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O problema da universalização da primeira infância: dinâmicas de produção de conhecimento e políticas públicas

Rogério Barbosa

Quando se pretende discutir políticas públicas de proteção e cuidado com a infância é preciso entender com que ideia de infância vamos entrar nesse debate. A pesquisa Primeira Infância na Maré (PIM) não fez exceção a isso, e esse artigo, ao apresentar seus princípios de realização, discute a orientação política que incidiu sobre a produção do conhecimento nesse contexto, visando sustentar a legitimidade de seu modo de realização.

Não se trata, portanto, de uma discussão teórica sobre a impossibilidade de produzir um conhecimento purificado de atravessamentos políticos, mas sim de um relato sobre uma atuação que parte da necessidade, dos ganhos e dos desafios impostos pelo respeito à realidade sobre a qual queremos pensar e intervir. Coloca-se em cena a singularidade dos pesquisadores, uma vez que a pesquisa é desenhada a partir da urgência política, a qual só pode existir a partir da afirmação de sujeitos. Isso que implica uma inversão em relação a modos já ultrapassados de compreender o fazer científico como algo que se realiza de maneira neutra em relação à política, à subjetividade e a singularidade. O que se afirma, portanto, é que uma pesquisa como essa deve abarcar essas dimensões que muitas vezes são silenciadas, que tomar isso enquanto ponto constitutivo é um posicionamento ético incontornável, e que só enriquece o conhecimento produzido. Algo que há muito tem sido defendido em relação à cientificidade da psicanálise, mas que entra em conflito com certos ideais de pureza científica. Tomamos, portanto, os avanços já realizados em debates sobre a cientificidade da psicanálise para relatar essa experiência que se desenha com o intuito, inegociável, de sustentar o compromisso ético e político na produção de saber.

Apresentamos, para isso, os elementos que sustentam a impossibilidade da produção de atenção e cuidado com a infância quando esta é compreendida por parâmetros universais, e propomos, também, a necessidade de que a dimensão territorial particularize o debate. Não é a intenção desse artigo analisar os resultados da pesquisa que, no momento dessa escrita, estão em processo de análise e publicação pela organização Redes da Maré, que os produziu.

Na história da discussão sobre a infância, as diversas tentativas de considerar a experiência de infância passível de universalização já mostrou seus limites e suas consequências políticas, como no caso exemplar da Declaração Universal dos Direitos das Crianças.1 De acordo com Marchi e Sarmento (2017), o século XX foi especialmente importante para a construção normativa do campo da infância. Diversos documentos legais, “no plano internacional e nacional, regularam a vida das crianças e padronizaram os modos de relação entre o Estado, as famílias e as crianças e, mais lateralmente, entre estas e os adultos”.2 A Convenção Internacional sobre os Direitos das Crianças (CDC), de 1989, é, certamente, o instrumento de direitos humanos mais aceito em escala mundial. Foi adotado por 196 países3, e “tornou-se uma das expressões mais significativas da globalização política e cultural de um determinado modelo de infância”4. Como documento universal sobre os direitos da criança, a Convenção foi capaz de atribuir a elas o estatuto de atores sociais com direitos próprios e, como as autoras supracitadas apontam, nem sempre coincidentes com os de seus cuidadores principais. Mas, foi também como documento universal que a Convenção falhou em articular direitos universais com a particularidade de diferentes experiências de infância.

Tendo sido gestada entre os anos de 1979 e 1989, não escapou, em sua construção, do domínio dos países do Norte Global, e assim, sucumbiu às suas concepções de criança e infância. O resultado é que a convenção aprovada na assembleia geral da ONU, além de definir a experiência de infância por critério etário, enfatiza os direitos individuais, e não considera as condições de interdependência e reciprocidade intra e intergeracional presentes em outras e diversas culturas.

O que se aprende com processos como esse, nos quais as intenções disparadoras dos mesmos não conseguem se realizar em ações efetivas de proteção de todas as infâncias, é que, para alcançar todas as diversas experiências de infância, o particular deve ter lugar. A produção de universais, sabemos, instituem-se em relação sólida com os processos de idealização5, e, quando retornam sobre as dinâmicas de laço, e sobre os modos de organização social, revelam-se operadores ideológicos da produção de hegemonias. Como afirmam Marchi e Sarmento, “em cada momento histórico, o conjunto de orientações normativas, jurídicas e não jurídicas, explícitas e implícitas, constituem o chamado modo de ‘administração simbólica’ da infância”.6

Princípios orientadores, as bordas do campo

Parece óbvio, mas também necessário, dizer que a produção de políticas públicas que pretendam alcançar realidades específicas (determinadas na geopolítica de seus territórios) precisa enfrentar os ideais hegemônicos que cercam as populações que pretendem proteger. Os estudos da infância 7 e, com destaque, a antropologia da infância,8 em resposta ao impossível da perspectivação da infância como experiência universal, propôs o significante infâncias para dar lugar a essa discussão, pluralizando o que se pode entender por infância.

Pluralizar, porém, não é, tampouco, um ato apolítico, e poderia manter a discussão na ordem do ideal da diversidade, fazendo equivalências entre diferenças de ordens e expressões pouco comparáveis em termos do enfrentamento de barreiras para a participação social. Para que a ideia da pluralização que a letra “s” produz no significante “infâncias” faça o seu trabalho na ordem do discurso, é necessário, ainda, mais um passo: a diversidade precisa ser considerada em sua incontornável determinação geopolítica. Afinal, a experiência de território impacta a criança, e, com isso, marca toda a extensão da sua infância, compondo, também, o tecimento da sua subjetividade.

Território, nesta concepção, é um conceito que materializa as articulações estruturais e conjunturais a que os indivíduos ou os grupos sociais estão submetidos em um determinado tempo histórico, tornando-se intimamente correlacionado ao contexto e ao modo de produção vigente9. Acompanhamos, assim, a acepção do professor Milton Santos, na qual território ultrapassa a ideia de unidade geográfica de estado e refere-se à materialidade política e econômica da determinação social do espaço e suas relações: “o espaço é a totalidade verdadeira, porque dinâmica, resultado da geografização da sociedade sobre a configuração territorial”.10

Sob esta perspectiva, compreende-se que sujeito responde ao lugar que lhe é reservado no laço social. No tempo da infância, portanto, o sujeito responde ao lugar que é reservado à criança. Nessa construção, ‘infância’ é compreendida conforme propôs Giorgio Agamben (2005)11 em Infância e história: infância é tempo e lugar. “Criança”, por sua vez, é o significante que conjuga os termos do desenvolvimento, as possibilidades do corpo e as determinações da época. Comporta, também, as diferenças de cultura e os efeitos da divisão de classes e dos marcadores sociais de raça, gênero e deficiência no interior de uma mesma cultura.12 E, por fim, consideramos que a resposta do sujeito ao lugar que lhe é atribuído no discurso social pode ser de recusa, de confirmação e/ou de transformação,13 e, para ser escutada em toda a sua potência, a tarefa de territorializar e racializar a experiência da infância é incontornável.14

Orientada por esses princípios, a equipe15 que viria a se configurar no bojo da organização da sociedade civil Redes da Maré acolheu uma demanda de trabalho com a população de primeira infância no Complexo de Favelas da Maré, no município do Rio de Janeiro.

A Redes da Maré, uma organização da sociedade civil

A Redes da Maré16 foi fundada por moradores e moradoras da favela, e nasceu nos anos 1980, a partir da mobilização comunitária. Formalizada em 2007, tem como missão tecer as redes necessárias para efetivar os direitos da população do conjunto de 16 favelas da Maré, onde residem mais de 140 mil pessoas.

O trabalho que desenvolve é conduzido a partir da escuta e da participação da população, produzindo conhecimento e propondo ações que permitam acompanhar, de maneira sistemática, as mudanças em prol de melhorias significativas e eficazes na qualidade de vida dos moradores. Sua metodologia de trabalho tem como direcionamento estratégico a mobilização de moradores e o fortalecimento de atores locais, a articulação em rede e parcerias com distintas organizações, públicas e privadas, que atuam na região. Para a organização, o diagnóstico e a produção de conhecimento sobre e a partir da região tem como objetivo alicerçar a sistematização e a difusão do saber produzido para promover a incidência nas políticas públicas e a efetivação de direitos em todas as favelas da Maré.

É importante dizer que a perspectiva de que o conhecimento produzido sobre o território possa induzir políticas públicas não deve ser confundida com a atuação dessa ou de qualquer outra organização da sociedade civil no lugar do Estado. Um Estado negligente17 com sua população deve ser pressionado a produzir políticas efetivas para as populações que sua negligência vulnerabiliza, e o conhecimento produzido pela pesquisa que apresentaremos visa assegurar e fundamentar intervenções que considerem as especificidades do território e suas reais necessidades.

Sendo o Complexo da Maré composto por 16 favelas, foi preciso considerar que cada um desses territórios é formado por um específico tensionamento entre as linhas de força que compõem a sua dominação, disputada entre redes lícitas e ilícitas de poder (as redes comunitárias, as forças policiais e os grupos civis armados). Por essa razão, inclusive, a pesquisa foi dividida por áreas e amostra censitária. Não é difícil entender que cada uma dessas configurações impõe um tipo de ocupação, um específico modo de circulação dos moradores no espaço público e um determinado nível de acesso a direitos básicos. Tais configurações particulares impactam e decidem práticas de cuidado específicas e, consequentemente, as subjetividades. Armando o ciclo do engendramento da geopolítica, as pessoas que moram em cada uma dessas áreas da Maré, e que são afetadas por essa condição específica, por sua vez, entram no jogo do tecimento territorial para compor sua determinação.

A pesquisa “Primeira infância na Maré: acesso a direitos e práticas de cuidado”

Muito embora o cuidado com a primeira infância esteja contemplado em diversas ações da Redes da Maré, este é o primeiro projeto da organização que tem essa população no centro focal da produção de conhecimento. Considerando as múltiplas demandas de cuidado, as urgentes e também as necessárias intervenções de longo prazo, o diagnóstico da experiência da primeira infância na Maré foi entendido como a primeira ação para tornar possível o desenho de ações de cuidado efetivas, orientando práticas e estratégias interventivas em uma relação viva e verdadeira com a realidade da qual parte, e na qual pretende incidir

Como primeiro passo aproximativo, interessou-nos conhecer a dinâmica experiencial da infância no Complexo das 16 favelas da Maré, e, para isso, a investigação sobre os processos de cuidado pelos quais a infância é ali amparada se abriu em duas frentes: os cuidados praticados pela família e aqueles sustentados pelo estado.

Isso quer dizer que, além de produzir o perfil socioeconômico das 2144 famílias entrevistadas, foram abordados o nível de acesso a direitos e as práticas de cuidado tecidas no interior de cada família entrevistada, e, posteriormente, a análise dos resultados discute os modos que estes eixos se articulam na configuração da infância na Maré.

Uma equipe territorializada

Quando iniciamos esse trabalho, a experiência da Redes da Maré já situava que a produção de conhecimento sobre o território, quando se dá com e a partir do território, em seu ato de construção, age sobre os envolvidos, trazendo, nesse gesto, a possibilidade da formação política da população que participa da sua produção. Na pesquisa PIM, esse princípio de territorialização do processo de pesquisa desdobrou-se em dois eixos: sobre os critérios que decidiram a formação da equipe que construiu e conduziu o processo diagnóstico em toda a sua extensão, e também procurou incidir sobre as famílias com crianças na primeira infância, população alvo dessa investigação. Esses dois eixos se articulam na realização do trabalho, como veremos através de alguns exemplos.

Além do diagnóstico domiciliar, realizado através da aplicação de questionário com 130 perguntas, o Projeto Primeira Infância na Maré (PIM) tinha como tarefa: o diagnóstico da rede de proteção social presente no território (em relação àquela programada por políticas públicas); acompanhar sistematicamente 50 famílias em situação de insegurança alimentar e promover ações formativas com a própria equipe, os tecedores da Redes, e também com profissionais que trabalham no território em dispositivos da rede de proteção social, com as escolas, unidades de saúde ou de assistência social.

A construção do questionário de inquérito domiciliar foi realizada coletivamente pela equipe PIM e contou com as assessorias contratadas como interlocutoras no processo.

Essa etapa do projeto oportunizou a discussão das compreensões de infância, família e cuidado parental que modulariam o trabalho, e pode ser considerado, nesse sentido, parte do processo de formação da equipe: enfrentamos a universalização de padrões do que se costuma chamar de “desenvolvimento infantil”, e do que é compreendido na ordem dos “modelos de parentalidade”. Foi, também, uma oportunidade para que os integrantes da equipe pudessem revisitar sua conceituação da infância, viabilizando, algumas vezes, a releitura dos parâmetros colonizatórios que compõem estruturalmente os modos de dizer a experiência da infância na favela. Interessava, sobretudo, desmontar a ideia universalizada de infância que se faz presente no registro simbólico, mas não responde à experiência empírica das infâncias. Afinal, é essa construção simbólica da infância universal a que deslegitima experiências não hegemônicas, atacando seu estatuto de infância.

Em outro nível do processo, consideramos que, no momento da aplicação do questionário, o tema do cuidado com as crianças estaria em discussão com os respondentes (seus adultos de referência), e entendemos que seria estratégico, ao invés de levarmos as famílias a pensarem a vida de suas crianças na relação com parâmetros universalizados do desenvolvimento humano (diante dos quais são tratadas sob o regime da carência e da falha), que a entrevista dirigida apresentasse outras variáveis para considerar a experiência de encontro com a crianças.

Foi por isso, também, que nos interessamos pelas práticas de cuidado em curso no território: o que as famílias costumam, gostam e não gostam de fazer com as crianças? Do que têm medo? O que evitam? Do que sentem falta? Como entendem as preferências de seus filhos? Como consideram sua relação com a demanda direta e indireta que vem das crianças?

É importante dizer que a construção da pesquisa, em cada um dos movimentos acima citados, não questionou a qualidade do exercício da parentalidade na relação com as crianças. A pergunta que mobilizou seu esforço foi a de como a parentalidade se faz presente nessa experiência, visando trabalhar com e a partir do saber e das invenções já consolidadas como o que aqui nomeamos práticas de cuidado.18 Paralelamente, o bloco de questões que investigou o acesso a direitos foi também uma oportunidade para pautar a discussão sobre as condições de produção de cuidado com a infância no território, e, em alguns casos, encaminhar as demandas que surgissem para outros dispositivos da Redes que pudessem acolhê-las.

A escolha por uma equipe majoritariamente territorializada, composta por pessoas que moram, já tenham morado, ou que tenham suas vidas organizadas em uma relação profunda com o território das favelas da Maré, quis mais do que contratar pessoas que “sabem andar na favela” (o que, nem de longe, é desimportante). A aposta é de que seriam essas as pessoas que, potencialmente, não entrariam ali com as lentes de uma fantasia ideológica hegemônica, que pensa a favela apenas como zona de perigo e risco de vida. Pesquisadores territorializados, quando em campo, podem tensionar a condição da favela com uma outra dimensão do território que é viva, pulsante e criativa, como é sua experiência comunitária. A equipe assim composta, porque conhece com o corpo a experiência da favela, não fica capturada pelo imaginário constituído no discurso social que a deprecia.

Constituir uma “equipe majoritariamente territorializada”, e não exclusivamente formada por especialistas em pesquisa ou em infância, distantes dos territórios de favela é, em si, uma intervenção politicamente orientada, é uma aposta de que não seja só o dinheiro dos salários da equipe que fica na favela e movimenta sua vida, mas que a transformação promovida pela relação com o conhecimento produzido, enquanto se faz, também incide e forma o território.

Territorialização e a “neutralidade científica”

A dimensão da orientação política no âmbito da construção do conhecimento problematiza a suposição da neutralidade científica que, tantas vezes, é demandada como selo de qualidade da produção em causa. Pretendemos demonstrar, com esse trabalho, a impossível sustentação de uma posição neutra (sem implicação subjetiva do pesquisador) na construção do trabalho científico.

Entendemos que todas as etapas do processo de pesquisa, desde a eleição do objeto de investigação que o mobiliza, são atravessadas por decisões políticas que revelam a posição ética de quem as realiza: se, por exemplo, os critérios para a seleção da equipe, que aqui discutimos, desviassem do estabelecimento de uma equipe majoritariamente territorializada em prol de uma equipe constituída por outras especialidades, isso teria também, consequências políticas. Além de desprezar efeitos de curto prazo sobre a experiência que se quer transformar, o desconhecimento experiencial da favela colocaria obstáculos de interpretação e análise de seus códigos, o que, certamente incidiria negativamente na produção de dados e, consequentemente, sobre os resultados.

Política e eticamente orientadas, escolhemos formar uma equipe que sustentasse a curiosidade sobre a infância na Maré no encontro com os entrevistados, que mantivesse a possibilidade da escuta. Vale dizer, para evitar desvios, que a escolha não foi por uma equipe identificada com o objeto de investigação (muito embora, desse viés nenhuma pesquisa esteja, de antemão, protegida); a escolha foi por uma equipe que pudesse enfrentar substancialmente o submetimento ao discurso hegemônico sobre a infância e a favela para, com esse recurso estabelecido, sustentar a possibilidade de uma pesquisa.

Em alguma medida, trata-se sempre de escolher sob quais determinantes estaremos engajados, pois a ideia de que seria possível estar livre de toda ordem de determinação é enganosa. O sujeito que pesquisa é afetado pelos processos da pesquisa, mas também os afeta, e estarmos avisados disso é a melhor forma de lidar com interferências que a fantasia de neutralidade esconde, mas que, mesmo escondida, retorna sobre todas as variáveis em jogo. Como apontou Beer,19 o melhor que a produção científica pode oferecer não é a produção de verdades absolutas, mas sim, o engajamento dos sujeitos na incompletude de sua produção. No mesmo artigo, o autor demonstra que as ideias de infalibilidade e de pureza na produção científica configuram uma fantasia sustentada por processos de idealização, processos esse que se formam em “um tipo de relação acrítica com o objeto”20 — algo que, em última instância, daria conta da neurose de garantia que nos aflige na atualidade, também articulada pelo discurso do capitalista21 que promete o encontro fatal com o objeto desejado (sempre o próximo…).

É, por fim, no bojo dessa discussão — que refuta relações acríticas com os objetos investigados — que o enfretamento da universalização das compreensões de infância e também de favela nos interessaram. Territorializar o debate, esperamos já ter deixado isso explícito, é enfrentar o universal. É, no caso da pesquisa PIM, desinvisibilizar a particularidade da experiência de infância no Complexo das 16 favelas da Maré. Tal enfrentamento cumpre a função de articular um modo de produzir conhecimento que seja capaz de incidir politicamente sobre as condições de produção de cuidado e, como formulado no início dessa reflexão, que deve ser sustentado por políticas públicas com capacidade de transformação de realidades até então invisibilizadas e negligenciadas.

Enfrentar o universal

A distribuição do poder, medida ética da psicanálise que se realiza no contrapé do exercício de poder22, dimensiona-se no que aqui foi considerado com a expressão “enfrentar a universalização da infância”. Essa expressão está referida à proposição de Barbara Cassin,23 que tomei como convocatória: ela diz que é preciso “complicar o universal”. A propósito da discussão sobre a tradução, Cassin considera que essa prática seja formulada como estratégia política para o acolhimento da diferença. Ao declarar o universal como inimigo, sustenta a discussão sobre a sua impossibilidade e aposta na experiência da tradução como espaço entre as línguas, e como solução democrática para o problema da alteridade. Complicar o universal demanda o trabalho de estabelecer o particular, de desinvisibilizá-lo. O diagnóstico, cientificamente realizado, pretende colocar em evidência a particularidade das relações de cuidado e de acesso a direitos no Complexo da Maré, para pautar políticas efetivas de proteção e cuidado com a realidade de primeira infância que aqui se desenha.

Para complicar as políticas públicas: práticas de cuidado × parentalidade positiva

Enquanto essa pesquisa se realizava, entre os anos de 2020 e 2022, o fomento privado à pesquisa, bem como as políticas públicas voltadas para infância, no Brasil, vinha sendo embasado pelo que se denominou como teoria da parentalidade positiva. Valerá a pena, para situar a discussão sobre a urgência do trabalho científico sobre complicar o universal, considerar a consistência e a abrangência de sua incidência.

Os ecos das proposições da parentalidade positiva na elaboração da política pública brasileira de atenção à infância podem ser recolhidos desde o discurso24 de lançamento do programa Criança Feliz, a política para infância lançada no governo Temer e que permaneceu ativa no governo seguinte. O discurso foi proferido pela então primeira-dama Marcela Temer, em 2016, e explicita as intenções do programa: “Quem ajuda os outros muda histórias de vida, por isso fico feliz em colaborar com causas sociais”. Os outros aqui são as crianças brasileiras, e “causa social” não faz uma referência a políticas de atenção à infância e adolescência; causa social, ela diz, é ajudar os pais das crianças pobres atendidas pelo Bolsa Família a estimularem o desenvolvimento de seus filhos; a então primeira-dama pareceu não se dar conta que uma política de Estado não ajuda, mas deve garantir direitos. À época, o site do MDS dizia:

será possível acompanhar e orientar melhor as famílias para que possuam um desenvolvimento humano mais acelerado (…) esse programa serve como amparo para as próprias famílias, que não sabem o que fazer para garantir uma educação melhor para os seus filhos e um desenvolvimento adequado. (…) O programa Criança Feliz serve para que essas crianças, principalmente das famílias mais carentes, tenham um acompanhamento adequado, conseguindo se desenvolver e criar boas raízes. Pois, muitas vezes, com o pai e a mãe tendo que trabalhar fora, essas crianças ficam sem uma orientação adequada, assim, o programa surge para preencher esse vácuo, o qual, tem uma importância enorme no desenvolvimento dessas famílias.25

É nessa trama discursiva que a teoria da parentalidade positiva ganha espaço. Prometendo como resultado o filho feliz e tendo como meio para isso a família equilibrada, essa disciplina oferece uma serie de modelos sobre o bem criar filhos, que passam pelo modo com que os cuidadores principais (em território nacional, leia-se, uma mulher) deve apresentar o mundo à criança. Isso está em todos os lugares: no Instagram, nos jornais, em revistas científicas.

A quantidade de “dicas”, como ficaram conhecidos os antigos conselhos na sua versão pocket (que condensa o fácil com o científico em duas ou três palavras de ordem), é impressionante. São tantas, que se contradizem. Mas o maior problema não é a sua quantidade. Os princípios técnicos, e supostamente científicos, que sustentam essas dicas são os determinantes mais vigorosos da sua qualidade.

Todavia, cabe sublinhar que aquilo que aparece na mídia e nos depoimentos de alguns “educadores parentais” sob o nome da “parentalidade positiva”, é uma versão mais reduzida e simplista do que se está tentando formular como uma teoria científica. Refiro-os aqui apenas com a intenção de demonstrar sua performatividade discursiva.

Já no campo científico, Ruiz‐Zaldibar, Serrano‐Monzó e Mujika, em artigo que pretendeu uma meta análise de mais de dois mil artigos sobre o tema da Parentalidade Positiva e de sua proposição de modelo parental, afirmaram que “ainda parece não haver um consenso sobre quais são as habilidades necessárias para ser uma mãe ou um pai competente”. E dizem, em sua conclusão, que “a falta de teorização pode implicar o fato de a maioria dos estudos ter tido como foco habilidades práticas, normalmente limitadas a recomendações concretas, como dieta e exercícios<” 26.

Seria possível argumentar que essa referida falta de consenso já está sendo enfrentada, no campo dessa pesquisa, pelo uso, em diferentes contextos socioculturais, de instrumentos de medida regularmente aplicados em estudos27 e que discutem as práticas parentais no âmbito das intervenções orientadas pela Parentalidade Positiva. Um grupo de pesquisa, do qual participam os pesquisadores acima referidos, publicou artigo mais recente28, que apresenta instrumentos de medida da experiência parental: O TOPSE (Tool to Measure Parental Self-Efficacy), instrumento que, como o próprio nome diz, pretende medir a eficiência parental com base em oito subescalas (emoção e afeto, brincadeira e prazer, empatia e compreensão, controle, disciplina e limites, pressões externas sobre os pais, autoaceitação e aprendizado e conhecimento). O Parenting Style, que também é apresentado no mesmo artigo, padroniza estilos parentais (autoritário, permissivo ou negligente), e a Escala de Evaluación de Estilos Educativos (4Er) “é um instrumento que inclui 20 itens numa escala Likert de 1 a 5”, e mede “a atitude dos pais nas dimensões tradicionais dos estilos educativo, como afeto e comunicação, exigências e controle”. E há, ainda, outros instrumentos disponíveis, nessa e noutras investigações presentes no campo, como é o caso do Meals in Our Household (MOH), que mede seis domínios relacionados à hora das refeições nas famílias.

Nesse artigo mais recente (2021), os pesquisadores associaram o que chamam de “autoeficácia parental” (“definida como a crença dos pais na sua capacidade de desempenhar com sucesso o papel parental”) com a promoção de “melhores hábitos de vida que protegem a saúde das crianças”, em um programa de intervenção parental que tem como objetivo “melhorar a competência parental para promover estilos de vida saudáveis nas crianças”. O artigo apresenta os resultados da avaliação e usa todos esses instrumentos (e mais alguns) para isso. Contudo, não conseguiu demonstrar que a intervenção manteve seus efeitos a médio prazo com as famílias, e faz uma discussão bastante séria das razões que motivariam esse resultado. Ainda insiste em entender, em cada contexto cultural e territorial no qual os instrumentos são aplicados, quais são e porque são essas as habilidades compreendidas como adequadas.

Para o que nos interessa aqui, o fato dos resultados não serem satisfatórios, no sentido de não sobreviverem à médio prazo como recurso que as famílias continuam acessando, permite, pelo menos, duas considerações: a) reforçar o questionamento sobre o entendimento da experiência da parentalidade pelo desempenho de habilidades (e, mais ainda, a possibilidade que tais habilidades possam se instituir por treinamento ou qualquer outra ação de âmbito educativo e assistencial), e b) interrogar qual seria o programa, treinamento, ou teoria de desenvolvimento que funcionaria a despeito da consideração e intervenção sobre a experiência sociopolítica com a qual a criança e sua família são tecidas.

Em um país como o Brasil, constituído sobre desigualdades, e no qual o acesso a direitos assume o estatuto de privilégio, é absolutamente fundamental que a dimensão política do cuidado dê as caras no debate. Ao mantermos o problema da proteção e do cuidado com as infâncias na micropolítica das relações familiares, a crítica política, no âmbito da estrutura social, fica muito mais difícil de acontecer.

É nesse sentido, inclusive, que argumentamos que prender a discussão no âmbito das individualidades é uma orientação político-ideológica que visa evitar a transformação social: quantos passos em direção à transformação são possíveis quando a concentração da demanda e da responsabilidade recai sobre um, sobre o indivíduo e, nesse caso aqui, notadamente, sobre a mãe e a família nuclear?

A pesquisadora Marcelly de Brito Novaes,29 que apresentou uma tese de doutoramento sobre o tema da Educação Parental na Universidade de Coimbra (2016), pareceu entender o problema. Ela teve o mérito de contextualizar os seus instrumentos de investigação ao campo da sua pesquisa, numa região pobre do Estado do Rio de Janeiro. Merece destaque também a pergunta (rara nos estudos sobre o tema da parentalidade positiva) sobre a implicação do Estado no cuidado com as crianças (referido, nesse trabalho, como prevenção intersetorial em saúde pública). Porém, a limitação da análise do rico material produzido aponta, mais uma vez, para o problema central das práticas positivas de educação parental: ainda que se refira às políticas intersetoriais na promoção do cuidado, a aposta que ela sustenta é que a “promoção de uma atitude parental positiva na primeira infância”30 seja o recurso principal para o enfrentamento dos problemas. Nas palavras da autora: “a normatização intrafamiliar e social das práticas parentais negativas mantém o risco da criança na família. A não identificação de sintomas de estresse tóxico na criança tende a agravar o risco de desenvolvimento pleno de suas potencialidades”.

Neste sentido, interessa perguntar a que tipo de gestão do sofrimento a Parentalidade Positiva, como expoente do main stream da época, responde. Ou melhor, ao oferecer esse tipo de análise e de recurso para gerir o sofrimento, o que a parentalidade positiva promove?

É por isso que a pergunta sobre os efeitos da interpretação individualizante das questões da parentalidade não é a única, mas é, certamente, a principal questão que endereçamos à Parentalidade Positiva.

Importante dizer ainda que essa não é uma pergunta retórica. O debate que vale a pena é o que dá lugar às transformações sociais que almejamos. Desarticular a interpretação das práticas de cuidado, instituídas no interior das famílias, da real possibilidade dessas mesmas famílias acessarem direitos, ou condicionar o cuidado com a primeira infância, exclusivamente, às habilidades parentais, certamente não promoverá transformações efetivas e, muito menos, duradouras.

A dotação orçamentária de políticas públicas para a infância tem considerado fundamental o critério de embasamento científico presente no desenho das mesmas políticas. Sem discordar da prerrogativa, este artigo pretendeu discutir os modos de produção e consideração desse mesmo critério. A discussão da ideia de neutralidade científica deu espaço para a demonstração de que o ato de pesquisar, seus modos de fazer, a eleição do objeto, a eleição da teoria que guia o campo e constrói hipóteses, são sempre decisões políticas inescapáveis.

Considerar as práticas de cuidado parental em curso no território composto pelas 16 favelas do Complexo da Maré foi o modo que a pesquisa PIM encontrou para dispensar modelos universais de parentalidade e conhecer o território no qual pretende incidir. A proposição de que a interrogação sobre as práticas de cuidado constituísse o campo de investigação, conforme explicitado, se fez em articulação com a consideração sobre o nível e as formas com que a população de cada área da Maré acessa direitos, que, no mais das vezes, é expresso pelo (in)acesso à rede de proteção social.

O conhecimento produzido com a pesquisa PIM apresenta a particularidade da unidade experiencial desse território, e a noção de “práticas de cuidado”, que nomeia a pesquisa, foi constituída como instrumento de enfrentamento dos universais de parentalidade e de infância. Apostamos que a pergunta pelo modo com que a parentalidade se expressa no território (o “como”, e não o “se”) seria capaz de situar que o cuidado que se tece em rede, se articula em dois níveis distintos e de implicação mútua: a rede de apoio, instituída na micropolítica das relações, é organizada como uma das respostas possíveis as possibilidades oferecidas (e da falta de oferta) pelo que se nomeia como rede de proteção social, produzida e sustentada por políticas públicas.