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Contar e escrever

Foi com a métrica, e não com a rima que, por 500 anos, a Ilíada e a Odisseia foram transmitidas oralmente. A métrica permitiu guardar um texto de 24 cantos, sendo que somente no último dos cantos, há 805 versos para serem decorados.

— Telles da Silva, As origens da escrita1

Viena, 1919

Rogério Barbosa

Na conferência Conjecturas e Refutações, Karl Popper relata como estabelecera, em 1919, um critério para classificar uma teoria como científica. O jovem Popper passara a suspeitar de teorias, como a freudiana, que encontravam confirmação em cada nova observação clínica.2 Essa capacidade explicativa da teoria freudiana seria não um ponto forte, mas uma fragilidade.

O critério que definiria o status científico de uma teoria seria a sua capacidade de ser testada para, então, ser ou refutada, ou confirmada. A teoria freudiana seria não científica, pois não se concebia um tipo de comportamento humano capaz de contradizê-la. A teoria da gravidade de Einstein, entretanto, aguardara mais de uma década para ser confirmada. Segundo essa teoria, a luz devia ser atraída pelos corpos pesados (como o sol), exatamente como ocorria com os corpos materiais. Calculou-se, portanto, que a luz proveniente de uma estrela distante, cuja posição aparente estivesse próxima ao sol, alcançaria a Terra de uma direção tal que a estrela pareceria estar ligeiramente deslocada para longe do Sol. Em outras palavras, as estrelas próximas ao Sol pareceriam ter-se afastado um pouco dele e entre si. Isso não pode ser normalmente observado, pois as estrelas se tornam invisíveis durante o dia, ofuscadas pelo brilho irresistível do Sol; durante um eclipse, porém, é possível fotografá-las. Se a mesma constelação é fotografada durante um eclipse, de dia e à noite, pode-se medir as distâncias em ambas as fotografias e verificar o efeito previsto. Se a observação mostrar que o efeito previsto definitivamente não ocorreu, a teoria é simplesmente refutada: ela é incompatível com certos resultados passíveis de observação. (Popper, 1980, p. 4)

Paris e Roma, 1953: a estrutura

Lacan vai propor uma renovação epistemológica para a psicanálise na sua primeira comunicação científica, em julho de 1953, na então fundada Sociedade Francesa de psicanálise. Nessa comunicação, “O simbólico, o imaginário e o real”, ele apresenta “os elementos de formalização” para uma teoria da experiência psicanalítica. Simbólico, imaginário e real delimitariam o limite da experiência psicanalítica. Trata-se do limite do que se escuta, do que se considera da fala do paciente. O que escaparia a esses limites seria a realidade, isto é, o senso comum.3

Ainda em 1953, no discurso de Roma, “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, Lacan anuncia que, para a fundamentação teórica da psicanálise, será preciso buscar na “linguagem da antropologia” (a estrutura) e “nos problemas recentes da filosofia” (a consideração à linguagem), equivalências aos conceitos psicanalíticos.4 A estrutura que Lacan encontrara na antropologia era a da linguística como ciência (Saussure, Jakobson, Benveniste), isto é, o modelo do jogo combinatório operando em sua espontaneidade de maneira pré-subjetiva.5 É essa a estrutura que possibilitará uma nova formulação do conceito de inconsciente: o inconsciente é estruturado como uma linguagem.6 A linguística, como ciência da linguagem, destaca-se pelo estudo dos signos, escritos e fonetizados, e nisso se distingue da filosofia da linguagem que se ocupa com unidades mínimas de significação, os enunciados, e a relação entre esses, considerando o uso de operadores lógicos. Os jogos de linguagem que interessam a um filósofo da linguagem pressupõem o sentido; portanto implicam a pragmática, e essa pode incluir a performatividade. Por sua vez, o jogo combinatório com o qual um psicanalista opera requer a consideração aos elementos mínimos, os significantes (letras e fonemas), que se combinam tanto por semelhanças como por contrastes. (E quanto à filosofia da linguagem? Ela entra como linguística ou há outros autores e referências nesse campo que são relevantes para Lacan?)

Atenas, IV a.C.: Ser e pensar

Essa nova concepção de inconsciente supõe uma racionalidade na experiência psicanalítica, mas, ao mesmo tempo, requer uma releitura do que a lógica e a filosofia entendiam por racionalidade. Ou seja, era preciso acompanhar a ruptura que a lógica-matemática promovera no legado aristotélico a partir da consideração dos problemas da linguagem.

Escolhemos um trecho do quarto livro da Metafísica de Aristóteles, em que encontramos um critério para restringir o racional e duas críticas a essa restrição. Trata-se do contexto da justificativa para o critério de apoditicidade do princípio de não contradição. Esse princípio seria autoevidente e não requereria uma demonstração. O princípio é assim apresentado: “É impossível que a mesma coisa, ao mesmo tempo, pertença e não pertença a uma mesma coisa, segundo o mesmo aspecto”.7

Aristóteles responde, então, a duas objeções a esse princípio. A primeira objeção: “Há alguns que afirmam que a mesma coisa pode ser e não ser, e que se pode pensar desse modo”.8 Entre esses, que eram então chamados de naturalistas, estava Heráclito, cujo famoso aforismo dizia: entramos e não entramos no mesmo rio. Em sua resposta, Aristóteles diferencia: uma coisa é afirmar que uma coisa pode ser e não ser, outra coisa é pensar desse modo. Há uma diferença entre ser e pensar. Nesse trecho da metafísica, Giovanni Reale9 identifica uma diferenciação entre dois planos: o plano ontológico, do que é, o ser; e o plano lógico, do pensar. O princípio apodítico de não contradição valeria então apenas para o pensar. Do ponto de vista da dialética aristotélica, aqueles que objetavam ao princípio ajudavam em sua conceituação, o que mostra uma racionalidade na dialética aristotélica. A dialética na antiguidade era uma forma de ensino praticada na academia de Platão. Os diálogos platônicos nos apresentam esse método que também era adotado por Aristóteles.

Na sequência dessa passagem, Aristóteles vai refutar a uma segunda objeção que lhe poderia ser feita, aquela dos que exigem a demonstração do princípio evidente. Para refutar essa objeção, Aristóteles demanda a seu interlocutor que diga algo que tenha um significado para si e para os outros. Se o interlocutor disser uma palavra com sentido, então o interlocutor estaria concedendo que já existe algo determinado e que esse algo é assumido como verdadeiro sem demonstração. Logo, também concederá que exista algo verdadeiro independente da demonstração.10

Se, na primeira objeção, Aristóteles fizera a diferença entre ser e pensar, na resposta à segunda objeção, ele enunciou uma nova diferenciação: há enunciados demonstráveis e outros indemonstráveis. Entretanto, há ao menos um indemonstrável que se pode assumir como verdadeiro.

O interlocutor nessa segunda objeção era o sofista, que entre equivocidade e univocidade, ficava com a primeira, negando a unidade de sentido.11 Os sofistas apontavam para o problema da decisão de sentido. Como estabelecer uma decisão quanto ao sentido, isto é, um corte entre o que tem e o que não tem sentido? Será que podemos decidir formar uma unidade daquilo que não se deixa fechar em um sentido? A objeção sofística implicava, portanto, tratar do problema da linguagem. Mas esse problema ficou aguardando a instalação e crítica do que se convencionou chamar de modernidade no ocidente.

Pisa, 1602: a formalização

Descartes, pela sua contribuição para a questão da diferença entre ser e pensar na formulação “cogito, ergo sum”, foi fundamental para o surgimento da ciência moderna. Seu experimento mental foi validado como forma de conhecimento, mas, ao mesmo tempo, desconhecia outras formas de pensar que não as que seguiam os critérios lógicos. Assim, a lógica aristotélica ainda era sustentada.

Nietzsche e Freud vão fazer, cada um, sua crítica a esse eu que pensa. Alain de Libera (2013) nos lembra da crítica de Nietzsche aos lógicos em Além do bem e do mal § 17: “Um pensamento se apresenta quando ‘ele’ quer, e não quando ‘eu’ quero”.12 A psicanálise, por sua vez, supõe a inversão da formulação cartesiana: o eu que pensa não sabe o que é enquanto pensa: trata-se da distinção entre um eu consciência de si e um isso pensa, o inconsciente.

Lacan seguirá essa crítica, tendo como suporte o teorema da incompletude de Gödel (1906–1978) que produzira uma reviravolta filosófica que se expandiu para além da relação entre a lógica e a matemática.13 A questão da unidade de sentido e os paradoxos da auto referencialidade estão no centro do que Lacan aludia, em 1953, como “os problemas recentes da filosofia”.

O teorema da incompletude colocará questões que serão traduzidas por Lacan nas seguintes formulações: não há Outro do Outro, não há universo de discurso. O sujeito da enunciação se exclui de seu enunciado ao concluir seu dizer. Essas questões, por sua vez, requerem pensar o inconsciente como uma superfície topológica, cujo corte é efeito de significante: o fechamento, na sua dupla vertente, enunciativa e topológica, implica o efeito do significante. (Lacan, 1998b).14

Os sofistas questionavam a pretensão de uma unidade de sentido, dada a assunção da equivocidade na fala. Na equivocidade está em questão a consideração à materialidade, na medida em que não se trata mais da decisão de sentido. É da materialidade do fônico que se trata. Mas também da materialidade da escrita. Se o métrico é uma regra que reduz o fônico à diferença entre longo e breve, entre tônico e átono, trata-se, então, de ler o fônico. A primeira literalidade teria surgido quando se escreveu um sinal para marcar a diferença entre um som longo e um som breve. Eis a estrutura matemática nos fundamentos da Linguística como ciência.15

Se é pelo aspecto de causa formal que a verdade incide na ciência, será o acento em um outro aspecto da verdade, o de causa material, a materialidade do significante que a Psicanálise estará concernida. Essa materialidade não se restringe ao fonético, também inclui o matemático:

A incidência da verdade como causa na ciência deve ser reconhecida sob o aspecto de causa formal. Isso, porém, para esclarecer que a psicanálise, ao contrário, acentua seu aspecto de causa material. Assim se deve qualificar sua originalidade na ciência. Essa causa material é, propriamente, a forma de incidência do significante como aí eu defino (1998c, p. 890).16

No já citado “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, Lacan (1998a) destaca o trabalho de Koyré (1982)17 sobre a física de Galileu (“Um experimento de medida”), na qual o instrumento será o símbolo matemático, que substitui a realidade empiricamente conhecida (senso comum) por modelos matemáticos (Universo de medida e precisão).

Não dispondo de um relógio para medir o tempo da queda de um corpo, Galileu usou o movimento de um pêndulo, “pois o tempo não pode ser medido diretamente, mas somente por meio de outra coisa que o exprima” (Koyré, 1982, p. 276).

Lacan acrescentará: mas a matemática pode simbolizar um outro tempo, notadamente o tempo intersubjetivo que estrutura a ação humana, do qual a teoria dos jogos fornece fórmulas. No jogo dos três prisioneiros, Lacan já havia demonstrado uma antecipação (futuro) da certeza, precipitação (presente) do ato que no só-depois será determinado (passado como sentido por vir).

Para Lacan, “a formalização matemática que inspirou a lógica de Boole, ou a teoria dos conjuntos, pode trazer à ciência da ação humana a estrutura do tempo intersubjetivo da qual a conjectura psicanalítica necessita para se garantir em seu rigor” (Lacan, 1998a, p. 288).

O que justifica a inclusão da psicanálise no campo das ciências conjecturais é que essas ciências inventam modelos para trabalhar com o real, enquanto o que não é apreensível senão através da escrita, seja pelo cálculo, seja pela fórmula algébrica. A palavra “escrita” nos remete, portanto, a uma lista de outras palavras: modelos, regras, contagem, redução, pares de oposição, diferença, cálculo, rigor.

Essa que é a marca definitiva da psicanálise no campo das ciências, não aquelas chamadas de humanas, mas entre as conjecturais, campo ao qual é pertinente uma lógica do significante. Uma série de significantes acontece a partir de uma diferença de um com outro. Essa diferença é tão radical que um significante se define por ser diferente de si mesmo. Mas aqui não é apenas na linguística como ciência que Lacan está encontrando fundamentos epistemológicos para a psicanálise, mas também em uma nova disciplina, a lógica-matemática para a qual foi fundamental a contribuição de Frege. Ao propor complementar as fórmulas matemáticas com escrita lógica, o lógico alemão pretendia evitar os mal-entendidos que se originam na imperfeição da linguagem.18

Paris (1969): os limites da formalização

Em Lacan, a imperfeição da linguagem será chamada de falta a ser, impossibilidade de uma resolução da questão “o ser é e o não ser não é” ou, ainda, equivocidade entre Real e linguagem. Assim como as formas negativas: não há universo do discurso, não há Outro do Outro. Quando Lacan se referia à sutura do sujeito da ciência, era das formas de negação dessa impossibilidade que se tratava. A teoria quântica também trabalhava com esses limites. Niels Bohr (1927) considerou o que se encontrava de contraditório na descrição de um objeto quântico, como a descrição da luz como onda e como corpúsculo. “A impossibilidade de dar um conteúdo intuitivo à ideia de inconsciente corresponde à impossibilidade de uma interpretação intuitiva do formalismo da mecânica quântica.”19

Einstein invocava variáveis escondidas para explicar o indeterminismo aparente da partícula quântica. Pois estava em questão a suspensão do ser, do ser como o que já está aí sempre porque essa concepção esquece que o ser procede da linguagem. Esse esquecimento retorna na crença em uma língua que diga o real e que estaria já escrita, traçada nesse real, no ADN ou nas sinapses dos neurônios ou que a linguagem matemática estaria pré-inscrita na natureza.20

A disputa entre formalização e intuição percorre a história da relação entre Lógica e Matemática. Lacan, de um lado, seguiu a intuição, usando as estruturas topológicas de superfície (toro, fita de Moebius, garrafa de klein e cross-cap)21 como modelos heurísticos a partir de uma homologia de estrutura. Por exemplo, o conceito de demanda é pensado com o uso de um toro, “encontramos na demanda a repetição das voltas que desenhariam um espaço tórico”.22

O valor da matemática e da lógica-matemática para a escrita, à redução e à formalização nas ciências justificava o uso de sua linguagem, mas com um distanciamento crítico, isto é, lembrando que algo falta à verdade:

É isso que desequilibra uma certa lógica, somente essa — a lógica de Frege ­­–, na medida em que ela parte apoiada nas muletas de dois valores, verdade ou erro, que tem notação 1 ou 0. Vejam a dificuldade que ele tem para encontrar uma proposição que possa qualificar verídica. É-lhe preciso invocar o número de satélites de Júpiter, ou de determinado outro planeta, ou seja, alguma coisa bem redonda e inteiramente isolável, sem que ele se dê conta de que isso é apenas recorrer ao velhíssimo prestígio daquilo pelo qual, no começo, o real apareceu como o que sempre retorna no mesmo lugar. Se ele não pode recorrer a outra coisa senão a essas entidades astronômicas, é por não haver muitas outras fórmulas passíveis de ser enunciadas como verdades. (Lacan, 2008, p. 205)

Há uma ética e método que vão juntos na medida que Lacan demarca esse “como verdade”, distinguindo o que é verdadeiro do que funciona como verdade. Trata-se de destituir o “ser” da verdade. O verbo que Lacan conjugará com o substantivo verdade é o verbo saber. A verdade vai junto com um saber a mais, isto é, ao enunciar, se diz mais do que se sabe.

No mesmo ano em que Lacan criticava à lógica-matemática, Foucault publicava A arqueologia do saber, onde a matemática era questionada como modelo para outras ciências, pois, apesar de oferecer rigor formal e demonstrabilidade, ela carece de historicidade.23

A matemática, para Lacan, cumpre a função de formalização, enquanto escrita, mas sem que seja preciso abandonar a literalidade. Essa dupla vertente será retomada por Lacan no Seminário 25, Momento de concluir: “o inconsciente, isso não impede de contar, de contar de dois modos que não são senão modos de escrever: o biunívoco e o equívoco”.24

Buenos Aires, 2009: a psicanálise por vir

Em 2009, um curso de pós-graduação da Universidade de Buenos Aires tinha por título El Psicoanalisis por venir. Seu ministrante, Alfredo Eidelsztein, iniciava o curso com essas palavras: “Vamos apresentar uma serie de investigações que participam do que na epistemologia moderna, especialmente no ensino de Imre Lakatos se nomeia programa de investigação científica (P.I.C.)”.25

Em novembro de 2008, Apertura, sociedade psicanalítica de Buenos Aires e de La Plata havia lançado o primeiro número da Revista El Rey está desnudo, Revista para el Psicoanálisis por venir. Em seu editorial, a revista sustentava a dupla abertura realizada por Lacan: a crítica aos conceitos fundamentais da psicanálise e a relação desses conceitos com outros campos de saber. O “Programa de investigação em psicanálise” será publicado em 2010, na edição de número 3 dessa Revista.26 Em 2019, foi publicado o Programa de Investigação Científica da Apertura para outro Lacan, ano em que a Apertura se refundou como APOLA Internacional.27

Na conferência A Ciência e a Psicanálise,28 Eidelsztein (2014) problematizava os progressos e o futuro da psicanálise a partir da pergunta pelo modelo teórico mais pertinente à psicanálise. Já em 2022, são realizados estudos sobre a psicanálise e os avanços das disciplinas científicas vizinhas.

A crítica ao biologicismo foi enfocada considerando a apropriação da obra de Darwin pela sociobiologia de Edward Wilson (1975). Uma das referências para essa crítica foi o livro de Marshall Sahlins (1976), Usos e abusos da biologia, que apresenta argumentos em defesa da tese da descontinuidade entre natureza e cultura: não somente as ideias, mas também as emoções são artefatos culturais.29 A antropóloga Susan McKinnon (2021), em Genética neoliberal, uma crítica antropológica à psicologia evolucionista, utilizou esses argumentos na sua análise da falácia que reduz o comportamento aos genes, ignorando a história e a cultura.30

A crítica ao discurso biologicista na psicologia requer, portanto, a desconstrução de falácias políticas e econômicas. É nesse sentido que a pergunta que precisamos fazer é a seguinte “quem pensa? Será que é um cérebro quem pensa” ou “é uma sociedade, uma cultura, uma época, uma língua, uma ciência quem pensa”?31