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O admirável mundo (novo) das bactérias

Detalhes, Roberto Ochoa

Começo citando as primeiras linhas de Sociedade do cansaço, do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han:

Cada época possuiu suas enfermidades fundamentais. Desse modo, temos uma época bacteriológica, que chegou ao seu fim com a descoberta dos antibióticos. Apesar do medo imenso que temos hoje de uma pandemia gripal, não vivemos numa época viral. Graças à técnica imunológica, já deixamos para trás essa época. Visto a partir da perspectiva patológica, o começo do século XXI não é definido como bacteriológico nem viral, mas neuronal.

Desconfio que seja difícil de achar na literatura filosófica uma previsão mais equivocada do que essa, feita a partir da Alemanha, onde Han é radicado, em 2010, data de publicação do original. Desde então, seria possível recensear a série de vírus que tem se espalhado, nos adoecido e nos matado, do incontrolável ebola ao coronavírus da covid-19, cujo saldo de mortos no mundo é pelo menos de 7 milhões de pessoas, contabilizando apenas os casos oficialmente registrados.

É verdade que, a favor de Han, pode-se dizer que o diagnóstico enganoso foi posto a serviço de uma hipótese engenhosa, a de que o capitalismo, nos fazendo trabalhar 24/7, havia produzido a tal sociedade do cansaço que dá título ao livro, nos tornando doentes dos nervos, como teria dito Freud no início do século XX. Já no início do XXI, os termos para o problema estão atualizados para “stress”, “síndrome de Burnout”, fazendo da saúde mental uma categoria ao mesmo tempo desejada e inalcançável. Esse será o motor do livro de Hang, que a rigor poderia ter sido escrito sem o infeliz diagnóstico (para um bom comentário de como o filósofo salta da biologia para a filosofia, ver artigo de Luís Marques no A Terra é Redonda).

Além dos vírus dos quais temos notícias frequentes, há outro erro no prognóstico de Han: o fim da era bacteriológica, vencida pela descoberta dos antibióticos. Bem ao contrário, é a proliferação desenfreada de antibióticos que tem feito com que as bactérias se multipliquem e se tornem a cada vez mais resistentes. Quando me refiro ao excesso de antibióticos, não estou apontando para a compreensão mais comum, que seria o consumo exagerado de remédios, receitados indiscriminadamente ou mesmo obtidos no mercado paralelo. Há notícias de que as milícias no Rio de Janeiro já obrigam as farmácias sob suas áreas de controle a vender antibióticos sem receitas controladas. É verdade também que a situação é tão inusitada que já existem bactérias, como a Clostridium difficile, que se instalam no intestino depois do uso de antibióticos e, numa espécie de eterno retorno, exigem a prescrição de novo antibiótico para combatê-la.

Tudo isso é fichinha perto do que de fato é a imensa quantidade de antibióticos usada na agricultura e na pecuária, cujo consumo indireto atinge, portanto, toda população. Num capitalismo predatório e de baixa ou quase nenhuma regulação, tem sido de pouca importância que os alimentos estejam sendo envenenados com agrotóxicos cuja liberação passa como os famosos jabutis nos projetos de lei no Congresso. Assim, bactérias que antes eram restritas ao ambiente hospitalar, hoje circulam nos organismos dos seres humanos não só como prova do equívoco de um filósofo, mas principalmente como indício do que significa, na prática, “viver no fim dos tempos”.

Entre as bactérias do fim do mundo está a Klebsiella pneumoniae carbapenemase (KPC), possível de ser encontrada na água, no solo, além de frutas e vegetais. Identificada pela primeira vez no ano 2000, nos Estados Unidos, é chamada de “super-resistente” por responder a poucos antibióticos, resultado de suas muitas mutações genéticas. Nos hospitais, a KPC é motivo de infecções generalizadas e, quando foi mapeada, colocou o sistema hospitalar em alerta vermelho. O problema piorou quando a KPC começou a ser identificada fora de ambientes hospitalares. No Brasil, aconteceu há 10 anos, em diagnósticos de infecção urinária em Ribeirão Preto, e no ano seguinte, 2014, nas águas do rio Carioca, na zona sul do Rio de Janeiro.

Valendo-me de rarefeitos conhecimentos biológicos, escrevi tudo isso para dizer que as bactérias, cada vez mais presentes no meio ambiente, são só mais um sintoma de uma crise climática descontrolada, cujo interesse, portanto, deveria ultrapassar em muito o campo da medicina e se amplia para o interior da vida social. Só por isso as bactérias merecem adentrar o campo de reflexão filosófica, não por terem sido superadas, mas bem ao contrário, por estarem em expansão. As queimadas na Amazônia e no Cerrado, o garimpo em terra indígena, os ciclones, as enchentes e as secas agravam um tipo de desigualdade que nós conhecemos bem demais, porque nos constitui. Já no admirável mundo novo das bactérias e dos vírus — como bem demonstrou a covid-19 —, a contaminação é um pouco mais democrática. Talvez ainda não o suficiente para ser contida, pelo menos não enquanto houver humanos em posição de poder cuja alienação alcança inclusive a sua própria condição humana.