, p. 133). Aqui, além do interesse perene de Latour em emancipar não-humanos, também reside uma crítica à violência normativa subjacente ao projeto epistêmico derivado do Iluminismo europeu. Uma ficção central para a Modernidade, afinal, é a ideia de que os sujeitos majoritariamente brancos dos impérios europeus que constituem os “modernos” universalmente representam a “nós”.

Segundo Latour, a ilusão da Modernidade é aparelhada por uma “Constituição” tácita que permite aos modernos dar conta ao mesmo tempo de “um contexto social e uma natureza que escapa a esse contexto” (ibid., p. 15). Latour remonta as origens da Constituição moderna ao desenvolvimento quase simultâneo da filosofia política de Thomas Hobbes e do método científico de Robert Boyle no século XVII. Cada um deles concebeu o modo de representação universal para, respectivamente, os sujeitos da lei e as verdades externas. Ao fazê-lo, a filosofia política e o método científico se firmaram como ramos paralelos para a governança de sujeitos e objetos. Esses dois ramos governam juntos por exclusão mútua, já que “possuem autoridade apenas se estiverem claramente separados” (ibid., p. 27). Para Latour, a discriminação antropológica entre “nós” e “eles", bem como outras dicotomias fundamentais da Modernidade, é uma “exportação” da Grande Divisão consequente entre humanos e não-humanos (ibid., p. 97).

Entretanto, ao chamar nossa atenção para “a linguagem que transporta a política para fora da ciência” (ibid., p. 16), Latour dá a entender que a divisão entre essas duas categorias talvez não seja tão nítida. Ele presume que, ao fim e ao cabo, na Modernidade, representação política e científica sejam uma e a mesma coisa, uma vez que ambas dependem de redes de práticas capazes de filtrar uma da outra e assegurar a universalidade de entidades puras. A Constituição permite aos modernos fingir que as práticas de purificação, que criam “zonas ontológicas inteiramente distintas” para humanos e não-humanos, são essencialmente distintas das de tradução, que criam “híbridos de natureza e cultura” (ibid., p. 10). Enquanto isso, os modernos podem empregar práticas de tradução para estender e estabilizar as suas redes de purificação em escalas sem precedentes. Dessa forma, eles se apropriam de entidades externas e impõem as suas categorias aos outros. A articulação imperial do conhecimento e do poder modernos visa à totalidade global.

A instituição de arte moderna nos dá um modelo operacional dessa simetria entre purificação e tradução. O espaço subtrativo da galeria de arte, adequadamente descrito por Brian O’Doherty (1986) como cubo branco, busca conciliar qualquer entidade com os ideais objetivos de uma estética Greenbergiana (1961). Na realidade, o desejo moderno por formas “puras” não pode ser realizado senão através dessa invólucro ecológico, que efetivamente abstrai uma obra de sua criação e neutraliza o contexto de sua experiência. Como um efeito de presença autônoma, a obra de arte moderna existe dentro dos limites de uma rede de cubos brancos. Só se pode generalizar a obra como entidade autocontida por meio da expansão dessa rede, que por sua vez depende da conversão e manutenção de espaços de exposição equivalentes entre si, bem como do transporte contínuo da obra para dentro e através desses espaços. Já em 1953, Alain Resnais, Chris Marker e Ghislain Cloquet evidenciavam a violência dessas práticas em seu documentário Les statues meurent aussi [As estátuas também morrem], que descreve a exposição museológica como a continuação do saque colonial por outros meios.

Para Latour, a queda do Muro é a consagração do estágio em que o Ocidente, destituído de qualquer exterioridade concorrente, não mais consegue sustentar as contradições internas da Modernidade. Híbridos proliferam. “Nossa” incapacidade de classificar entidades cada vez mais complexas nas “categorias cartesianas habituais da natureza, política e discurso” (Latour, 1993, p. 3) arruina a Constituição moderna. O surgimento do pós-modernismo é um sintoma de “não mais confiar nas garantias que [essa Constituição] oferece” e ainda assim obedecer a uma temporalidade ditada pelos princípios de classificação modernos (Ibid., p. 46). Nesse sentido, parafraseando Jacques Derrida, o pós-modernismo ainda seria “cativo do mesmo edifício metafísico que proclama ter derrubado” (1997, p. 19). A solução latouriana para o dilema da Modernidade é a recusa da temporalidade moderna, levando a uma reavaliação da história. Precisamos assumir que a purificação e a tradução foram desde sempre formas simétricas de mediação, e que os híbridos desde sempre precederam a constituição de entidades puras. Portanto, a despeito do que fomos levados a acreditar, “nunca fomos modernos”. Ao abraçar a não modernidade, seria possível estabeler uma nova Constituição comprometida “em dar representação aos quasi-objetos” (Latour, 1993, p. 139) — o que é, de certa maneira, o projeto empreendido pela teoria ator-rede e outras ontologias planas. Ao fazê-lo, tornamo-nos capazes de substituir a divisão essencial entre natureza/cultura por uma pluralidade de naturezas-culturas contínuas, não modernas.

No início dos anos 1990, a proliferação de obras de mídia mista criou também no mundo da arte global uma atmosfera de hibridismo. Gêneros artísticos como a instalação e a crítica institucional abrem mão de qualquer pretensão à autocontenção na medida em que afrontam a neutralidade fabricada para a apresentação da obra. Rosalind Krauss (2000) sugere que essas formas de arte, juntamente com o surgimento do vídeo como um sistema de comunicação, consolidam uma condição pós-midiática que rejeita os ideais modernos. Consequentemente, Krauss propõe abolir a noção de “meio” de suas conotações modernistas. Sua redefinição de meio como uma estrutura recursiva — uma “sobreposição de convenções” (ibid., p. 53) — ressalta as práticas de mediação constitutivas da singularidade de qualquer trabalho. A consciência dessas práticas desloca nosso senso de especificidade do meio da fisicalidade pura do suporte para as circunstâncias variáveis do local. O meio, portanto, deixa de existir como uma generalização histórica. É como se, em verdade, o meio nunca tivesse sido.

O cinema ocupa uma posição central na reflexão de Krauss. Como um agregado tecnológico, o cinema a princípio resiste ao encerramento implicado por qualquer definição modernista de especificidade do meio. Mas a noção abstrata de dispositivo acaba por fornecer um substituto conveniente, permitindo abordagens redutoras do meio cinematográfico. A teoria do cinema e os próprios cineastas se apegam ao “dispositivo” como uma representação econômica por meio da qual a totalidade coerente do cinema pode ser abarcada. Por exemplo, Krauss descreve como o movimento do cinema estrutural, em sua busca pela natureza do cinema, procurou “sublimar as diferenças internas do dispositivo fílmico em uma unidade de experência única e indivisível” (ibid., p. 30). Este projeto de vanguarda, essencialmente modernista, influenciou o projeto do Cinema Invisível do Anthology Film Archives, a sala escura onde os pioneiros do cinema estrutural se reuniam em Nova York. Projetado para promover a experiência do filme “em si”, o Cinema Invisível pretendia ser um equivalente cinematográfico do cubo branco. Ali, também, a pureza formal seria alcançada pode meio do acréscimo de outras camadas “impuras” de mediação. Até os assentos eram particionados, de modo a ampliar o senso de isolamento dos espectadores das circunstâncias da projeção.

Krauss encontrará expressões da disposição autodiferencial do meio em obras do artista conceitual Marcel Broodthaers que recuperam a indeterminação do cinema primitivo. Mas também se poderia reconhecer a multiplicidade do cinema em instalações de mídia mista feitas na década de 1970, por volta da mesma época dos clássicos do cinema estrutural. Trabalhos dos membros da London Film-Makers' Coop como Malcolm LeGrice, Lis Rhodes e William Raban promovem reconfigurações do dispositivo cinematográfico ao mesmo tempo em que desarranjam aspectos convencionais da projeção de filmes. Em uma reação deliberada à televisão, os ambientes de projeção criados por Hélio Oiticica e Neville D'Almeida para a série BLOCO-EXPERIÊNCIAS em COSMOCOCA — programa in progress (1973–74) propõe a noção de “quasi-cinema”. Ao incorporar simultaneamente elementos que poderiam ser considerados pré-cinematográficos (projeções de slides, trilha sonora assíncrona) e pós-cinematográficos (adereços, instruções de performance), as Cosmococas desprendem a insuficiência ontológica do meio da positividade temporal da modernidade. Quasi-cinema não é um cinema por vir, mas sim o cinema como a bagunça que ele efetivamente é. Em certo sentido, é uma representação do meio como quasi-objeto latouriano.

A digitalização do filme nos leva a reconhecer essa mesma insuficiência constitutiva dentro do próprio meio cinematográfico. Trata-se do “advento de uma tecnologia de ordem superior” que, como afirmado por Krauss, traz à tona a complexidade interna das técnicas que vem a superar (2000, p. 53). Mas a digitalização também foi a queda do Muro que lançou todo o cinema em um estado triunfante de desordem ontológica. A noção de “pós-cinema” ressurge dentro deste contexto como uma forma de abordar a dissolução do trabalho cinematográfico entre outras práticas midiático-culturais. O problema é que, no intuito de dar conta dos híbridos resultantes desse processo, o “pós-cinema” realinha o meio cinematográfico à temporalidade moderna. Ao usar o cinema como uma referência estável para categorizar tudo aquilo que o excede, o “pós-cinema” essencializa o cinema e reinstala dicotomias que não atendem à multiplicidade inata do meio singular. Reforça, por contraste, a ideia de um cinema objetivamente coerente e universal.

Nesse sentido, a ideia de “pós-cinema” provavelmente nos diz menos sobre os cinemas que são, os que virão e os que poderiam ser, do que sobre a economia política do conhecimento. O conceito reflete, em última instância, a atitude analítica distanciada das ciências modernas e sua ordem discursiva correspondente. Essa posição coincide com a proverbial visão do todo a partir de lugar nenhum (Haraway, 1988). Ao negligenciar a insuficiência do cinema, essa perspectiva também desconsidera a experiência dos sujeitos encarregados de tornar o meio suficiente. Para a maioria das pessoas que trabalham nas indústrias cinematográficas, o cinema não existe em si mesmo. É uma coletividade avassaladora com a qual é preciso conviver. Se um meio, como afirma Krauss, é de fato uma estrutura recursiva que não é dada, mas sim produzida, são os técnicos e burocratas no fundo da hierarquia de trabalho que estão no cerne de sua criação. É dever deles preservar as condições de mediação e tornar qualquer instância de trabalho cinematográfico equivalente a todas as outras. São eles que devem realizar continuamente as traduções que transportam o “cinema” do reino macro e abstrato do que Latour chamou de “racionalidades descontextualizadas e despersonalizadas” (1993, p. 121) para as suas realidades locais específicas — e vice-versa.

Ocupar-se da purificação de sinais implica charfundar nos resíduos do ruído. Da posição subalterna dos funcionários que traficam cópias de filmes, verificam a sua qualidade, negociam direitos autorais, adquirem equipamentos e negociam autorizações, instalam plugins e configuram ambientes de software, coordenam fluxos de dados, mantêm sistemas de áudio e vídeo em ordem, gerenciam o comportamento da audiência, mantêm os cubos brancos brancos e as salas escuras escuras, ligam o projetor no começo da sessão e desligam ao final, apenas para fazer tudo de novo amanhã, o cinema não é fato dado. É, pelo contrário, um efeito contínuo de gestão e invenção, desmoronando apesar de si mesmo. O meio é uma tarefa nunca completamente realizada. Ele se comporta como um organismo complexo, dotado da maioria das características que Shane Denson e Julia Leyda (2016) atribuem ao pós-cinematográfico: interativo, em rede, social, processual, agregativo, ambiental, “entre outras coisas”. Quanto mais precárias as circunstâncias, mais esforço é necessário para manter o cinema coeso — e mais consciente a gente precisa ser de quão artificial a objetividade universal do meio verdadeiramente é.

A perspectiva do abismo

Embora constitutivas do cinema, as práticas de manutenção acima descritas são frequentemente tratadas como insignificantes para a realidade do meio enquanto totalidade homogênea e exclusiva. É como se elas não cumprissem nada por si mesmas, apenas dessem suporte às operações “efetivamente” midiáticas. Nesse sentido, essas práticas estão situadas no campo negativo do cinema. Seus atores desempenham o papel de um elenco de apoio, incapaz de autodeterminação profissional. Em vez de realizar um trabalho próprio, eles apenas impedem que o trabalho de outrem se desintegre. Para entender por que são removidos da condição de sujeitos plenos do meio cinematográfico, é importante enquadrar o que esses atores fazem como formas de trabalho reprodutivo. Trabalho reprodutivo é aquele que originalmente gira em torno da procriação e da criação de filhos, mas também se refere às tarefas domésticas e ao trabalho de cuidado. A teoria feminista se valeu desse conceito para tornar explícita a divisão de gênero entre as forças de trabalho industriais e domésticas (Hansen & Philipson 1990, Federici 2004). Ainda que a última crie condições para a subsistência da primeira, raramente ela é considerada relevante entre os custos e resultados da produção social. As convenções patriarcais que atribuem tarefas reprodutivas exclusivamente às mulheres perpetuam a sua subordinação ao mesmo tempo em que negligenciam a importância econômica dessas tarefas. Nas indústrias midiáticas, em que manutenção e cuidado estão associados à reprodução sociotécnica do trabalho cultural, não é diferente: trabalho reprodutivo é tido como uma externalidade sem autonomia ou valor próprio.

Uma obra cinematográfica é inseparável do trabalho reprodutivos porque é ele que efetivamente sustenta a sua continuidade ao longo do tempo e do espaço. Não obstante, o trabalho reprodutivo permanece como aquilo que é de fato invisível no cinema, já que removido tanto do seu escopo disciplinar quanto da experiência adequada do meio. Boaventura de Souza Santos (2014) descreve como a razão metonímica da modernidade ocidental fabrica a universalidade de seus objetos com base em invisibilidades desse tipo. Nesse sentido, me interessa argumentar que os estudos de cinema e mídia operem convencionalmente de acordo com uma forma de pensamento abissal que “impera por meio do esgotamento da realidade relevante” (ibid., p. 118). O trabalho reprodutivo, enquadrado como as “partes desqualificadas de totalidades homogêneas que, como tais, apenas confirmam o que existe e precisamente como existe” (ibid., p. 174), é o ponto cego sobre o qual nossas concepções modernas de sistemas midiáticos se constituem. Isso significa que os estudos de cinema e mídia não apenas são incapazes de reconhecer a relevância do trabalho reprodutivo, mas também que ativamentente o produzem como inexistente. A recusa de perspectivas reprodutivas é uma condição epistêmica para a constituição do filme como uma entidade autônoma e individual, e do cinema como um campo de produção sociocultural autocontido e estável.

A razão metonímica contrai o presente para expandir o futuro. O apelo epistêmico do “pós-cinematográfico” cresce à medida em que suprime diferenças internas ao cinema. Qualquer forma de agência que um campo de conhecimento rejeite pode muito bem se tornar o objeto de outro, mas uma totalidade que venha a ser fabricada dessa maneira será inevitavelmente “menos, e não mais, do que a soma de suas partes” (ibid., p. 167). Souza Santos nos instiga a recuperar as experiências rejeitadas pela razão metonímica a fim de identificar possibilidades emancipatórias. Ele reivindica uma sociologia gêmea da ausência e da emergência que, ao habitar as lacunas das monoculturas ocidentais, “transformaria objetos impossíveis em possíveis, ausentes em presentes” (ibid., p. 172). Este projeto se desdobra nos estudos de cinema e mídia por meio das dimensões práticas do trabalho reprodutivo. Assim como Souza Santos recorre a formas de conhecimento do Sul Global em busca de justiça cognitiva, poderíamos nos envolver com as práticas de reprodução midiática na tentativa de recuperar a multiplicidade ontológica subsumida pelo dispositivo cinematográfico. Localizado na encruzilhada entre circunstâncias locais e abstrações globais — o particular irredutível e o universal exclusivo — o trabalho reprodutivo implicado em um modo compromissado de consciência que reorienta o conhecimento do meio para o sítio. E o cinema é infinitamente maior de dentro pra fora.

Estudos de cinema e mídia baseados na ausência se beneficiam de projetos de investigação que positivizam a negatividade. Pesquisas sobre indústrias de mídia “estrangeiras” (Larkin 2008) destacam a parcialidade do cinema hegemônico do Norte Global. A exploração de infraestruturas de distribuição, tanto técnicas quanto sociais (Jenkins 2006, Hiderbrand 2009, Balsom 2017), contesta as prerrogativas da produção cinematográfica sobre a realização de qualquer filme. O que a investigação científica raramente faz, no entanto, é minar a exclusividade de sua própria credibilidade na compreensão da realidade. O trabalho acadêmico pode resgatar objetos impossíveis de trás das fronteiras abissais do pensamento moderno (assim como estou fazendo agora), mas geralmente mantém essas fronteiras intactas. A ordem disciplinar do conhecimento ainda precisa lidar com a sua própria política corporal, que deslegitima o pensamento advindo de posições subalternas (Mignolo 2000, Grosfoguel 2007). Mais do que fornecer aos estudos de cinema e mídia uma riqueza de objetos analíticos, o trabalho reprodutivo encarna as perspectivas situadas dentro do abismo. Essas perspectivas são instrumentais para a construção de uma compreensão autodiferencial da mídia, capaz de identificar a reprodução de condições de mediação como a coprodução do próprio meio. Ao nos permitir a habitar a negatividade em vez de positivizá-la, o trabalho reprodutivo fomenta modos de teorizar que desestabilizam as relações sujeito-objeto e tornam ilegítima a própria fronteira abissal do conhecimento.

Proponho que o trabalho reprodutivo deva ser aproximado da esfera curatorial não apenas por causa de meus próprios compromissos profissionais. Acredito, pelo contrário, que esses campos iluminem um ao outro de maneiras importantes. A curadoria empresta peso ao poder do trabalho reprodutivo sobre o acesso e a subsistência dos bens culturais. Ao mesmo tempo, ressaltar a dimensão prático-reprodutiva da curadoria nos permite dissociá-la das figuras de autoridade que colonizam o imaginário popular da profissão, aproximando-a da realidade de grande parte dos curadores independentes e assistentes como trabalhadores precários. Alexandra-Maria Colta (2019), por exemplo, compartilha um raro testemunho do trabalho intelectual e emocional envolvido na programação de um festival de cinema. Embora possa parecer um exercício diletante, a seleção de obras a partir de uma chamada aberta é um cálculo frequentemente realizado contra prazos adversos por uma equipe mal remunerada, dividida entre juízos de gosto e responsabilidades institucionais. A curadoria, quer se perceba ou não, se atualiza por meio da matriz de agentes que realizam a manutenção e o cuidado necessários para sustentar a coerência operacional do meio, preservando um limiar universal entre ruído e sinal enquanto mantêm a singularidade de obras individuais.

O campo curatorial ganhou proeminência como espaço de produção de conhecimento com a transformação de exposições em espaços reflexivos, o que O'Neill (2007) associa à abordagem crítica inaugurada na década de 1960 por Seth Siegelaub. Uma antologia recente organizada por O’Neill e Mick Wilson (2015) explora diferentes ramificações da pesquisa curatorial, algumas mais claramente alinhadas com as ciências modernas. No entanto, e apesar das sobreposições profissionais evocadas anteriormente, a academia pouco absorveu dessas abordagens curatoriais. Dentro dos estudos de cinema e mídia, o crescente interesse por tópicos como arquivos, culturas de tela e festivais de cinema de fato aumentou a atenção dedicada à curadoria Como forma de atividade acadêmica, entretanto, a curadoria permanece periférica. Ainda que exposições e mostras constituam uma maneira conveniente para pesquisadores compartilharem as obras que estejam investigando, os processos curatoriais em si são considerados irrelevantes na produção acadêmica. O sentimento tático é que a curadoria pode ser útil para mobilização e gestão do conhecimento, mas não avança nossa compreensão das coisas de maneira significativa.

Essa desvantagem da curadoria dentro da hierarquia moderna do conhecimento destoa do status dos curadores como especialistas. Simon Sheikh (2015) sugere que a curadoria fica aquém dos regimes científicos de verdade pelo mesmo motivo que às vezes ocorre com outras ciências sociais. As formas de pesquisa particulares à curadoria se aproximam mais do recherche jornalístico do que da Forschung científica propriamente dita: curadores reúnem evidências em vez de testar hipóteses em condições controladas. Para Sheikh, entretanto, isso não implicaria relegar a curadoria ao papel de divulgação científica. Ele propõe que projetos curatoriais devam se comportar como pesquisa em si. Dessa forma, eles fomentariam “a curadoria como imaginário político”, capaz de realizar proposições especulativas que engendrem novas possibilidades lógicas, filosóficas, estéticas e políticas (ibid., p. 40).

O que pode surgir da curadoria como um esforço equivalente no imaginário cinematográfico ou midiático? Ao se distanciar de qualquer expectativa de imparcialidade, a pesquisa curatorial se torna ainda mais enrascada no abismo do trabalho reprodutivo. Considerando que a curadoria, assim como a pedagogia, implica “agir sem saber por inteiro ou ser capaz de articular antecipadamente o que se está fazendo”, Karyn Sandlos (2004, p. 18) ressalta nossas chances de aprendizado com as obras, assim como do aprendizado em público. Nesse sentido, a contingência laboratorial tanto do cubo branco quanto da sala escura, já sob suspeita latouriana, poderia ser colocada totalmente em suspenso. Isso não significa, entretanto, uma negação completa da intermediação. Significa, pelo contrário, a aceitação derradeira das insuficiências e excessos do meio em formas reflexivas de fazer-como-saber. Arriscar-se a produzir um outro cinema e ver o que para em pé.

Entendida como forma de pesquisa-ação, a curadoria participa de uma história do que, inspirados em Natalie Loveless (2019), poderíamos descrever como intervenções na política acadêmica do conhecimento. Sob muitos nomes, essas intervenções questionam não apenas quem está autorizado a saber e o que é possível saber, mas também quais modalidades esse conhecimento pode assumir. A maneira como a pesquisa-ação rearticula fronteiras gestuais entre a produção e a disseminação de conhecimento poderia servir de antídoto para o distanciamento acadêmico convencional. Além disso, ela nos convida a tratar com formas capazes de acolher a dissonância dos nossos objetos de pesquisa.

O compromisso com a reprodução do cinema implica a participação na sua multiplicidade inata. Na medida em que apreende e exerce a realidade performativa do meio, a organização de uma mostra de filmes promove uma “ontologia prática” — na qual, nos dizeres de Eduardo Viveiros de Castro, “saber não é mais uma maneira de representar o desconhecido, mas sim de interagir com ele” (2015, p. 111). Viveiros de Castro invoca a cosmopolítica ameríndia para enriquecer a filosofia continental com instrumentos capazes de subverter a hierarquia de relações sujeito-objeto. Contra a noção estreita de representação multicultural, ele recupera o “conceito” amazônico do perspectivismo multinatural. Enquanto a primeira calcifica uma natureza subjacente e estável, o último admite a naturalidade da variação ou, ainda, a “variação como natureza” (ibid., p. 69). Como o perspectivismo, a curadoria habita um mundo no qual a transformação precede a forma. Como prática radicalmente intermediária, a curadoria nunca trabalha por si só. Ela sempre trabalha para. Curadores, mais do que filtros, são processadores de informação. Eles estão aptos a formar comunidade antes de serem gatekeepers. Em virtude de sua subordinação voluntária a múltiplas agências, eles acabam simultaneamente investidos em igualmente múltiplas perspectivas do meio. Isso significa que os curadores reconhecem o cinema como um significado comum para múltiplas referências. Organizar uma mostra é se dar conta — frequentemente sem saber — dessa diversidade ontológica: o meio com tudo dentro.

O conhecimento curatorial não remedia nossa compreensão reducionista do cinema por meio de discursos autoritários, mas sim de percepções tácitas espalhadas por toda matriz de trabalho reprodutivo. A consciência das estruturas de exclusão e das realidades que elas excluem leva a uma relação fundamentalmente herética com o meio, desconfiada de suas representações normativas. A curadoria abraça a multiplicidade inerente ao cinema em vez de proliferar seus híbridos. O novo e o outro deixam de ser variações construídas sobre uma totalidade exclusiva e se tornam expressões plausíveis do meio como um motor de diferença histórica, cultural e tecnológica. A recusa do progresso fácil expresso pela noção de “pós-cinema” inscreve tanto a pesquisa quanto a reprodução do meio cinematográfico no que Souza Santos (2014) chamou de uma axiologia do cuidado. Assumir a responsabilidade pela variedade abundante do mundo é um passo para libertar o presente da sujeição a um certo futuro, seja pela redistribuição de recursos ou pelo desarranjo das articulações de poder/saber. Possibilidades concretas de emancipação aguardam no abismo do conhecimento moderno: o cinema como insurgência, pronto para ser cultivado.