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2013 e o movimento feminista

Mariana Guardani

Quem tem boa memória, se preocupa com o Brasil e defende os direitos humanos vai se lembrar que em junho de 2013, quando nosso país convulsionou e mergulhou num processo complexo do qual jamais reemergimos, houve quem chamasse as jornadas de junho de protesto. Outros chamavam o que se passava nas ruas de manifestação. Muitos outros termos foram empregados à época — baderna, vandalismo, quebra-quebra, depredação. Em 13 de junho de 2013, dez anos atrás, o apresentador José Luiz Datena, ao cobrir ao vivo a multidão que marchava na Avenida Paulista e a repressão truculenta da Polícia Militar de São Paulo para o Brasil Urgente, puxou uma enquete e perguntou aos seus telespectadores: você é a favor de protesto com baderna? Datena se surpreendeu com o resultado, a maioria dos telespectadores responderam “sim” e deu um cavalo de pau narrativo. O público do Datena, inesperadamente, tinha simpatia pelos manifestantes. Ou, ao menos, parecia comungar da angústia difusa que levou tanta gente às ruas. Até ter em mãos o resultado de sua enquete, Datena vinha adotando uma postura extremamente crítica — por vezes violenta — diante das jornadas de junho. Quando lhe caiu a ficha e se deu conta de que sua audiência não compartilhava da sua indignação, Datena mudou de ideia. O apresentador, que vinha criticando ferrenhamente o que chamava de baderna e depredação, passou a dizer que o que se passava na Paulista eram manifestações pacíficas. Nas palavras dele, “um show de democracia”. “Fazia muito tempo que não via uma manifestação democrática e pacífica assim. É o povo”, bradou.

A verdade é que Datena não foi o único a ser pego de surpresa pelas jornadas de junho e seus desenlaces. Não foi o único a olhar estupefato para o Brasil. Talvez seja esse, inclusive, o único consenso do qual direita e esquerda comungam em junho de 2013: todos nós nos surpreendemos em algum momento e sentimos que nossos repertórios não davam conta de explicar o que experimentamos nas ruas.

Dez anos depois, nossos repertórios seguem, em boa medida, insuficientes. Estamos em dívida com a nossa história. Uma década se passou e as hipóteses sobre o que precipitaram as jornadas de junho, seu vulto, suas múltiplas faces e suas consequências são frágeis. O Brasil emendou uma crise na outra, sabemos. A esquerda teve que adotar uma postura rasgadamente pragmática, apostar em alianças improváveis, construir geringonças. O tempo e os recursos eram escassos. O problemas foram muitos. Reação, resistência e resiliência monopolizaram a ordem do dia e entender o passado recente, esse esforço que requer máxima valentia, ficou para depois.

Pois o depois chegou. É agora. E dentre as muitas lições de casa por fazer, está essa: precisamos olhar para as jornadas de junho e entender que papel as mulheres e o movimento feminista desempenharam nesse momento de ebulição e surpresas.

No artigo “Junho das mulheres”, publicado recentemente pela revista AzMina, a jornalista Fhoutine Marie afirma que é preciso ter fresco na memória a participação das mulheres nos protestos de 2013 e que falar do tema é falar de uma longa tradição de agência feminina na política brasileira. Fhoutine Marie sugere caminhos interessantes, partida pontos de ricos para quem deseja refletir sobre o papel das mulheres nas jornadas de junho. Ela nos recomenda lembrar dos rostos femininos alçadas à condição de protagonistas em junho de 2013 e fala de duas figuras relevantes: Mayara Vivian e Elisa Quadros. Vale a pena seguir as pistas de Fhoutine Marie.

Em 2013, a paulistana Mayara Vivian era integrante do Movimento Passe Livre (MPL). Geógrafa, liderança da importantíssima da Casa do Povo, hoje ela tem 33 anos e segue militando pela tarifa zero. À época, a imprensa a chamava de porta-voz do MPL. Ela negava ter tal status e afirmava (aliás, afirma até hoje) que o movimento tinha caráter horizontal e não-partidário. Não a ajudou o fato de ter sido exposta exatamente num momento de tamanha fervura política. O Brasil estava à flor da pele. Em carne viva. Mayara estava no epicentro desse terremoto político e teve sua imagem associada a inverdades e tratada com enorme hostilidade pela mídia mainstream.

Em entrevista concedida ao portal G1 em junho deste ano, Mayara Vivian rejeita uma das hipóteses frágeis que circulam a respeito de junho de 2013. Diz não ver as jornadas como um momento-chave que culminou na ascensão de uma direita burra e bruta. 2013 veio antes de 2015. 2015 veio antes de 2018. 2018 veio antes dos 700 mil mortos pelo vírus que Bolsonaro fez questão de não combater. A marcha do tempo é inegável e imparável. Mas Mayara Vivian, um dos rostos femininos mais importantes das jornadas de junho, tem razão. Precisamos ter cautela na busca por causalidade. Forçar a mão faz com que a gente, na sanha de entender tudo, não entenda nada. Em outra entrevista recente, concedida ao portal Metrópoles, Mayara diz que continua defendendo as causas que a levaram para as ruas em 2013, mas sem a energia de menina. Pondera: “não é à toa que a juventude é um ator revolucionário”.

Em 2013, Mayara estampou as capas de todos os jornais e foi chamada de coisas inomináveis — como toda mulher que ousa ter opiniões e defendê-las com afinco.

Outra personagem feminina marcante incessantemente retratada — quase sempre com virulência — pela mídia é Elisa Quadros. Em 2013, o Brasil a conheceu como Sininho. Ela e o companheiro, conhecido pela alcunha Game Over, eram, à época, chamados de black block e vândalos diuturnamente na mídia. Mayara era a cara feminina dos protestos paulistanos, Sininho era a cara feminina dos protestos cariocas. A cena de Sininho detida e a caminho da delegacia, dentro de um ônibus, recebendo o carinho de Game Over rodou o país. Está até hoje impressa na retina de muita gente. Em 2018, a Justiça determinou a prisão de 23 ativistas por participarem de manifestações consideradas violentas. As penas variaram entre cinco e sete anos em regime fechado. O grupo de Sininho foi acusado de formação de quadrilha, corrupção de menores, dano qualificado, resistência, lesões corporais e posse de artefatos explosivos. Tragicamente, Luiz Carlos Rendeiro Júnior, o Game Over, se suicidou em maio de 2023. Luiz Carlos e Elisa continuaram juntos até sua morte. Juntos, tiveram três filhos. Uma trama digna de novela, mas que tem personagens de carne e osso que pagaram um preço alto e bastante real pela militância.

Formada em cinema, Elisa falou à Agência Pública em 2016. Às jornalistas, Elisa disse que queria refazer a vida, que buscava trabalhos free-lancers, que não era black block e que a Sininho foi uma construção midiática propaganda à sua revelia. A entrevista emociona. Revela uma mulher traumatizada, que tem muito medo de ser bombardeada novamente pela imprensa, mas que decide falar porque tem mais medo ainda de não poder contar sua versão da própria história. “A mídia é muito mais poderosa do que a prisão. A destruição da identidade é eterna”, disse. E arrematou:

No Ocupa Cabral, até por uma questão de proteção, a gente fez uma roda, e nos davam um apelido. Então a Disney reinou, tinha Pocahontas, e eu era “Sininho” porque eu era bravinha, pequenininha, e sempre com as minhas botinhas, sapatinho de bailarina, sabe? Tipo de fadinha mesmo. Ali foi Sininho. Que eu gostava até então. Agora eu não gosto mais não. (…) Nesse país machista em que a gente vive, destruir mulher é fácil. Branca, hétero, classe média. Usaram muito o argumento de “rebelde sem causa”. E o moralismo do machismo. Moralismo religioso: cara de vagabunda, destruidora de lares, “ela usa sedução para conseguir as coisas”… Virei “líder de black blocs”. Gente, pelo amor de Deus, eles não têm líder, eles usam uma tática, começa por aí. Eu nunca usei a tática, sou de outras táticas, por isso que eu nunca tampei o rosto.

Outro rosto feminino que poderia estar no hall lembrado por Fhoutine é o de Nina Cappello Marcondes. Um dos marcos das jornadas de junho de 2013 foi a entrevista concedida por dois integrantes do MPL ao programa Roda Viva. Lucas Monteiro de Oliveira e Nina. à época, Nina estudava direito na USP. Mudou-se para Goiás, onde foi selecionada em um concurso público e se tornou defensora da 1ª Defensoria Pública Especializada de Famílias e Sucessões de Valparaíso de Goiás. Nina, assim como Mayara e Elisa, foi alvejada pelo machismo em rede nacional. O modus operandi é sempre o mesmo… Os traços e o corpo de Nina foram mais debatidos do que suas ideias e a mídia a tratou como liderança embora ela tenha repetido infinitas vezes que o MPL não funcionava assim.

Em 2011, Lucas e Nina assinaram um publicado pela Folha de S. Paulo sobre mobilidade urbana e os aumentos nas tarifas de ônibus. Dois anos antes das jornadas de junho, Lucas e Nina já lutavam pela tarifa zero de maneira bastante articulada. Pautavam com consistência o debate público. Contudo, naquele 21 de junho de 2013 nos estúdios da TV Cultura, Nina foi exposta e seus argumentos, bem razoáveis, foram tratados como expressão pueril de menina privilegiada e incoerente. Mais uma vez, um rosto feminino sob os holofotes teve suas posições desidratadas, sua aparência escrutinada e suas atitudes condenadas.

As histórias de Mayara, Elisa e Nina são provas incontestes de que a violência política de gênero que se abate sobre as mulheres que querem incidir, transformar. Ser agentes de mudança. O machismo é implacável com todas elas. Engolfa todas elas rapidamente. Quer todas desacreditadas. Quer nos mastigar e nos cospe fora.

Mas Fhoutine Marie nos presenteia com uma interpretação menos sombria dessas histórias e da nossa história. Nos lembra de uma cadeia de causalidade que soa, essa sim, adequada. 2013 veio antes de 2015, o ano em que marchamos pelo país — primeiro contra Cunha, depois por todas nós, por nosso bem-viver, por autonomia e liberdade. Nossa primavera. 2015 veio antes de 2016, o ano em que meninas secundaristas ocuparam escolas e mostraram para o país inteiro o que significa pra valer o slogan “lute como uma garota”. 2016 veio antes de 2018, o ano do #elenão. O ano em que elegemos Marielle, 5ª vereadora mais votada do Rio. E 2018 nos trouxe aqui. Duríssimas na queda. Capazes de fazer tudo de novo e de novo e de novo e de novo.

É como canta Gal Costa: “nada do que fiz/por mais feliz/está à altura do que há por fazer”.

A chamada geração #metoo, protagonista de uma nova onda do movimento feminista, é fruto do caldo das jornadas de junho. Junho de 2013 é um marco na história da luta por direitos de meninas e mulheres. Ruas, redes, casas legislativas, cortes, salas de aula, salas, salas de reunião onde CEOs definem o futuro de grandes corporações… feministas se propuseram, na última década, a ocupar todos os espaços onde ideias nascem, onde decisões são tomadas. Essa rebelião imparável rendeu e ainda renderá vitórias maiúsculas. Nos últimos dez anos, feministas inventaram com muita valentia infinitas novas maneiras de lutar. Operaram mudanças que merecem ser celebradas. Construíram parcerias estratégicas intergeracionais. Perseguiram uma interseccionalidade verdadeira. Inventaram narrativas públicas eficientes. Tentaram estabelecer interlocuções felizes com o Estado (ora de modo propositivo, ora lançando mão de ferramentas de pressão). Fizeram tudo ao alcance para dar solidez a uma infraestrutura cívica vibrante. Mayara, Elisa e Nina dão feição a tudo isso. Suas trajetórias devem ser lembradas e celebradas.

Há, claro, efeitos rebote violentos perpetrados por detentores de privilégios pouco dispostos a conceder direitos e corrigir desigualdades. Sempre há. Feministas estão sempre às voltas com artífices do backlash. Estão sempre vigilantes, convivem sempre com a ameaça de uma restauração conservadora. Sujeitos indiferentes à verdade e interessados na manutenção do velho normal não dão sossego. Nos círculos em que habitam o diabo faz as unhas. Com esses sujeitos, não é possível contemporizar. No livro Políticas do sexo, Gayle Rubin diz que onde quer que haja polaridade, há uma tendência infeliz em pensar que a verdade está no meio termo. Com esses caras, a falácia do meio termo é perigosíssima. Mas o movimento segue em movimento, a despeito deles. Ou por causa deles.

Se hoje você faz uma busca de informações sobre o assassinato de George Floyd na Wikipedia, vai encontrar uma entrada cujo título é “Murder of George Floyd” e que começa com uma descrição visceral e precisa: “On May 25, 2020, George Floyd, a 46-year-old black man, died in Minneapolis, Minnesota, after Derek Chauvin, a white police officer, knelt on his neck for almost nine minutes while he was lying face down handcuffed on the street”.

Tanto o título quanto o parágrafo de abertura, gráficos porém de agudeza adequada e necessária, são resultado de muita luta. Logo após o crime, ocorrido em 2020, editores voluntários dispostos a colaborar na redação desta entrada da Wikipedia iniciaram uma batalha duríssima. Houve quem defendesse que o título deveria nomear o acontecido como “morte” e não “assassinato”. Muitos questionaram o parágrafo inicial por considerá-lo excessivamente detalhado e defenderam que a Wikipedia deveria zelar por valores como a neutralidade e a concisão. A controvérsia reacendeu uma polêmica recorrente que, de tempos em tempos, volta à ordem do dia entre editores voluntários sobre neutralidade e imparcialidade. Alguns editores voluntários defenderam que tanto a entrada sobre o assassinato quanto a entrada biográfica de George Floyd deveriam mencionar seus antecedentes, suas passagens pela polícia. Houve também quem propusesse chamar os protestos que sucederam o crime e tomaram as ruas dos Estados Unidos de “riots”, termo que o Merriam-Webster define como “a violent public disorder, public violence, tumult, or disorder” e que o Cambridge Dictionary define como “an occasion when a large number of people behave in a noisy, violent, and uncontrolled way in public”.

Do outro lado, muitos defenderam que a morte de Floyd era um assassinato inconteste, um crime registrado em vídeo sobre o qual não pairavam dúvidas. Tinha, assim, que ser nomeada da maneira devida. Defenderam que a violência gráfica do parágrafo acima era uma descrição fiel dos fatos que retinas sensíveis jamais esquecerão. Defenderam que que as mobilizações que sucederam o crime deveriam ser chamadas de “protests” e não de “riots”, termo que o Merriam-Webster define como “a solemn declaration of opinion and usually of dissent” e que o Cambridge Dictionary define como “a strong complaint expressing disagreement, disapproval, or opposition”. Atualmente, quem busca saber sobre George Floyd na Wikipedia em inglês encontra referência a protestos pacíficos e também a manifestações que supostamente terminaram. O trecho da entrada biográfica de George Floyd a esse respeito diz que “demonstrations in some cities have descended into riots and widespread looting”.

A digressão a respeito da Wikipedia interessa na medida em que nos permite pensar sobre o que está em jogo quando se fala das jornadas de junho, de movimento, mulheres e memória. Quem busca por Elisa Quadros na Wikipedia encontra, atualmente, uma página em que se lê uma recomendação: “página para eliminar”. Se a recomendação for reflexo de um desejo de Elisa de se reinventar sem as muitas pechas que lhe foram impostas, beleza. Se a recomendação for reflexo de um dissenso a respeito da importância dessa mulher e de todas as mulheres que foram às ruas em 2013, peitemos. Mayara, Elisa e Nina precisam ser lembradas e comemoradas — se assim o quiserem.