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Omelete de serpente

Mariana Guardani

Sobre as consequências da luta contra o aumento de 2013, provavelmente a tese mais estabelecida é a do “ovo da serpente”. Segundo essa tese, os eventos daquele ano teriam criado as condições para o surgimento e a ascensão de um projeto político autoritário que se consolidou com o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Neste artigo, como já fizeram outros autores anteriormente, pretendemos questionar essa tese, apresentando novos argumentos contrários e alternativos. Para isso, analisaremos primeiramente as versões de duas autoras com posições políticas distintas que acreditamos representarem bem a tese: Consuelo Dieguez1 e Marilena Chauí2.

A jornalista Consuelo Dieguez escreveu sua versão da tese do “ovo da serpente” em um livro homônimo publicado em 2022. Para ela, a novidade dos protestos de junho de 2013 foi a presença expressiva de manifestantes não identificados com a esquerda. Esses novos manifestantes, ao experimentarem os protestos, teriam se dado conta de que “se estavam contra a esquerda, por não gostarem do governo, só poderíam ser de direita” (p. 31). A presença nos protestos de influenciadores digitais como Marcelo Reis, administrador da página Revoltados Online, teria dado um norte para estes recém-descobertos ativistas que passaram a formar um “exército de seguidores virtuais que aguardavam as instruções do líder” (p. 32). Para a autora, esse seria o início de um ativismo de direita que levaria às manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff e posteriormente à eleição de Jair Bolsonaro.

Marilena Chauí concorda com essa conclusão, embora o argumento apresentado pela filósofa seja mais sofisticado, merecendo uma discussão mais cuidadosa que faremos a seguir. Diferente do recente livro de Dieguez, o artigo de Chauí data de apenas uma semana após as maiores manifestações de todo o ciclo, ocorridas no dia seguinte ao anúncio da revogação do aumento. No entanto, a autora se referiu a seu próprio artigo diversas vezes nos anos seguintes, como por exemplo no contexto das manifestações pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff, relacionando-as aos protestos de 2013. Nessas referências, a autora afirma que havia nos protestos “um caldo de cultura fascista”,3 uma vez que os manifestantes não levavam em conta “os conflitos de interesses e de poderes econômico-sociais na sociedade”,4 e, com isso, corriam o risco de “colocar água no moinho dos mesmos poderes econômicos e políticos que organizaram grandes manifestações de direita na Venezuela, na Bolívia, no Chile, no Peru, no Uruguai e na Argentina”.

A luta contra o aumento das tarifas de transporte público de 2013

Em pelo menos dois sentidos, a grande onda de protestos de 2013 não foi um fenômeno inusitado. Em primeiro lugar, em várias ocasiões na história do Brasil ocorreram grandes manifestações contra aumentos das tarifas de transporte público ou por melhorias nos serviços de mobilidade urbana.5 O cotidiano marcado por horas em ambientes lotados e parados no trânsito gera um sentimento de insatisfação generalizado que pode desencadear uma revolta popular. Em segundo lugar, houve uma série de protestos contra o aumento das tarifas de transporte público no Brasil desde a Revolta do Buzu em Salvador em 2003. No ano seguinte, manifestantes em Florianópolis conseguiram a redução da tarifa de ônibus, o que se repetiu em 2005. Esses eventos inspiraram a constituição do Movimento Passe Livre (MPL) durante o Fórum Social Mundial daquele ano. A partir daí, em várias cidades do Brasil, cada aumento de tarifa de transporte público foi contestado por manifestações organizadas pelo MPL.

Os protestos de 2013 não foram inéditos, tampouco pode-se dizer que foram completamente espontâneos. Embora não tenham sido as primeiras daquele ano, as manifestações em São Paulo foram as maiores e com maior repercussão nacional, tendo inspirado muitos dos atos subsequentes em outras partes do país. Por aqui, os protestos foram chamados e organizados pelo MPL com a intenção, posteriormente declarada por alguns de seus membros6, de provocar uma revolta popular que escapasse ao controle da própria organização. Para incitar a revolta, a tática foi criar uma escalada de eventos com intervalos curtos, bloqueando locais de grande circulação da cidade, em uma sequência de ações diretas cada vez mais radicais e descentralizadas. A força dessa revolta incontrolável obrigaria o governo a recuar a fim de restabelecer a ordem.

A interpretação do MPL sobre a revolta do Buzu é que uma liderança ilegítima teria negociado uma pauta não acordada com o movimento para conter a revolta, a saber, meia tarifa para estudantes. Dessa forma, o MPL entendia que seu papel, além de acender a faísca da revolta, seria garantir a conquista da pauta explicitada desde o início das manifestações, ou seja, a revogação irrestrita do aumento.

No início da década, manifestações contra o aumento da tarifa em São Paulo começaram a atrair novos participantes com um perfil específico: jovens de classe média estabelecida ou ascendente, a maioria provenientes das periferias da cidade, muitos dos quais, ao contrário de seus pais e avós, haviam ingressado na universidade. Vários desses formaram suas convicções políticas por meio dos atos e eventos que proliferaram durante esse período, como a Marcha da Maconha, a Marcha da Liberdade, a Marcha das Vadias, o Ocupassampa e as próprias lutas contra os aumentos de tarifa. A crescente presença desses jovens nas manifestações reflete um fenômeno internacional que teve início com a Primavera Árabe, passou pelo movimento 15M na Espanha, pelo Occupy Wall Street em Nova Iorque e culminou no 15O, um chamado global para a ocupação de praças em 2011.

Paolo Gerbaudo descreve esse ciclo de protestos como anarcopopulista.7 O termo enfatiza, por um lado, o caráter horizontal da organização desses eventos, o que os aproxima do ciclo anterior no início dos anos 2000, marcado por manifestações contestatórias às cúpulas internacionais como a OMC, o FMI e o G8. Por outro lado, ressalta o caráter inclusivo e antielitista desse novo ciclo. A retórica populista antielite econômica, claramente ilustrada pelo lema do Occupy Wall Street “somos os 99%”, é de fácil assimilação e atrativa para aqueles com pouca ou nenhuma experiência política.

A retórica anarcopopulista em São Paulo começou a se desenvolver durante os movimentos citados anteriormente por meio de plataformas de mídias sociais como Facebook e Twitter. Em outra frente, páginas como Revoltados Online, Movimento Contra a Corrupção e Anonymous Brasil, que foram importantes meios de convocação para os protestos a partir do dia 18 de junho, somaram um sentimento anticorrupção a essa retórica. Assim, os protestos atingiram proporções enormes ao articular uma grande gama de demandas em torno da retórica populista.

Além de um sentimento antielite, ambos os pólos representados pelo conceito de anarcopopulismo são caracterizados por uma desconfiança com relação à institucionalidade política. Marilena Chauí caracteriza esse sentimento como “um pensamento mágico” que “se ergueu contra a política, reduzida à figura da corrupção”,8 o que teria desaguado previsivelmente em manifestações conservadoras e mesmo nazifascistas. No entanto, essa visão desconsidera que a política extra ou antipartidária é, sim, política, e entendida como tal por aqueles que a constroem. A ausência de mediações institucionais tradicionais, longe de uma aspiração a um governo ditatorial, é uma forma de organização que tem uma história própria que remonta aos movimentos dos anos anteriores citados acima, assim como à onda de protestos antiglobalização, e que tem como grande referente o levante zapatista.

Omelete de serpente

Quanto ao argumento de Consuelo Dieguez de que as manifestações de 2013 teriam marcado o início de um ativismo de direita que culminaria com o impeachment de Dilma, cabe pontuar que os manifestantes que participaram dos atos pelo impeachment não são os mesmos que estiveram nos protestos de 2013. Em primeiro lugar, o perfil etário é completamente distinto. Enquanto nos primeiros atos mais da metade dos manifestantes tinha até 30 anos, nos últimos essa porcentagem não chega a 20% (Tabela 1). Além disso, as observações feitas por pesquisadores nos locais indicam que, enquanto nos protestos de 2013 as pessoas compareciam com amigos, nos atos de 2015/16, elas compareciam com suas famílias. Em uma avaliação mais direta, pesquisas do Monitor do Debate Político no Meio Digital, conduzidas em 2016 e 2019 com amostras representativas da população paulistana, são consistentes e revelam que somente 16% daqueles que participaram dos protestos de 2013 se manifestaram a favor do impeachment de Dilma. Em contraste, 31% desse mesmo universo participou de protestos contra o impeachment de Dilma.

junho de 2013 pró-impeachment de Dilma
idade 17/06/2013 20/06/2013 12/04/2015 16/08/2015 13/03/2016
16–30 anos 78% 51% 19% 11% 9%
31–50 anos 41% 45% 40% 49% 52%
> 50 anos 4% 5% 41% 40% 40%

Tabela 1: Comparação das faixas etárias dos manifestantes de junho de 2013 e dos atos pró-impeachment de Dilma Rousseff. (Fonte: Datafolha.)

Além disso, os dados dessas pesquisas contradizem a afirmação de Dieguez. Se houve uma mudança na identificação política das pessoas presentes nos protestos de 2013, não foi no sentido de um aumento no número de pessoas identificadas com a direita, mas sim com a esquerda. Em 2016, a pesquisa revelou que 16% dos paulistanos haviam participado de algum dos protestos de 2013. Dentre esses, apenas 15% se identificaram como sendo de direita ou centro-direita, contra 41% que declararam se identificar como de esquerda ou de centro-esquerda. 35% responderam “nada disso” ao serem questionados sobre sua posição no espectro político. Em 2019, a porcentagem de pessoas que afirmaram ter participado dos protestos de 2013 diminuiu significativamente, caindo para 7%. Dentro desse grupo, a porcentagem de indivíduos identificados como sendo de direita ou centro-direita caiu, situando-se dentro da margem de erro, para 12%, enquanto a parcela de pessoas identificadas com a esquerda ou a centro-esquerda aumentou expressivamente para 62%. A porcentagem de pessoas que responderam “nada disso”, por sua vez, caiu para 23%9.

2016 2019
manifestantes de 2013 população geral manifestantes de 2013 população geral
esquerda 36% 12% 49% 15%
centro-esquerda 5% 4% 13% 5%
centro 2% 2% 2% 2%
centro-direita 8% 5% 5% 5%
direita 7% 8% 7% 11%
nada disso 35% 53% 23% 51%
não sabe 6% 14% 1% 11%

Tabela 2: identidade política dos manifestantes de 2013 e da população geral aferidas em 2016 e 2019 em São Paulo (Fonte: Monitor do Debate Político no Meio Digital)

A queda entre 2016 e 2019 no número de pessoas que afirmou ter participado dos protestos de 2013 é a princípio difícil de explicar. Logicamente esse número deveria ser o mesmo, sugerindo um esquecimento ou relutância por parte dos entrevistados em afirmar ter participado dessas manifestações. Mesmo assim, podemos oferecer duas interpretações consistentes com as observações.

A primeira interpretação parte do pressuposto de que a distribuição das pessoas no espectro esquerda/direita não foi afetada pela diminuição no número de pessoas que declararam ter participado da luta contra o aumento. Nesse caso, podemos destacar duas mudanças expressivas entre as pessoas que disseram estar nos atos de junho de 2013, comparando os anos de 2016 e 2019: 1) expressivo crescimento daquelas que se identificaram como de esquerda ou centro-esquerda e 2) queda no número das que responderam “nada disso”. Essas mudanças indicam o exato oposto do afirmado por Dieguez: o significativo contingente de pessoas que estavam em 2013 e em um primeiro momento “não tinham definição ideológica” não foi se tornando mais de direita, e sim de esquerda.

Se, no entanto, a queda no número de pessoas que declararam ter participado das manifestações de 2013 e a posição no espectro esquerda/direita não forem eventos independentes, precisamos de outra explicação. Neste caso, nossa hipótese é de que pessoas sem posição política e de direita esqueceram ou não quiseram dizer que estavam nas manifestações contra o aumento da tarifa. Isso significaria que essas pessoas não veem a luta contra o aumento como algo relevante ou a ser reivindicado, enquanto as de esquerda sim.

Qualquer das duas interpretações, ou — o que consideramos mais provável — uma combinação das duas, descarta a hipótese de que houve um aumento de pessoas identificadas com a direita entre aqueles que participaram das manifestações de 2013 e consideram essa experiência relevante.

Polarização

Os dados empíricos evidenciam que os manifestantes de 2013 que não possuíam identificações políticas não se tornaram de direita, tampouco aderiram em massa aos protestos pelo impeachment. No entanto, o que podemos afirmar é que esses protestos contribuíram para o processo de polarização da esfera pública nacional.

Estudos sobre mídias sociais ilustram o processo que ocorreu em 2014 nas plataformas digitais. Em 2013, as páginas do Facebook relacionadas à política estavam organizadas da seguinte forma, em relação ao padrão de interação dos usuários: de um lado, havia páginas de ONGs e movimentos sociais, tanto de esquerda quanto de direita, intermediadas por páginas anticorrupção; do outro, estavam as páginas de partidos e políticos. No ano seguinte, em 2014, as páginas anticorrupção começaram a se alinhar com as páginas de direita, e a se afastar das páginas de esquerda. Ao mesmo tempo, as páginas dos movimentos sociais e das ONGs passaram a se alinhar com as páginas de partidos e políticos de esquerda.10

Essa dinâmica observada nas mídias sociais reflete um processo de polarização das identidades políticas que tem sido notado desde o início da década. Quando solicitados a se posicionar em uma escala de 1 (esquerda) a 10 (direita), apenas 17% dos brasileiros escolhiam os extremos (1 e 2, ou 9 e 10) em 2010. Até 2017, esse índice quase dobrou, chegando a 32%, com um aumento consistente entre esses dois momentos.11 Como vimos, junho de 2013 contribuiu para a polarização ao levar pessoas à esquerda.

Conclusão

A revolta popular de 2013 tensionou o arranjo institucional estabelecido desde o período da redemocratização, marcado por um sistema político blindado em que posição e oposição se dissolvem em um mesmo “caldo de cultura comum indistinto”.12 Esse tensionamento provocado por um grande número de novas pessoas externas à esfera política institucional reaviva a disputa política, estabelecendo uma fronteira mais clara e compreensível entre esquerda e direita. Assim, o processo de polarização tem um lado positivo, pois surge e promove um processo de fortalecimento da democracia.

Por outro lado, a polarização das identidades corre o risco de não ser acompanhada por um processo de politização da sociedade. Em certa medida, isso é o que tem sido observado, uma vez que esse processo não veio acompanhado de uma polarização em igual proporção nas opiniões políticas.13 O caráter espetacular das manifestações, observado por Chauí,14 pode ter contribuído para esse fenômeno. Assim, cada vez mais pessoas têm identidades fortes e uma maior animosidade em relação àqueles que possuem identidades opostas, mas não necessariamente posições políticas conflitantes. Esse processo, referido na literatura como “polarização afetiva”,15 resulta em uma forma beligerante de disputas políticas que lembra as rivalidades entre torcidas adversárias.

Os dados empíricos não corroboram a tese de que manifestantes que estavam nas ruas em 2013 tenham adotado uma identidade de direita. Pelo contrário, já em 2016 a proporção dessas era apenas metade daquelas que se identificavam com a esquerda. Nos anos subsequentes, a reação à direita parece ter tido o efeito inverso à tese do ovo da serpente, impulsionando manifestantes anteriormente sem posição política para a esquerda. Como sabemos, em 2018, um candidato de extrema direita foi eleito, seguindo uma tendência observada em diversos outros países. Quatro anos depois, foi a vez de uma candidatura de centro-esquerda colher os frutos eleitorais das manifestações de 2013.