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Bater carteiras

Eu estava pensando nos vulcões, em por que interessaram à Carmela e a mim, enquanto zanzava pela seleção dos seus trabalhos no site da Galeria Vermelho e li, numa montagem de vinte instantâneos sucessivos do trabalho Figurantes, de 2016, a expressão BATEDORES DE CARTEIRA. No trabalho, os batedores de carteira eram acompanhados por outros meliantes, sendo, portanto, contingente o fato de estarem justamente eles a percorrer o painel de LED nos instantâneos exibidos na página que visitei enquanto pensava nos vulcões. Em 2021, em Roma, eu tinha tomado aulas com um batedor de carteira, ou melhor, um ilusionista que se apresentava batendo carteiras, relógios, celulares e que tais no palco, o que para o propósito deste texto equivale, pois os prestidigitadores também constam da escória que a Carmela emprestou do Marx.

 

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Roués [rufiões] decadentes com meios de subsistência duvidosos e de origem duvidosa, rebentos arruinados e aventurescos da burguesia eram ladeados por vagabundos, soldados exonerados, ex-presidiários, escravos fugidos das galeras, gatunos, trapaceiros, lazzaroni [lazarones], batedores de carteira, prestidigitadores, jogadores, maquereaux [cafetões], donos de bordel, carregadores, literatos, tocadores de realejo, trapeiros, amoladores de tesouras, funileiros, mendigos, em suma, toda essa massa indefinida, desestruturada e jogada de um lado para outro, que os franceses denominam la bohème [a boemia].”11

Esses tipos, elencados em 1852 por constituírem a base socialmente imprestável que o aventureiro Luís Bonaparte modelou ao seu gosto, fazendo passar-se por povo, na Sociedade Beneficente 10 de Dezembro, “beneficente na medida em que todos os seus membros, a exemplo de Bonaparte, sentiam a necessidade de beneficiar-se à custa da nação trabalhadora”, logo serão compreendidos em outra chave.

Os donos de bordel, carregadores, literatos, tocadores de realejo, trapeiros, amoladores de tesouras, funileiros e mendigos parecerão sujeitos autônomos, altivos, que transitam à margem, zombam do capitalismo, dão de ombros. Nos círculos ligados à arte moderna, os párias, os desajustados, os desclassificados passarão de massa anódina a modelo: prostitutas, jogadores e bebedores de absinto pendurados nas paredes das galerias, encarando desafiadoramente os espectadores, mistificados.

Vagabundos, soldados exonerados, ex-presidiários, gatunos, trapaceiros e lazarones convocados ou anunciados pelo painel luminoso pendurado na parede da galeria. Haveria nos Figurantes uma glamourização de filiação moderna?

Sob a designação de “figurantes”, os tipos do elenco do Marx perdem a altivez e reassumem a passividade, mas também adquirem certa simpatia, tornam-se inimputáveis, são expugnados das faltas morais e da disposição contrarrevolucionária.22 Haveria condescendência nos Figurantes? Dar protagonismo aos excluídos, mas fazê-lo tarde demais, quando são inofensivos.

 

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Diante da crescente integração das classes trabalhadoras ao estado de bem-estar social na Europa da segunda metade do XX, alguns autores identificados à tradição marxista depositaram no lumpemproletariado uma última esperança de abolir a ordem social capitalista. Em outro contexto, ou antes na outra face do mesmo contexto, uma então colônia francesa na África onde o estado de bem-estar não chegaria a ser implantado mas sua imagem já colonizava aspirações assimilacionistas, Frantz Fanon convocou o lumpemproletariado para a revolução. Ele reteve o termo do Marx, embora se referisse a uma subclasse urbana recém-chegada e condenada à migração circular, indo e vindo da localidade de origem sem conseguir se firmar, desempregada, despossuída, negligenciada pelo Estado, um estrato típico dos países da periferia do capitalismo a que o escárnio presente no termo lumpemproletariado e a pusilanimidade, o arrivismo e o veio embusteiro dos tipos listados no “18 de Brumário” não se adequam.

Aqui, nos últimos anos, presenciamos o aliciamento massivo dos desocupados, inaptos, charlatães, achacadores, estelionatários, fraudadores do INSS, do Bolsa Família, do Auxílio Emergencial, filhas de militares para-sempre-solteiras, viúvos mumificados da monarquia, parentes sem cargo de políticos sem mandato, pseudocientistas e pseudointelectuais escanteados ou expulsos das universidades, grileiros, garimpeiros, jagunços, agroboys, cantores sertanejos, subcelebridades, aspirantes a influenciadores digitais, ex-policiais expulsos das forças, seguranças particulares, parentes de milicianos, idosas traficantes de crack, motoristas de caminhão, pilotos de harley davidson sem capacete, padres pedófilos, pastoras depravadas, pastores usurários, vendedoras de açaí, lutadores de MMA, atiradores esportivos, caçadores de javaporcos, contrabandistas de joias, colecionadores ilegais de pássaros silvestres, um bando de poucos escrúpulos cujo ressentimento pôde muito rapidamente ser cooptado e convertido em ódio, violência, escatologia, destruição, constituindo uma milícia bem ao feitio da Sociedade 10 de Dezembro, em favor de um soldado exonerado, ou melhor, capitão reformado cuja ficha corrida reúne uma quantidade recorde das características percebidas pelo Marx no Napoleão farsesco.

 

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Na montagem dos Figurantes no hall de entrada da Galeria Vermelho, em 2016, o painel de LED ocupava toda a largura da parede.33 Apesar das grandes dimensões, só duas letras se mostravam simultaneamente, deslocando-se em velocidade da direita para a esquerda. Enormes, pareciam dimensionadas para ser lidas à distância, destinadas à rua, calibradas com a fachada do prédio, donde a sensação, para o observador postado diante delas, sem recuo, de ter à vista apenas um fragmento do painel. A leitura era prejudicada: duas ou três letras grandes demais que, como soe ocorrer aos caras, fugiam correndo.

 

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Algo ainda sobre o texto do Marx. Os tocadores de realejo nunca seriam singularizados numa análise estritamente sociológica do lumpemproletariado. Nem os amoladores de tesouras. Sua menção tem efeito burlesco. Para expor o “velho e esperto roué” que “concebe a existência histórica dos povos e as suas grandes ações oficiais como comédia no sentido mais ordinário possível, como uma mascarada em que os belos figurinos, as palavras e os gestos grandiloquentes apenas servem para encobrir a mais reles safadeza”, Marx incorporou a comicidade à própria escrita e, impetuosamente, encenou ele também.

 

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A transmissão no painel se encerrava com a menção explícita cf. MARX — O 18 BRUMÁRIO, isentando a artista da autoria da lista de figurantes,44 mas não o observador de, tendo decifrado o texto, conjecturar sobre aqueles tipos, buscar situá-los ideologicamente, condescender, participar do deboche, acrescentar à lista os trambiqueiros do seu próprio repertório. Naquela montagem, o caráter fragmentário, a manipulação da escala, a imposição material do suporte retroagiam sobre o conteúdo. O trabalho não tomava partido diante das reações contraditórias que, historicamente, o elenco que anunciava despertou: escárnio, glamourização, repulsa, esperança, condescendência — ele as reencenava.

 

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Eu estava na Itália para recolher pedras dos três vulcões ativos no território, o Etna, o Stromboli e o Vesúvio, e já tinha desistido de contratar um batedor de carteira para bater a carteira de um batedor de carteira, revelar-me a este último, devolver-lhe os pertences e contratá-lo também, deslocando batedores de carteira entre os principais monumentos de Roma, do Coliseu para a Fontana de Trevi, da Fontana de Trevi para a Praça de São Pedro, e assim sucessivamente até fechar o círculo. Havia desistido também de contratar um detetive particular para seguir batedores de carteira e coletar os objetos que eles descartassem. Havia desistido, finalmente, de seguir as moedas lançadas na Fontana de Trevi, que a prefeitura recolhe mensalmente e doa a uma instituição de caridade, para vê-las, aquelas moedas de todo o mundo, reconvertidas de amuletos em dinheiro, separadas, contadas, e depois comprá-las e perguntar seu estatuto, como o dos objetos descartados pelos batedores de carteira, ou o das pedras vulcânicas extraídas em pedreiras, talhadas, aparelhadas, transportadas, vendidas e depois descartadas na sarjeta da estrada às margens do mesmo vulcão de onde foram extraídas.

Sem batedores de carteira, portanto. Eu ficaria com os vulcões, cujo estatuto naquele primeiro momento nada tinha de indefinido, muito ao contrário, era desempenho ígneo e verdade geológica.

 

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Ainda que não houvesse a repetição do título seria evidente que o vulcão já havia aparecido nas Fontes luminosas, de 1983, trabalho em videotexto da Carmela do qual por enquanto só vi imagens estáticas, que consta integralmente neste número da Rosa. A diferença que mais me interessa entre as fontes luminosas em videotexto e o xará de neon dos últimos anos é o fato de que, neste, representa-se a própria fonte, o corpo do vulcão, feito de luz como os jatos que expele. O neon é linha de lápis e passa do elemento opaco pro elemento luminoso desenhando sem qualquer cerimônia. Já nos trabalhos em videotexto, as fontes de onde brotam as luzes, omitidas no desenho, são o próprio suporte, são a televisão. Prestando-se a representar o vulcão, o neon se afasta dele, enquanto a tv é ela mesma convertida em vulcão, tv-vulcão, tv-boca-do-inferno.

As primeiras fontes luminosas não figuram chafarizes ou vulcões, elas inventariam emissões luminosas (gestos, como aqueles fixados pelos Carimbos de 1978) sem recusar suas associações figurativas. Antes de tomar partido, entretanto, é preciso reconhecer que o corpo do vulcão e os jatos que expele são de fato feitos da mesma matéria, lava, e é ela que se converte de luminosa em opaca sem qualquer cerimônia. Mais: as estruturas de ferro que sustentam o neon, oito grades irregulares pintadas de preto, esquadrinham as curvas e hesitações das linhas luminosas como que denunciando a sua expressividade manual, os gestos curtos, rápidos, agigantados a posteriori, ao mesmo tempo em que reivindicam para si qualidades formais. Elas operam contra a figuração do vulcão. Há ainda as baterias (as verdadeiras fontes) e a fiação, pelas quais o trabalho é impedido de sair voando como um balão, é aterrado.

 

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Uma subversão: gastar os tubos de neon que representam o corpo do vulcão até que, queimados, se apaguem.

 

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A Fonte luminosa, de 2021, e o Vulcão, do mesmo ano, são trabalhos parecidos. O segundo foi instalado num espaço externo, uma empena cega do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, no Parque do Flamengo, e era maior em tamanho absoluto mas a escala da sua percepção era menor. A estrutura de metal recuava para um papel funcional e reproduzia, elegante, os ângulos da arquitetura. As linhas principais em neon amarelo eram acompanhadas por linhas paralelas, menores, em neon vermelho, que as sublinhavam, reiteravam algumas das suas curvas, duplicavam sua cintilação. O posicionamento do trabalho e a proporção entre as suas dimensões e o prédio do Museu faziam com que se passasse por uma marca, um selo. Ele funcionava como uma placa luminosa convencional, um aparato de comunicação visual bem dimensionado e adequado à economia urbana. Não havia ruído, o desvio se devia àquilo que o vocabulário instrumental das teorias da comunicação chama de mensagem, em suas relações com o contexto: o que o logotipo de um vulcão55 num museu de arte em crise permanente66, num prédio moderno icônico, num parque aterrado com morros desmanchados, numa paisagem de cartão postal, num país desmoronado quer comunicar?

De Fonte luminosa a Boca do inferno, conjunto de monotipias que a Carmela expôs na Bienal de São Paulo no mesmo 2021, ano dos vulcões, inverte-se o sentido: em vez de expelir, os vulcões sugam, transformados em buracos negros, Quasares, Comedores de Luz.

 

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Em Cão de três cabeças, meu trabalho de 2021 com as pedras dos três vulcões ativos da Itália, o tempo geológico e os relatos históricos das erupções foram temperados por outros eventos, entre eles a prisão de um turista francês no Vesúvio duas semanas antes da minha chegada. Para que Enéas entrasse no mundo subterrâneo a Sibila precisou enganar o Cérbero — deu-lhe comida envenenada. Quando Dante cantou sua descida, catorze séculos depois, foi o autor da Eneida que tratou do cão danado. “Meu Guia, as mãos abrindo, se prepara: / Enche-as de terra, e às guelas devorantes / Lança da fera essa iguaria amara. / Qual mastim, que em latidos retumbantes / Brada de fome, e, apenas a sacia / Devorando, aquieta as iras de antes: / Tal, aplacando a fúria, parecia / O demônio que as almas atordoa”. Intitulei o trabalho em referência ao personagem logrado.

 

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Voleva portare a casa come souvenir pietra lavica dal Vesuvio. Beccato turista francese

L’addio ai basoli vesuviani

Pietra etnea, l’invasione continua

Lastre e lastre grigio chiaro prendono il posto dei vecchi basoli vesuviani

Le talpe del Parco del Vesuvio. Presi gli sfruttatori di cave abusive

Pietra lavica etnea falsa e lavori sbagliati a Napoli

Basoli rubati a Napoli e sequestrati dalla polizia locale a Nola: è giallo

Curious tales of why tourists have been returning “cursed” items to Pompeii

Amaldiçoados: turistas devolvem peças furtadas de Pompeia por trazerem má sorte

 

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Há uns vinte anos iniciou-se uma reforma do calçamento no centro histórico de Nápoles. As antigas pedras vesuvianas foram retiradas e abandonadas embaixo de viadutos, e nas ruas assentaram-se “pálidos e opacos” paralelepípedos de pedras do Etna. Cidadãos napolitanos se indignaram: “Rivogliamo i nostri basoli, che è questa roba?”. As pedras do calçamento original foram recolhidas dos viadutos, medidas, numeradas, catalogadas e armazenadas em depósitos, de onde passaram a ser periodicamente roubadas. Pouco depois, uma pedreira ilegal foi encontrada em Terzigno, dentro do Parque do Vesúvio. Os infratores vinham extraindo o basalto vesuviano, de exploração proibida, e comercializando-o como pedra do Etna.

 

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Numa marmoraria em Catânia comprei dois paralelepípedos de pietra lavica etnea certificada, que depois abandonei à beira da estrada que contorna o Etna, guardando a nota fiscal para embarcar no voo para Roma com a pedra escura que eu trazia lá de cima e outra, mais clara, mais porosa, que eu tinha pego no Stromboli. Numa segunda marmoraria, na Nápoles dos lazzaroni, comprei, sem nota nem certificação, uma pedra avermelhada que asseguraram ser vesuviana. Na terceira marmoraria, em Piedimonte Matese, haviam conseguido um basalto vesuviano antigo (do pavimento de Nápoles?), mas fiquei com a pedra anterior porque quando perguntei sua origem a resposta foi Terzigno. Em Piedimonte Matese fizemos o Cão de três cabeças: duas facetas adjacentes com inclinação de 120 graus foram cortadas em cada uma das três pedras. Elas passaram a se encaixar, mas foram mantidas separadas.

Eu trouxe para casa as lascas remanescentes dos cortes e um lapidário as transformou em bolas de gude. Os jogos de bolas do Etna, do Stromboli e do Vesúvio se confrontam num tabuleiro de concreto a que chamei Ignição.

Das bolas feitas com a rocha do Vesúvio, separei uma para enviar ao Parque Arqueológico de Pompeia, de onde gatunos incautos subtraem fragmentos diversos. Quando alcançados pela longeva maldição, devolvem seu butim acompanhado de sinceras escusas. “We are good people and I don’t want to pass this curse on to my family, my children or myself anymore”, “We took without thinking of the pain and suffering these poor souls experienced during the eruption of Vesuvius and their terrible death”, “We are sorry, please forgive us for making this terrible choice. May their souls rest in peace.” Sem poder recolocar os artefatos em seus locais de origem, a administração do Parque decidiu exibi-los, acompanhados das correspondências, numa seção do Museu.

 

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São Paulo, 27th March 2022

 

Mr. Gabriel Zuchtriegel

Director General of

Parco Archeologico di Pompei

I'm returning this object so the narrative of its extraction can achieve closure.

Sincerely, A.

 

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As aulas de batimento de carteira for-entertainment-purposes-only, nas quais o João, meu marido, encenou o papel da vítima, aconteceram por acaso. Estávamos andando no centro de Roma e vi, na vitrine de uma loja de artigos de mágica, um souvenir que gostaria de levar para casa. NIENTE NELLE MANI, TUTTO NELLE TASCHE. MANUALE DEL PICKPOCKET. O livro não estava à venda, mas os donos da loja, um casal de mágicos, eram amigos do Tiziano Grigione — mago, manipolatore, mentalista, hipster trickster, maggiore esponente di pickpocketing italiano. Ecco, il professore.